Superlotação carcerácia: possibilidade de dano moral?

23/02/2015 às 11:46
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A situação degradante dos presídios brasileiros pode ensejar reparação por dano moral aos detentos, por ofensa a direitos de personalidade?

O interesse na elaboração deste artigo deu-se com o julgamento de Embargos de Divergência no REsp 962.934/MS[1], no qual se questionava a possibilidade de arbitramento por dano moral individual a cada detento submetido às já conhecidas condições degradantes do sistema prisional brasileiro. Na origem, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, por maioria, manteve a sentença do juiz a quo para condenar o estado a indenizar o preso requerente em R$ 3.000,00 (três mil reais), por dano moral.

O voto divergente lavrado naquele Tribunal foi o do Desembargador Hamilton Carli, que julgou improcedente o pedido, afastando a indenização por dano moral com a seguinte fundamentação:

[...] é possível vislumbrar, simultaneamente, dois objetivos convergentes perante a Constituição: o atendimento às necessidades do preso e a economia de meios. Esta última é essencial para que, resolvido o caso particular do autor, sobrem recursos para atender às demais necessidades básicas essenciais do restante da população (não só carcerária).

[...]

Desta forma, uma vez reconhecido o direito do autor, pelo princípio da isonomia, todos os detentos deveriam ser indenizados, o que geraria um dispêndio vultoso aos cofres do Estado. Não bastasse isso, a implementação da política pública prisional exige o direcionamento de recursos públicos, mas não sob a égide da conveniência e oportunidade puras do administrador, sendo constitucionalmente permitida a intervenção do Judiciário em questão desta natureza, pois, embora destinados à garantia de direitos individuais, de primeira geração, a ação necessária do Estado é comissiva e não omissiva, o que assemelha à própria das garantias dos direitos sociais, de ação positiva.

[...]

O exercício de ações positivas exige o investimento do ente estatal e, como tal, depende da disponibilidade de recursos. A reserva do possível foi inicialmente desenvolvida para ser aplicada no que concerne à implantação e execução das políticas públicas. Certo é que não podemos desprezar os direitos constitucionalmente garantidos ao autor, pois é óbvio que o caso exige prestação positiva do Estado. Porém, tal prestação deve respeitar os limites econômicos que derivam do fato de que certas prestações hão de situar-se dentro da 'reserva do possível', das disponibilidades do erário. [...] os direitos do detento exigem prestações positivas por parte do Estado, por isso se situa, como vimos anteriormente, dentro da chamada 'reserva do possível', ou seja, dentro das disponibilidades orçamentárias da Administração Pública. Sem sombra de dúvida que o autor, na qualidade de preso, reserva integralmente seus direitos individuais fundamentais, à exceção da liberdade e da privacidade. Também é notório que situação do sistema penitenciário sul-mato-grossense tem lesado direitos fundamentais seus, quanto à dignidade, intimidade, higidez física e integridade psíquica. Ademais, em razão de ser custodiado pelo Estado, tem este o dever integral de conservar o preso em condições dignas e saudáveis. No entanto, o cumprimento deste dever exige ação positiva do Estado, diversamente do que ocorre com o cidadão em liberdade, para o qual basta, de regra, ação negativa. A ação positiva apresenta-se sob a forma da necessidade de construção, ampliação, reforma e adequação dos estabelecimentos prisionais, até que todos os presos, cautelares ou condenados, possam ter as condições preconizadas pela Lei de Execução Penal e assegurados seus direitos fundamentais.

[...]

O direito do autor também não pode ser tido como absoluto, ante a necessidade da prática de ação positiva possível quando o Estado age nos limites de sua disponibilidade, de forma a que suas ações venham, no futuro, assegurar os direitos fundamentais do preso.

[...]

Ademais, não podemos acolher a alegação de que a omissão do Estado é ilícita, uma vez que a ação positiva do Estado-administrador, praticada de acordo com o orçamento votado pelo Estado-legislativo, a coloca, dogmaticamente, na esfera da licitude dos atos públicos, tal qual determinada pela doutrina da 'reserva do possível'. Desta forma, não há falar em dever de indenizar.

[...]

Não estamos com isso negando o direito do autor em ver ressarcido seu sofrimento. Apenas entendendo que, se o objetivo principal da ação é obrigar o Estado a dar melhores condições de vida e dignidade aos detentos que cumprem pena nos estabelecimentos prisionais sul-mato-grossenses, não obterá êxito intentando ação indenizatória de danos morais.

[...]

Existe sim a necessidade de se ter uma melhoria urgente no sistema prisional, o qual deverá ser feito por meio de construções e reformas, e não de pagamento pecuniário aos apenados. Ademais, no caso de provimento do recurso do autor, ele continuará na situação de dano em que se encontra. Ou seja, não é pelo fato de o Poder Judiciário condenar o Estado ao pagamento de determinado valor por danos morais, que a 'situação de dano' se extinguirá, e, desta forma, em poucos meses, as ações serão novamente intentadas a fim de ver indenizado o mesmo dano. (grifo nosso)

Reveste-se de suma relevância a discussão quanto à possibilidade de dano moral individual quando o próprio Ministro da Justiça do país, Sr. José Eduardo Cardoso, no dia 13 de novembro de 2012, afirmou que “preferia morrer[2]” a ficar preso por anos no país, afirmando, em seguida, que o sistema penitenciário brasileiro é “medieval[3]”.

O panorama fático infame dos presídios brasileiros é notório, portanto.

Passemos à análise do julgado epigrafado.

O relator dos Embargos de Divergência no REsp 962934/MS foi o Ministro Teori Albino Zavascki, que consignou, embora tenha sido voto vencido:

Essas considerações são inteiramente aplicáveis ao caso. Não se nega que, conforme ressaltado pelo acórdão embargado, a eliminação ou, pelo menos, a redução de violações à integridade e à dignidade da pessoa dos presos depende da adoção de políticas públicas sérias e voltadas especificamente à obtenção de tal resultado. Disso não decorre, porém, que violações dessa natureza ainda ocorrentes devam ser mantidas impunes ou inindenizáveis, ainda mais quando o mesmo acórdão admite que "não se está a averiguar se o dano moral é devido, pois, caso assim o fosse, incidiria o óbice sumular 7/STJ" (fl. 487). Trata-se, a rigor, de problemas diferentes, a serem separados por linha bem definida: uma situação é a da política pública de melhoria das condições carcerárias, que aqui não está em discussão; e a outra, juridicamente bem distinta, é a do dever do Estado de indenizar danos individuais – seja de natureza material, seja de natureza moral - indevidamente causados a detentos. É disso que aqui se trata. Esse dever, que é imposto pelas leis civis a qualquer pessoa que cause dano (Código Civil, arts. 186 e 927), é também do Estado, que, além da norma civil (Código Civil, art. 43), tem previsão em superior norma constitucional específica, o art. 37, § 6º, dispositivo auto-aplicável, não sujeito a intermediação legislativa ou administrativa para assegurar o correspondente direito subjetivo.

É evidente, pois, que as violações a direitos fundamentais causadoras de danos individuais a pessoas encarceradas não podem ser simplesmente relevadas ao argumento de que a indenização não tem o alcance para propiciar a solução do grave problema prisional globalmente considerado. Esse argumento, se admitido, acabaria por justificar a manutenção eterna do iníquo status quo de presídios como o de que trata a presente demanda. Ademais, mesmo que não haja direito subjetivo individual de deduzir em juízo pretensões que visem a obrigar o Estado a formular esta ou aquela política pública, inclusive em relação à questão carcerária, não é menos certo que ao indivíduo é assegurado o direito de obter, inclusive judicialmente, o atendimento de prestações inerentes ao que se denomina mínimo existencial, a saber: prestações que, à luz das normas constitucionais, podem ser desde logo identificadas como necessariamente presentes qualquer que seja o conteúdo da política pública a ser estabelecida. E ninguém pode duvidar de que, em qualquer circunstâncias, jamais se poderia excluir das obrigações estatais em matéria carcerária a de indenizar danos individuais de qualquer natureza que venham a ser por ele causados a quem está submetido a encarceramento.

O eminente Ministro procurou adotar a jurisprudência já erigida por aquela Corte acerca da questão, a teor dos precedentes abaixo:

CONSTITUCIONAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. INDENIZAÇÃO. DETENTO. ENCARCERAMENTO EM CONDIÇÕES TIDAS COMO CAÓTICAS. DANOS MORAIS. PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL. INVIABILIDADE DA INVOCAÇÃO NAS SITUAÇÕES PREVISTAS NO ART. 37, § 6º, DA CF.

1. O dever de ressarcir danos, inclusive morais, efetivamente causados por ato dos agentes estatais ou pela inadequação dos serviços públicos decorre diretamente do art. 37 § 6º da Constituição, dispositivo auto-aplicável, não sujeito a intermediação legislativa ou administrativa para assegurar o correspondente direito subjetivo à indenização. Não cabe invocar, para afastar tal responsabilidade, o princípio da reserva do possível ou a insuficiência de recursos. Ocorrendo o dano e estabelecido o seu nexo causal com a atuação da Administração ou dos seus agentes, nasce a responsabilidade civil do Estado, caso em que os recursos financeiros para a satisfação do dever de indenizar, objeto da condenação, serão providos na forma do art. 100 da Constituição. (grifo nosso)

2. Recurso Especial improvido.

(REsp 1051023/RJ, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, Rel. p/ Acórdão Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 11/11/2008, DJe 01/12/2008)

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. DANOS MORAIS. PRESIDIÁRIO. CARCERAGEM. LOTAÇÃO DESARRAZOADA. CONFIGURAÇÃO DA NEGLIGÊNCIA ESTATAL. SÚMULA N.º 07 DO STJ. HONORÁRIOS DE ADVOGADO DEVIDOS PELO ESTADO À DEFENSORIA PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE.

1. Ação Ordinária de Indenização interposta por presidiário ao fundamento de que sofrera danos morais em razão da superlotação na carceragem na qual encontrava-se recluso desde 08/12/03, em espaço mínimo na cela, na qual encontravam-se mais de 100 (cem) presos, número muito superior ao estipulado como razoável para o local, a saber, 12 (doze) pessoas.

2. A negligência decorrente dos fatos narrados pelo autor na exordial - em especial no que se refere à configuração da culpa estatal - restou examinada pelo Tribunal a quo à luz do contexto fático-probatório engendrado nos autos, é insindicável nesta instância processual, à luz do óbice constante da Súmula 7/STJ.

3. In casu, a Corte de origem reformou integralmente a sentença a quo, condenando o Estado ao pagamento da indenização pleiteada, com fulcro na Responsabilidade Civil do Estado, in litteris: Ainda que desnecessária a comprovação de culpa, bastando a ocorrência do dano, que é indubitável, entretanto a culpa administrativa do Estado está caracterizada pela sua negligência, descaso ou abandono com relação aos presos, entregues a sua própria sorte, violando por conseguinte, as disposições da Lei de Execução Penal, bem como a Convenção Interamericana de Direito Humanos. Assinale-se que, por se tratar de resguardo de um padrão básico de vida, não há de cogitar de sobrecarga orçamentária, pois se trata da preservação da vida humana, que não pode ficar abandonada num total desprezo, com argumentos insubsistentes, que demonstram repúdio e má-vontade na solução do problema. Portanto nenhuma teoria ou especificações, sobre os mais variados princípios discorridos, é mais importante que a consideração que o ser humano merece. (grifo nosso)

4. (omissis)

5. (omissis)

6. Consectariamente, a vida humana passou a ser o centro de gravidade do ordenamento jurídico, por isso que a aplicação da lei, qualquer que seja o ramo da ciência onde se deva operar a concreção jurídica, deve perpassar por esse tecido normativo-constitucional, que suscita a reflexão axiológica do resultado judicial.

7. A plêiade dessas garantias revela inequívoca transgressão aos mais comezinhos deveres estatais, consistente em manter-se superpopulação carcerária em condições perigosas, máxime quando os presos se veem obrigados a confeccionar e possuir instrumentos ofensivos - que servem mais para se defender e garantir suas vidas e intimidade do que atacar alguém ou se rebelar, sendo certo os temores que resultam do encarceramento ilegal.

8. Inequívoca a responsabilidade estatal, quer à luz da legislação infraconstitucional (art. 159 do Código Civil vigente à época da demanda) quer à luz do art. 37 da CF/1988, escorreita a imputação dos danos materiais e morais cumulados, cuja juridicidade é atestada por esta Eg. Corte (Súmula 37/STJ) 9. Nada obstante, o Eg. Superior Tribunal de Justiça invade a seara da fixação do dano moral para ajustá-lo à sua ratio essendi, qual a da exemplariedade e da solidariedade, considerando os consectários econômicos, as potencialidades da vítima, etc, para que a indenização não resulte em soma desproporcional.

10. Deveras, a dignidade humana retrata-se, na visão Kantiana, na autodeterminação; na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivência sadia. É de se indagar, qual a aptidão de um cidadão para o exercício de sua dignidade se a forma de execução da pena imposta revela-se tão injusta quanto ao crime cometido ensejador da reprimenda estatal?

11. Anote-se, ademais, retratar a lide um dos mais expressivos atentados aos direitos fundamentais da pessoa humana. Sob esse enfoque temos assentado que "a exigibilidade a qualquer tempo dos consectários às violações dos direitos humanos decorre do princípio de que o reconhecimento da dignidade humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz, razão por que a Declaração Universal inaugura seu regramento superior estabelecendo no art. 1º que 'todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos'. Deflui da Constituição federal que a dignidade da pessoa humana é premissa inarredável de qualquer sistema de direito que afirme a existência, no seu corpo de normas, dos denominados direitos fundamentais e os efetive em nome da promessa da inafastabilidade da jurisdição, marcando a relação umbilical entre os direitos humanos e o direito processual". (REsp 612.108/PR, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJ 03.11.2004)

12 a 17. [...]

(REsp 870.673/MS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04/03/2008, DJe 05/05/2008)

No entanto, com a abertura da divergência, traçada no voto do Ministro Herman Benjamin, o Tribunal deu uma guinada no seu entendimento. Ressalvou o Ministro:

O que se questiona nos autos não é a existência, ou não, de dano moral. O que se discute é se o sistema jurídico deve acolher a tese da indenização individual, por danos morais, ao preso em condições degradantes. Cito o Min. Cesar Asfor Rocha, decano de nosso Tribunal: ‘Mas estou inclinado, e aqui com muito convencimento, de que essa é uma situação que não está particularizada, mas atinge toda a população carcerária.’ Como indicou o Min. Mauro Campbell Marques: ‘A preocupação que me assalta é a individualização disso, ou seja, o dano é sempre coletivo aqui, basta a leitura do acórdão que V. Exa. transcreveu em seu voto, que colho o seguinte trecho da origem: 'Informações prestadas pelo M.M. Juiz da Vara de Execuções Penais e do Diretor do estabelecimento penal local: que o presídio de Corumbá é dotado de celas nas quais cumprem penas mais pessoas do que o dobro de sua capacidade em condições não admitidas pela Lei de Execução Penal'. E por aí vai. Todas as situações são sempre danos no coletivo, ou seja, toda comunidade carcerária de Corumbá sofre isso. A preocupação qual é? É o arbitramento do dano individual em detrimento de uma ação coletiva para que toda a situação seja resolvida. Porque veja só, é uma preocupação política penitenciária. (grifo nosso)

No voto originário do REsp 962.934/MS, o mesmo Ministro conduziu o seu entendimento com a seguinte observação:

Observo contradição entre ambas as premissas, porquanto, a rigor, quanto mais verbas públicas forem colocadas à disposição do patrimônio particular de um detento, é evidente que, em dado momento, os recursos estarão muito mais parcos do que já estão, comprometendo ainda mais a manutenção das condições carcerárias. Não faz muito sentido tirar verbas do caixa do Estado para indenizar, individualmente, por dano moral, um ou só alguns presidiários, quando o desconforto do ambiente prisional afeta a todos. A compensação financeira da ofensa moral individual, em tais circunstâncias, só servirá para mascarar, nunca para reduzir, acabar ou solucionar, a dor coletiva, a vergonha que é o sistema prisional em todos os Estados do País. A permitir tal entendimento, estar-se-ia admitindo um papel absurdo do Estado como segurador universal: ou seja, sempre que algum serviço público essencial do Estado for falho – e isso é uma realidade nacional, não apenas 'privilégio' do Estado recorrente –, em vez de uma solução global e racional, com medidas planejadas estrategicamente a médio e longo prazo, buscar-se-á uma saída 'meia-sola' (de preferência financeira), sem a menor repercussão na melhoria do sistema como um todo. (grifo nosso)

Em linhas gerais, optou o STJ em julgar improcedente a indenização por danos morais individuais a detentos sob a ótica da possibilidade econômica. Percebe-se da transcrição do voto do decano da casa, Ministro Cesar Asfor Rocha, que a motivação primordial foi a impossibilidade financeira de o Estado fazer frente às indenizações, as quais, se julgadas devidas, fatalmente inviabilizariam a própria execução das políticas públicas. Vejamos:

Quando o dano moral decorre de uma situação particularizada, pessoalizada, a Primeira Turma tem sido firme no entendimento de que deve haver uma reparação. Aqui, na hipótese, não tenho dúvida, trata-se de políticas públicas e que temos que ver o que é possível ser feito. Porque, senão, teremos que alargar isso para a saúde pública, para a educação, para a justiça, para a habitação, para o transporte, que o poder público não tem condições. O Estado brasileiro não tem condições de dar a essa população prisional o tratamento humano que deveria ter. Não há condições. Veja V. Exa. o seguinte: estamos cogitando de condenar em R$ 3.000,00 (três mil reais). Não tenho dúvida nenhuma de que essa iniciativa que a ora recorrente teve será estimulante para que os outros 460 mil também ingressem com ações. Isso é possível ser cumprido pelo Estado brasileiro? Não é. (grifo nosso)

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O Supremo Tribunal Federal já reconheceu a repercussão da matéria aqui ventilada, parecendo inclinar-se à efetividade do direito constitucional de conferir condições de habitação dignas nas penitenciárias brasileiras, à míngua da excludente da “reserva do possível”. Ressalvou o Ministro Marco Aurélio:

Vem-nos da Constituição Federal, como verdadeiro princípio ligado à dignidade do homem, o dever do Estado de preservar o respeito à integridade física e moral do preso – inciso LXIX do art. 5º. Grande veículo de comunicação – Rede Globo, mediante os programas Fantástico e Bom Dia Brasil – escancarou as precárias condições das penitenciárias brasileiras. Ora, descabe tomar a teoria da reserva do possível como polivalente a ponto de se colocar em segundo plano a Carta da República[4].

Embora entendamos perfeitamente possível compelir o Estado a reparar o dano proveniente da sua má gestão dos recursos públicos, não há dúvida, por outro lado, de que as fontes de receitas do Estado são sempre as mesmas, quer dizer, se se possibilita a condenação por dano moral individual a cada preso, parece óbvio que a fonte dos recursos será a mesma das políticas públicas que objetivam a melhoria das próprias condições carcerárias que deflagraram o dano moral individual.

O Direito não é uma ciência social dissociada das demais. A sua efetividade, principalmente quando falamos de direitos sociais, demanda relação uterina com a Economia, de modo que devem reger-se na mesma sintonia. Tomando em consideração os custos, não há dúvida de que certos direitos possam ser sacrificados, muito embora não seja a opção desejável.

Forçoso reconhecer, nos termos do voto divergente do Desembargador Hamilton Carli, do TJMS, que o Estado está adstrito a um orçamento, que o coloca na execução das políticas públicas dentro da doutrina da “reserva do possível”.

Como bem acentuou o magistrado, “existe sim a necessidade de se ter uma melhoria urgente no sistema prisional, o qual deverá ser feito por meio de construções e reformas, e não de pagamento pecuniário aos apenados”.

Na eventualidade da procedência do dano moral individual, em nada alterará a realidade fática das prisões. O detento continuará na mesma situação ensejadora de dano moral.

Em síntese, ao buscar o apaziguamento de um dano - que não é individual, e sim coletivo - com uma indenização individual, agrava-se a situação da coletividade.

Nessa esteira, aderimos ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça pela inviabilidade de dano moral individual por condições carcerárias degradantes.

Doutra banda, o mesmo não se pode dizer quanto à possibilidade de fixação de dano moral coletivo – cuja indenização objetiva a melhoria de toda a classe.

Segundo Carlos Alberto Bittar Filho, o dano moral coletivo constitui:

[...] a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos. Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico: quer dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu aspecto material[5].

Nesse descortino, parece-nos plenamente possível compelir o Estado a indenizar moralmente os detentos, de forma coletiva, para a melhoria de todo o grupo carcerário, haja vista que o montante indenizatório reverterá para fundo específico da categoria. Lado oposto, no entanto, é a via do dano moral individual, à qual não nos filiamos, por anuência ao entendimento esposado pelo colendo Superior Tribunal de Justiça no precedente suso mencionado (REsp 962.934/MS).

NOTAS DE REFERÊNCIA E NOTAS EXPLICATIVAS

[1] O julgamento do recurso recebeu a seguinte ementa:

ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DETENTO. SUPERLOTAÇÃO. DANO MORAL. RESSARCIMENTO INDIVIDUAL POR DANO COLETIVO INCABÍVEL. PROBLEMA LÓGICO. RETIRADA DE CUSTOS PARA SUPRIR INDENIZAÇÃO INDIVIDUAL QUE MAJORA O GRAVAME COLETIVO. IMPOSSIBILIDADE DE EQUIVALÊNCIA COM CASOS MAIS GRAVES. MORTE. INDENIZAÇÃO INDIVIDUAL COMO MEIO INVIÁVEL DE SOLUÇÃO DO PROBLEMA PRISIONAL.

1. Cuida-se de embargos de divergência opostos contra acórdão da Segunda Turma que deu provimento ao recurso especial para determinar a impossibilidade de obrigar o Estado a indenizar, individualmente, um detento em unidade prisional superlotada.

2. O que se debate é a possibilidade de indenizar dano moral que foi consignado pelas instâncias de origem; logo, o que se discute é a possibilidade de punir o Estado com tal gravame pecuniário, denominado no acórdão embargado como "pedágio masmorra"; a divergência existe, pois há precedentes da Primeira Turma no sentido da possibilidade de indenização: REsp 1.051.023/RJ, Rel. Min. Francisco Falcão, Rel. p/ Acórdão Min. Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, DJe 1º.12.2008; e REsp 870.673/MS, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 5.5.2008.

3. O voto condutor do Min. Herman Benjamin - havido do recurso especial, cujo acórdão figura como embargado - deve ser mantido em seus próprios fundamentos, a saber que: a) não é aceitável a tese de que a indenização seria cabível em prol de sua função pedagógica; b) não é razoável - e ausente de lógica - indenizar individualmente, pois isto ensejará a retirada de recursos para melhoria do sistema, o que agravará a situação do próprio detento; e c) a comparação com casos que envolveram a morte de detentos não é cabível.

4. Como bem consignado no acórdão embargado, em vez da perseguição de uma solução para alterar a degradação das prisões, o que acaba por se buscar é uma inadmissível indenização individual que arrisca formar um "pedágio masmorra" ou uma "bolsa indignidade"; em síntese, o tema em debate não trata da aplicação da doutrina da "reserva do possível" ou do "mínimo existencial", mas da impossibilidade lógica de que a fixação de uma indenização pecuniária e individual melhore o sistema prisional. (grifo nosso)

Embargos de divergência conhecidos e improvidos.

(EREsp 962.934/MS, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, Rel. p/ Acórdão Ministro HUMBERTO MARTINS, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14/03/2012, DJe 25/04/2012).

[2] Em sua tese de doutorado, a profa. Dra. Beatriz Vargas, da Universidade de Brasília – UnB, sintetizou o raio-x da população carcerária: “Todas as prisões, ao contrário da percepção comum que se tem a respeito, estão repletas de autores de obras toscas e que se encaixam exatamente no estereótipo criminoso, lugar preferencial para a ativação de todo tipo de preconceito. A seleção é inoperante e fracassa em relação ao rico e ao super-rico, ainda que de vez em quando se apresente, de forma espetacular, a prisão de um empresário ou político, um ‘criminoso de colarinho branco’, que dificilmente alcançará a última fase da criminalização secundária, ou seja, raramente ingressara no sistema prisional – sobretudo na penitenciária. A exceção, enfim, apenas confirma a regra”. (REZENDE, Beatriz Vargas Ramos Gonçalves de. A ilusão do proibicionismo: estudo sobre a criminalização secundária do tráfico de drogas no Distrito Federal. 2011. 148 f. Tese (doutorado em Direito) – Faculdade de Direito – FD, Universidade de Brasília - UnB, Brasília, 2011).

[3] Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2012/11/ministro-da-justica-diz-que-preferia-morrer-ficar-preso-por-anos-no-pais.html>. Acesso em: 21 fev. 2012.

[4] LIMITES ORÇAMENTÁRIOS DO ESTADO. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. EXCESSIVA POPULAÇÃO CARCERÁRIA. PRESENÇA DA REPERCUSSÃO GERAL. Possui repercussão geral a questão constitucional atinente à contraposição entre a chamada cláusula da reserva financeira do possível e a pretensão de obter indenização por dano moral decorrente da excessiva população carcerária. (grifo nosso)

(RE 580252 RG, Relator (a): Min. AYRES BRITTO, julgado em 17/02/2011, DJe-109 DIVULG 07-06-2011 PUBLIC 08-06-2011 EMENT VOL-02539-02 PP-00325).

[5] BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Dano moral coletivo. Revista de Direito do Consumidor, v. 12.

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Sobre o autor
André Bernardes Dias

Especialista em Direito Público pela PUC-MG. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UNESA. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. Assessor no TJDFT.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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