A Lei 9.099/95 passou a considerar crimes de menor potencial ofensivo aqueles cuja pena máxima cominada não seja superior a dois anos de prisão. Esse mesmo diploma normativo estipulou que, em tais situações, a auto de prisão em flagrante é substituído por um Termo Circunstanciado. Com efeito, o legislador, visando promover a "descarcerização", vinculou a prisão em flagrante apenas aos delitos mais graves, observando, assim, o postulado da proporcionalidade, haja vista que não teria sentido que uma pessoa fosse presa em flagrante se, ao final do processo, dificilmente lhe seria imposta uma pena privativa da liberdade.
Destarte, o agente que for detido por haver praticado uma infração de menor potencial ofensivo, não será autuado em flagrante, desde que assine o termo de compromisso previsto no artigo 69, parágrafo único, da Lei 9.099/95. Caso contrário, será possível a decretação de sua prisão, cabendo ao Delegado de Polícia conceder a fiança de acordo com a sua análise jurídica do caso concreto.
Advertimos, contudo, que em se tratando do delito previsto no artigo 28 da Lei de Drogas, jamais poderá ser imposta a prisão em flagrante, ainda que o conduzido se recuse a assinar o compromisso de comparecer ao Juizado Especial, uma vez que, nessas situações, o legislador não estipulou uma pena privativa de liberdade para esta conduta. Isto, pois, a infração prevista no mencionado dispositivo é tratada como um problema de saúde pública, daí a desproporcionalidade da prisão.
Divergindo de praticamente toda a doutrina, Muccio entende que o Delegado de Polícia pode efetuar a prisão em flagrante em delitos de menor potencial ofensivo sempre que o criminoso não ostentar as condições necessárias para ser beneficiado com a proposta de transação penal, nos termos do artigo 76, da Lei 9.099/95[1]. Com a devida vênia, não podemos concordar com esta posição, afinal, é atribuição do Ministério Público analisar o cabimento ou não da proposta de transação penal e não da Autoridade de Polícia Judiciária.
Feita essa ressalva, chamamos a atenção do leitor para o artigo 48 da Lei de Drogas. De acordo com esse dispositivo, o usuário de drogas deve ser encaminhado à presença da autoridade judicial, para que seja realizada a lavratura do Termo Circunstanciado da Ocorrência (art.48, §2°). A Lei deixa claro que apenas na ausência do Juiz, é que as providências poderão ser tomadas diretamente pelo Delegado de Polícia (art.48, §3°).
Diante dessa determinação, percebemos um claro e rotineiro desrespeito à Lei, uma vez que nesses casos o usuário sempre é encaminhado diretamente ao Distrito Policial, mesmo que esteja no horário de funcionamento do Fórum, com um Magistrado à disposição. Conforme os ensinamentos de Luiz Flávio Gomes,
“a nova Lei de Drogas priorizou o ‘juízo competente’, em detrimento da autoridade policial. Ou seja: do usuário de droga não deve se ocupar a polícia (em regra). Esse assunto configura uma questão de saúde pública, logo, não é um fato do qual deve cuidar a autoridade policial.”[2]
Percebe-se, pois, que essa previsão legal retrata mais uma hipótese de inefetividade do nosso ordenamento jurídico, tão rico em previsões que não são implementadas pelo Poder Público, como o direito constitucional à moradia, por exemplo. Ora, como bem frisado acima, por se tratar de uma questão de saúde pública, tais casos deveriam ser apreciados pelo Poder Judiciário, que já poderia tomar as medidas cabíveis, visando assegurar os interesses do usuário, de seus familiares e da sociedade como um todo, especialmente porque, mesmo não assinando o termo de compromisso, não poderá ser tomada qualquer medida mais incisiva contra o conduzido, o que desprestigia o próprio trabalho policial.
Nesse contexto, aproveitando o embalo da implementação progressiva das audiências de custódia, que determina que todos os presos em flagrante sejam apresentados pessoalmente ao Juiz dentro de 24 horas, para que esta autoridade aprecie a legalidade da prisão, se foram respeitados os direitos do preso e a necessidade da conversão do flagrante em prisão preventiva, seria interessante que o Poder Judiciário também se estruturasse para dar efetividade ao artigo 48, §2°, da Lei de Drogas, sobretudo porque os usuários de drogas demandam um cuidado especial por parte do Estado. Não nos parece lógico que o Estado envide todos os esforços para assegurar os interesses dos presos – o que é absolutamente legítimo, diga-se! – mas, por outro lado, feche os olhos para o problema dos usuários, uma questão que atinge toda a sociedade, ferindo, inclusive, o princípio da dignidade da pessoa humana.
Subsidiando nosso raciocínio, nos valemos da rotina de uma Delegacia de Polícia, onde os familiares de usuários frequentemente imploram por uma internação, como se esta decisão pertencesse à Autoridade Policial.
Em síntese, defendemos que, em consonância com a Lei de Drogas, sempre que constatada uma violação ao seu artigo 28, o usuário deveria ser encaminhado diretamente ao Fórum (se no horário de funcionamento), para que lá fosse lavrado o TCO, adotando-se, de pronto, todas as medidas cabíveis e restritas ao Poder Judiciário. Essa ocorrência seria apresentada ao Delegado de Polícia apenas subsidiariamente, na falta de um Magistrado (nos finais de semana, por exemplo). Para tanto, poderia ser aproveitada a própria estrutura organizada para a realização das audiências de custódia. Bastaria “apenas” vontade política para esse fim, mas, infelizmente, nosso país adota medidas de segurança aleatórias, de acordo com a conveniência das instituições públicas e de seus governantes. Juízes e Promotores não querem ter contado direto com drogados que, quase sempre, encontram-se em estado deplorável. Diante disso, é melhor que tais situações continuem desembocando na Delegacia de Polícia. Lamentável!
Referências
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Lei 12.403 Comentada – Medidas Cautelares, Prisões Provisórias e Liberdade Provisória. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2013.
GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice; CUNHA, Rogério Sanches; OLIVEIRA, Willian Terra de. Nova lei de drogas comentada. São Paulo: RT, 2006.
Notas
[1] MUCCIO, Hidejalma, apud CABETTE, Eduardo Luis Santos. Lei 12.403 Comentada. p.241.
[2] GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice; CUNHA, Rogério Sanches; OLIVEIRA, Willian Terra de. Nova lei de drogas comentada. p.216.