A boa-fé objetiva como limitadora ao exercício de direitos subjetivos na visão do Superior Tribunal de Justiça

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27/04/2015 às 20:59
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Análise da boa-fé objetiva como elemento obstativo ao exercício de direitos subjetivos a partir de uma análise jurisprudencial no âmbito do Superior Tribunal de Justiça

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. Do estudo da problemática. A limitação ao exercício do direito por violação à boa-fé objetiva. 3. Conclusão; 4. Bibliografia.

  1. Introdução.

A boa-fé objetiva, um dos princípios fundamentais no ramo direito privado e que se constitui como um modelo de conduta social ou de padrão ético de comportamento, que impõe, concretamente, a todo cidadão que, nas suas relações, atue com honestidade, lealdade e probidade.

Apesar do seu afeiçoamento e integrante do direito privado, na verdade, este princípio encontra-se espalhado expressa ou implicitamente em absolutamente todos os ramos do direito, sendo entendido concretamente como um princípio de todo ordenamento jurídico.

Se a boa-fé objetiva deve estar presente nos diversos tipos de relações jurídicas, seja no momento antecedente à prática do ato jurídico, seja na fase sinalagmática da celebração do negócio jurídico, é verdade também que esse princípio já vem sendo considerado como elemento obstativo, até mesmo, para o regular seguimento de um processo de indenização ou para o seu início e é especificamente esta segunda temática que será o objeto da análise no presente artigo.

2. Do estudo da problemática. A limitação ao exercício do direito por violação à boa-fé objetiva.

Adotando um aprofundamento jurisprudencial da matéria, observa-se que, dentre os inúmeros julgados que tratam genericamente do tema, talvez o entendimento exposto pela Terceira do Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento da MC 15398 / RJ (em 02 de Abril de 2009)[2], seja o que mais justifique a conclusão exposta no parágrafo anterior.

Com efeito, em análise do caso citado, a Terceira Turma foi incumbida de julgar uma Medida cautelar que buscava atribuir efeito suspensivo a um recurso especial interposto para impugnação de um determinado acórdão exarado pelo TJ/RJ, no julgamento de um agravo de instrumento em que foi dado integral provimento, fulminando as pretensões da parte agravada.

Embora tenha tratado de dois temas de extrema relevância, sobretudo no âmbito do ramo do Direito Internacional Privado (conflito de jurisdições e competência internacional), para o que interessa ao presente trabalho, o caso em altercação traz importantes reflexões sobre o princípio da boa-fé objetiva.

Em síntese, a parte intentava, por via de medida liminar, a suspensão dos atos coercitivos a serem tomados pela outra que sagrou-se vitoriosa na ação julgada perante o Tribunal estrangeiro, até o julgamento final da demanda proposta perante a Justiça brasileira em que se revestiam as mesmas partes, mesma causa de pedir e mesmos pedidos daquela intentada no exterior.

Malgrado inúmeros tenham sido os temas abordados, dentre eles, a homologação de sentença estrangeira, a competência concorrente e exclusiva para julgamento de matéria conexas a duas ou mais jurisdições (ex vi art. 88 e 89 do CPC) e, ainda, a inexistência de litispendência internacional (sentença estrangeira pendente de homologação – art. 90 do CPC), o verdadeiro substrato da decisão residiu justamente na identificação de violação ao princípio da boa-fé objetiva e o fator obstativo para acolhimento da pretensão da parte.

In casu, a ação discutia, em um primeiro momento, a possibilidade de afastamento da jurisdição brasileira (o alcance para julgar uma determinada pretensão) por acolhimento dos princípios do forum shopping (eleição bilateral do foro para julgar uma demanda) e forum non conveniens (eleição bilateral do foro para julgar uma demanda com base na conveniência) e, em segundo momento, a existência de litispendência por já haver decisão oriunda de tribunal estrangeiro transitada em julgado em desfavor da parte recorrente ao STJ.

Entendeu-se, nesse exame, que a sentença estrangeira, para ter eficácia, dependeria de prévia homologação pelo STJ, de forma que o declínio de competência para o julgamento de uma causa com fundamento na mera existência de trânsito em julgado da mesma ação no estrangeiro seria absolutamente contra legem.

Decidiu-se, ainda, que a postura pelo não julgamento com base nessa assertiva implicaria a aplicação dos princípios do forum shopping e forum non conveniens, que não encontram respaldo nas regras processuais brasileiras, por ser a matéria eminentemente de ordem pública.

Ao revés disso tudo, o processo teve como sorte a extinção sem resolução do mérito, justamente por se ter entendido ter havido, no caso, um comportamento contraditório, frontalmente violador do princípio da boa-fé objetiva.

Aos olhos mais desatentos, a importância de tal decisão poderia passar despercebida, mas não quando se pretende corroborar a força do princípio em pauta. Isso porque, foi justamente o princípio da boa-fé objetiva que serviu de base para a decisão.

Numa perspectiva puramente legalista ou, em outras palavras, se bastasse uma interpretação fria do texto legal pelo aplicador do direito, a pretensão deduzida no Brasil pela parte vencida no Tribunal estrangeiro jamais poderia ter sido extinta sem julgamento do mérito. Isso porque, segundo o art. 90 do Código de Processo Civil, “a ação intentada perante tribunal estrangeiro não induz litispendência, nem obsta a que a autoridade judiciária brasileira conheça da mesma causa e das que lhe são conexas”.

Em outras palavras, apesar da decisão adversa no Tribunal Estrangeiro, nada impediria, do ponto de vista estritamente processual, o ingresso da mesma questão perante o Tribunal brasileiro, primeiro porque a eficácia da decisão proferida no exterior, para ser válida no Brasil, dependeria do procedimento homologatório (art. 105, I, i da Constituição Federal) e, ainda, por se tratar de hipótese de competência internacional concorrente (art. 88 do CPC), situação em que, por aplicação do princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV da Constituição Federal), a justiça brasileira teria obrigação de julgar.

A decisão, contudo, obstaculizou o seguimento da ação com base na vedação do venire contra factum proprium (vedação do comportamento contraditório) como um dos corolários do princípio da boa-fé objetiva.

Especificamente, não se entendeu razoável que uma parte que optou pelo processamento da ação perante o Tribunal de outro país buscasse a reversão do julgado no Brasil, somente em razão do insucesso de sua ação anteriormente proposta em Estado estrangeiro.

Aliás, essa parece ser a linha interpretativa dos tribunais superiores, quando elegem o princípio da boa-fé objetiva como fator obstativo de ingresso da ação judicial ou mesmo como mero limitador de direitos subjetivos.

Neste sentido:

Processo civil. Medida cautelar visando a atribuir efeito suspensivo a recurso especial. Ação proposta pela requerente, perante justiça estrangeira. Improcedência do pedido e trânsito em julgado da decisão. Repetição do pedido, mediante ação formulada perante a Justiça Brasileira. Extinção do processo, sem resolução do mérito, pelo TJ/RJ, com fundamento na ausência de jurisdição brasileira para a causa. Impossibilidade.

Pedido de medida liminar para a suspensão dos atos coercitivos a serem tomados pela parte que sagrou-se vitoriosa na ação julgada perante o Tribunal estrangeiro. Indeferimento. Comportamento contraditório da parte violador do princípio da boa-fé objetiva, extensível aos atos processuais.

- É condição para a eficácia de uma sentença estrangeira a sua homologação pelo STJ. Assim, não se pode declinar da competência internacional para o julgamento de uma causa com fundamento na mera existência de trânsito em julgado da mesma ação, no estrangeiro.

Essa postura implicaria a aplicação dos princípios do 'formum shopping' e 'forum non conveniens' que, apesar de sua coerente formulação em países estrangeiros, não encontra respaldo nas regras processuais brasileiras.

- A propositura, no Brasil, da mesma ação proposta perante Tribunal estrangeiro, porém, consubstancia comportamento contraditório da parte. Do mesmo modo que, no direito civil, o comportamento contraditório implica violação do princípio da boa-fé objetiva, é possível também imaginar, ao menos num plano inicial de raciocínio, a violação do mesmo princípio no processo civil. O deferimento de medida liminar tendente a suspender todos os atos para a execução da sentença estrangeira, portanto, implicaria privilegiar o comportamento contraditório, em violação do referido princípio da boa-fé.

Medida liminar indeferida e processo extinto sem resolução de mérito.

(MC 15.398/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/04/2009, DJe 23/04/2009) – grifo nosso.

Consoante se denota, a vedação do venire contra factum proprium aparece como uma das vertentes do princípio da boa-fé objetiva, que, por sua própria natureza principiológica, serve, em um primeiro momento, como parâmetro para a criação da norma jurídica e, em um segundo momento, como elemento interpretativo de sua aplicação, conforme também se pode verificar a partir de outros julgados do ano de 2013 e 2014 do mesmo tribunal, in verbis:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO DO RECORRENTE. VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. CAUSA DE PEDIR. A ATIVIDADE JURISDICIONAL ADSTRINGE-SE AOS LIMITES DO PEDIDO E DA CAUSA DE PEDIR. ANULAÇÃO DE TRANSAÇÃO PREVENDO A MIGRAÇÃO DE PLANO DE BENEFÍCIOS E A CONCESSÃO DE VANTAGENS AO PARTICIPANTE. NECESSIDADE DE RETORNO AO STATU QUO ANTE, EM OBSERVÂNCIA AO ART. 848 DO CÓDIGO CIVIL, POIS A ANULAÇÃO NÃO PODE RESULTAR EM ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA A NENHUMA DAS PARTES.

1. A migração de plano de benefícios (portabilidade) consta da própria causa de pedir da presente ação, visto que, na exordial, o autor afirma que houve, na verdade, apenas migração de plano de benefícios. Igualmente, nas contrarrazões recursais do REsp, o ora recorrente alega,  às fl. 559 e 561, que,  "em 1º de dezembro de 2002, migrou para o Novo Plano de Beneficios BrTPREV, optando por transferir 100% (cem por cento) da Reserva de Transferência para o Benefício CD".

2. Contraditoriamente, após o provimento do recurso especial, o agravante inova e afirma que, embora o caso seja tratado como migração  de plano de previdência privada, na verdade, a pactuação havida entre as partes foi resgate, pois deixou de estar vinculado à relação jurídica contratual envolvendo plano de benefícios de previdência privada, incidindo, pois, a Súmula 289/STJ.

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3. "O princípio da boa-fé objetiva proíbe que a parte assuma comportamentos contraditórios no desenvolvimento da relação processual, o que resulta na vedação do venire contra factum proprium, aplicável também ao direito processual". (AgRg no REsp 1280482/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/02/2012, DJe 13/04/2012)

4. "A teor do artigo 1.026 do Código Civil de 1916 - correspondente ao art. 848 do CC/02 -, sendo nula qualquer das cláusulas da transação, nula será esta. Desse modo, eventual anulação da transação implica o retorno ao statu quo ante, não podendo resultar em enriquecimento a qualquer das partes, pois é elemento constitutivo do negócio a concessão de vantagens recíprocas, por isso mesmo não se confunde com renúncia, desistência ou doação". (REsp 1071641/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 21/05/2013, DJe 13/06/2013) 5. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental a que se nega provimento, com aplicação de multa. (EDcl no REsp 1336866/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 03/04/2014, DJe 14/04/2014) – grifo nosso.[3]

RECURSO ESPECIAL. CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA.

CONFISSÃO DE DÍVIDA FEITA POR MEIO DE INSTRUMENTO PÚBLICO DE ESCRITURA DE MÚTUO COM GARANTIA HIPOTECÁRIA. VINCULAÇÃO COM EXECUÇÃO E RESPECTIVOS EMBARGOS. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA PARTE, DESPROVIDO.

1. Não configura ofensa aos arts. 458 e 535 do Código de Processo Civil o fato de o colendo Tribunal de origem, embora sem examinar individualmente cada um dos argumentos suscitados pela parte recorrente, adotar fundamentação contrária à pretensão da parte, suficiente para decidir integralmente a controvérsia.

2. Na interposição de recurso especial, com fundamento nas alíneas a e c do permissivo constitucional, não basta a simples menção da norma federal tida por violada ou da divergência jurisprudencial, sendo necessária a demonstração clara e precisa da ofensa em que teria incorrido o v. aresto hostilizado (Súmula 284/STF).

3. "É inadmissível o recurso extraordinário, quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrange todos eles" (Súmula 283/STF).

4. A Lei da Usura (Decreto 22.626/33) veda expressamente a estipulação de juros superiores ao dobro da taxa legal, que, na época do negócio jurídico entabulado, era de 0,5% ao mês (Código Civil, arts. 1.062, 1.063 e 1.262), correspondendo o dobro, então, a 1% mensal e 12% anual. Nesse contexto, verificada a prática de usura, com a cobrança disfarçada de juros de 8,11% ao mês, houve o correto reconhecimento pelas instâncias a quo da ilegalidade dos juros praticados no negócio jurídico firmado entre as partes litigantes.

5. O Código Civil de 1916, tal como o atual Codex (2002), e o Decreto 22.626/33 consagram o princípio do aproveitamento do negócio jurídico nulo ou anulável.

6. Somente será possível a decretação de nulidade parcial do contrato, resguardando-se, pois, sua parte válida, se esta puder subsistir autonomamente.

7. Em nosso ordenamento jurídico, há vedação do comportamento contraditório, consubstanciado na máxima venire contra factum proprium. Há, por outro lado, consagração ao princípio da boa-fé objetiva.

8. Recurso parcialmente conhecido e, nessa parte, desprovido.

(REsp 1046453/RJ, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 25/06/2013, DJe 01/07/2013) – grifo nosso.[4]

Destarte, a vedação de venire contra factum proprium também está presente tanto na parte das tratativas, como após a formação do próprio vínculo contratual. Daí porque se concluir que em todo e qualquer ato jurídico, que compreende desde a opção da jurisdição competente para o processamento da ação até a própria atuação do particular, deve necessariamente estar revestida de boa-fé.

Ademais, o Código Civil vigente, no seu art. 187, cuidou, ainda, de qualificar como ilícito o ato de qualquer particular tendente a exceder os limites impostos pela boa-fé.

Por isso é que a análise não pode estar restrita exclusivamente ao estudo de apenas uma das vertentes do princípio. A vedação do comportamento contraditório é apenas uma das inúmeras outras funções do princípio da boa-fé objetiva.

No que toca ao exercício dos direitos subjetivos, o princípio da boa-fé objetiva também se mostra com incomensurável valor, mormente como elemento limitador deste exercício, assertiva que pode ser corroborada a partir da leitura do posicionamento solidificado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, in litteris:

CIVIL. CONTRATOS. DÍVIDAS DE VALOR. CORREÇÃO MONETÁRIA. OBRIGATORIEDADE. RECOMPOSIÇÃO DO PODER AQUISITIVO DA MOEDA. RENÚNCIA AO DIREITO. POSSIBILIDADE. COBRANÇA RETROATIVA APÓS A RESCISÃO DO CONTRATO. NÃO-CABIMENTO. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS. SUPRESSIO.

1. Trata-se de situação na qual, mais do que simples renúncia do direito à correção monetária, a recorrente abdicou do reajuste para evitar a majoração da parcela mensal paga pela recorrida, assegurando, como isso, a manutenção do contrato. Portanto, não se cuidou propriamente de liberalidade da recorrente, mas de uma medida que teve como contrapartida a preservação do vínculo contratual por 06 anos. Diante desse panorama, o princípio da boa-fé objetiva torna inviável a pretensão da recorrente, de exigir retroativamente valores a título de correção monetária, que vinha regularmente dispensado, frustrando uma expectativa legítima, construída e mantida ao longo de toda a relação contratual.

2. A correção monetária nada acrescenta ao valor da moeda, servindo apenas para recompor o seu poder aquisitivo, corroído pelos efeitos da inflação. Cuida-se de fator de reajuste intrínseco às dívidas de valor, aplicável independentemente de previsão expressa.

Precedentes.

3. Nada impede o beneficiário de abrir mão da correção monetária como forma de persuadir a parte contrária a manter o vínculo contratual. Dada a natureza disponível desse direito, sua supressão pode perfeitamente ser aceita a qualquer tempo pelo titular.

4. O princípio da boa-fé objetiva exercer três funções: (i) instrumento hermenêutico; (ii) fonte de direitos e deveres jurídicos; e (iii) limite ao exercício de direitos subjetivos. A essa última função aplica-se a teoria do adimplemento substancial das obrigações e a teoria dos atos próprios, como meio de rever a amplitude e o alcance dos deveres contratuais, daí derivando os seguintes institutos: tu quoque, venire contra facutm proprium, surrectio e supressio.

5. A supressio indica a possibilidade de redução do conteúdo obrigacional pela inércia qualificada de uma das partes, ao longo da execução do contrato, em exercer direito ou faculdade, criando para a outra a legítima expectativa de ter havido a renúncia àquela prerrogativa.

6. Recurso especial a que se nega provimento.

(REsp 1202514/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/06/2011, DJe 30/06/2011)[5] – sem grifo no original.

Evidente, portanto, que o princípio da boa-fé mostra-se também como condicionante ou limitador do exercício do direito subjetivo, e, por esta ótica, a primeira ramificação a ser considerada é o da teoria do adimplemento substancial do contrato.

De acordo com a referida teoria, seria considerada injustificada e desarrazoada, ou até mesmo ilegal, a rescisão do contrato ou o uso do exceptio non adimplenti contractus (exceção do contrato não cumprido) quando a parte descumprida de um determinado negócio jurídico mostra-se insignificante em relação ao todo cumprido.

Em uma segunda perspectiva, a boa-fé objetiva também vai se mostrar como limitativo ao exercício de direitos subjetivos, desta feita enquanto diante do fenômeno da supressio.

Valendo-se do próprio conceito exposto no julgado citado, a supressio indica a possibilidade de redução do conteúdo obrigacional pela inércia qualificada de uma das partes, ao longo da execução do contrato, em exercer direito ou faculdade, criando para a outra a legítima expectativa de ter havido a renúncia àquela prerrogativa.

Em outras palavras, pela supressio, o credor que deixar de exercer, durante longo período, um direito assegurado em contrato, perde o direito de exercê-lo, por ter criado na parte devedora, em razão da própria inércia, a convicção de perdão da dívida obrigacional. Indica, portanto, a possibilidade de se considerar suprimida uma obrigação contratual, na hipótese em que o não-exercício do direito correspondente, pelo credor, gere no devedor a justa expectativa de que esse não-exercício se prorrogará no tempo.

Neste sentido:

DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. PACTUAÇÃO, POR ACORDO DE VONTADES, DE DISTRATO. RECALCITRÂNCIA DA DEVEDORA EM ASSINAR O INSTRUMENTO CONTRATUAL. ARGUIÇAO DE VÍCIO DE FORMA PELA PARTE QUE DEU CAUSA AO VÍCIO. IMPOSSIBILIDADE. AUFERIMENTO DE VANTAGEM IGNORANDO A EXTINÇÃO DO CONTRATO. DESCABIMENTO.

1. É incontroverso que o imóvel não estava na posse da locatária e as partes pactuaram distrato, tendo sido redigido o instrumento, todavia a ré locadora se recusou a assiná-lo, não podendo suscitar depois a inobservância ao paralelismo das formas para a extinção contratual. É que os institutos ligados à boa-fé objetiva, notadamente a proibição do venire contra factum proprium, a supressio, a surrectio e o tu quoque, repelem atos que atentem contra a boa-fé óbjetiva.

2. Destarte, não pode a locadora alegar nulidade da avença (distrato), buscando manter o contrato rompido, e ainda obstar a devolução dos valores desembolsados pela locatária, ao argumento de que a lei exige forma para conferir validade à avença.

3. Recurso especial não provido.

(REsp 1040606/ES, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 16/05/2012)[6] – grifo nosso.

A surrectio é uma terceira variação da boa-fé objetiva. Entendida como o oposto da supressio, a surrectio nasce a partir da atitude de uma parte que faz surgir na outra um direito não pactuado. Em outras palavras, o exercício continuado de uma situação jurídica em contradição ao que foi convencionado ou ao ordenamento jurídico faz nascer uma nova fonte de direito subjetivo estabilizada.

O Superior Tribunal de Justiça também já tombou sua inclinação sobre à vinculação desta modalidade de efeito ao princípio da boa-fé objetiva.

Neste sentido:

DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. PACTUAÇÃO, POR ACORDO DE VONTADES, DE DISTRATO. RECALCITRÂNCIA DA DEVEDORA EM ASSINAR O INSTRUMENTO CONTRATUAL. ARGUIÇAO DE VÍCIO DE FORMA PELA PARTE QUE DEU CAUSA AO VÍCIO. IMPOSSIBILIDADE. AUFERIMENTO DE VANTAGEM IGNORANDO A EXTINÇÃO DO CONTRATO. DESCABIMENTO.

1. É incontroverso que o imóvel não estava na posse da locatária e as partes pactuaram distrato, tendo sido redigido o instrumento, todavia a ré locadora se recusou a assiná-lo, não podendo suscitar depois a inobservância ao paralelismo das formas para a extinção contratual. É que os institutos ligados à boa-fé objetiva, notadamente a proibição do venire contra factum proprium, a supressio, a surrectio e o tu quoque, repelem atos que atentem contra a boa-fé óbjetiva.

2. Destarte, não pode a locadora alegar nulidade da avença (distrato), buscando manter o contrato rompido, e ainda obstar a devolução dos valores desembolsados pela locatária, ao argumento de que a lei exige forma para conferir validade à avença.

3. Recurso especial não provido.

(REsp 1040606/ES, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 16/05/2012)[7] – grifo nosso.

Por derradeiro, o fenômeno do tu quoque merece igual relevo, sobretudo por representar o quarto corolário do princípio da boa-fé objetiva. Tratando-se de uma espécie particular de proibição de comportamento contraditório, tem incidência quando uma parte adota um comportamento distinto de outro já adotado em hipótese objetivamente assemelhada.

Assim, neste fenômeno há uma clara violação de uma norma jurídica, pelo qual a parte, a posteriori, busca tirar proveito da situação, com o fito de se beneficiar.

Muito parecido com o princípio da vedação ao comportamento contraditório, o tu quoque parece ser a mais perfeita e pura expressão do que se entende por agir com boa-fé objetiva por buscar resguardar o equilíbrio entre as partes e prestações por elas assumidas[8]. Outro não seria o entendimento do STJ a este respeito:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CAMBIÁRIO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE TÍTULO DE CRÉDITO. NOTA PROMISSÓRIA. ASSINATURA ESCANEADA.

DESCABIMENTO.  INVOCAÇÃO DO VÍCIO POR QUEM O DEU CAUSA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. APLICAÇÃO DA TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS SINTETIZADA NOS BROCARDOS LATINOS 'TU QUOQUE' E 'VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM'.

1. A assinatura de próprio punho do emitente é requisito de existência e validade de nota promissória.

2. Possibilidade de criação, mediante lei, de outras formas de assinatura, conforme ressalva do Brasil à Lei Uniforme de Genebra.

3. Inexistência de lei dispondo sobre a validade da assinatura escaneada no Direito brasileiro.

4. Caso concreto, porém, em que a assinatura irregular escaneada foi aposta pelo próprio emitente.

5. Vício que não pode ser invocado por quem lhe deu causa.

6. Aplicação da 'teoria dos atos próprios', como concreção do princípio da boa-fé objetiva, sintetizada nos brocardos latinos 'tu quoque' e 'venire contra factum proprium', segundo a qual ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior ou posterior interpretada objetivamente, segundo a lei, os bons costumes e a boa-fé 7. Doutrina e jurisprudência acerca do tema.

8. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.[9]

(REsp 1192678/PR, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/11/2012, DJe 26/11/2012) – grifo nosso.

3. Conclusão.

Por tudo quanto exposto, pode-se concluir que o princípio da boa-fé objetiva, entendido no seu conceito substancial e composto por suas diversos corolários, está presente no direito como todo, seja como critério interpretativo do negócio jurídico, na forma preconizada pelo art. 113 Código Civil, seja na relação contratual, no que corresponde aos deveres da parte, vide norma do art. 422 também do Código civilista e, ainda, e talvez com ainda maior importância, no papel de limitação do direito de ação e do próprio exercício de direitos subjetivos.

4. BIBLIOGRAFIA.

DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado - Parte Geral. 11ª Edição. São Paulo: Editora Forense, 2014.

BRANCO, Paulo Gustavo GONET e MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. 10ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2015.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 31ªEdição. São Paulo: Atlas, 2015.

NEVES, Daniel Assumpção Amorim. Manual de Direito Processual Civil – Volume Único. 4ª Edição: São Paulo: Editora Método, 2014.

NOVELINO, Marcelo. Manual de Direito Constitucional – Volume Único. 9ª Edição. São Paulo: Editora Método, 2014.

TARTUCE, Flavio. Manual de Direito Civil - Volume Único. 5ª Edição. São Paulo: Editora Método, 2015.

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Sobre o autor
Fábio Gouveia Carvalho

Mestre em Ciências Jurídico-Empresariais pela Universidade de Lisboa e graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador, Professor de Processo Civil no curso de Pós-Graduação da Faculdade Centro Universitário Estácio da Bahia e Professor titular da disciplina Direito Internacional Privado da Faculdade Ruy Barbosa de Salvador-Bahia. Assessor Especial na Secretaria de Infraestrutura Hídrica e Saneamento do Estado da Bahia.

Informações sobre o texto

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