A impossibilidade de afirmação de dolo eventual com base exclusiva na presença de embriaguez ou excesso de velocidade ao volante

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06/05/2015 às 16:31
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4. Necessidade de revisão das decisões condenatórias, quando a acusação para afirmar o dolo se baseia no consumo do álcool e/ou no excesso de velocidade

Do analisado acima, o conjunto jurídico nacional tem hoje, em leitura stricta lege, que a afirmação de um homicídio na direção de veículo automotor em estado de embriaguez ou excesso de velocidade é homicídio culposo qualificado, submetendo a pessoa condenada à pena de 2 (dois) a 4 (quatro) anos de reclusão, além da suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor, o que contrasta com a pena do homicídio doloso, mesmo em sua forma simples, que tem variação entre 6 a 8 anos de reclusão.

Ocorre que, em decorrência do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, o advento de nova lei mais favorável ao acusado sofrerá aplicação retroativa para disciplinar sua situação. [12]

Com isso, o conflito surgido entre o homicídio doloso, de 6 a 20 anos de reclusão e o culposo qualificado, de 2 a 4 anos de reclusão, somente pode ser resolvido com a aplicação da lei penal mais benéfica, de sorte que mesmo às hipóteses de processos já sentenciados, desde que ainda não tenha havido extinção da pena, a única consequência possível é a aplicação da disciplina estabelecida no artigo 302 do Código de Trânsito, regulando a matéria na forma do homicídio culposo qualificado.

Destarte, evidenciasse insustentável qualquer nova acusação de homicídio doloso no trânsito, escudada na afirmação de que comprovada a ingestão de álcool ou a velocidade elevada, e, caso já haja condenação não transitada em julgado, a hipótese é de provimento do recurso para cassar e não reformar a decisão condenatória, em respeito a soberania das decisões do júri, que terá sido o órgão julgador, uma vez se tratando de homicídio doloso, remetendo o processo a julgamento do juiz de direito como homicídio culposo qualificado.

Mesmo eventual decisão já transitada em julgado não deve prevalecer, desde que ainda não tenha se dado a extinção da pena, comportando a hipótese inclusive revisão criminal, pois a continuidade de cumprimento da pena com base em condenação por homicídio doloso gera insuportável teratologia, pois, ao passo que a lei expressamente afirma estar diante de um crime culposo, é mantida uma pessoa submetida ao cumprimento de pena em um regime mais gravoso, em situação que, a bem da verdade, sempre subverteu a dogmática penal e agora é absolutamente contra legem. [13]

Qualquer outra solução decorre de afastamento da dogmática penal, dos estritos termos da lei, para agravar abusivamente o poder punitivo, o que, representa confronto sério coma estrutura democrática e republicana, pois, mesmo o clamor da opinião pública não é passível de habilitação punitiva marginal ao sistema de limites decorrentes da estrutura do Direito Penal, hipótese contrária ter-se-ia que admitir, por exemplo, que o Estado Nazista e suas ações, por contarem, na sua época, com amplo apoio da população alemã, são totalmente legítimas e inquestionáveis. [14]

Bem a propósito, vale ressaltar que, em verdade, a estrutura de contenção do poder punitivo pode ser operacionalizada contrária a eventual pressão exercida pelos meios sociais, pois exerce função profilática, inclusive de impedir que uma sociedade habilite o poder de forma abusiva, contra si própria, guiada pela irracionalidade ou sensação de medo gerado nos momentos de maior conflitividade social ou de maior implemento e exploração do discurso de pânico. [15]


4. Reflexão Final

A verificação conjugada da estrutura dogmático-penal em torno dolo, aliada à atual legislação de trânsito, torna seguro afirmar que a acusação de homicídio doloso contra quem mata por atropelamento depende necessariamente de outras variantes que não a embriaguez ou o excesso de velocidade, pois indispensável à comprovação segura da previsibilidade do resultado no momento da pratica da conduta de dirigir, somada à aceitação, neste momento, do resultado previsível.

Assim sendo, ainda que haja inegável problemática no Brasil com a violência no trânsito, a partir de fragilidade nos processos de educação cidadã que margeiam a noção do cumprimento por cada pessoa de sua tarefa no pacto de convívio social, gerando maior violência e menos tranquilidade social, o sistema jurídico penal bloqueia que o administrador tente com base nesta realidade implementar excessivamente o poder punitivo, deixando de enfrentar os reais problemas da agressividade existente na condução de veículos no País. [16]

Em outras palavras, é certo que a sociedade brasileira é violenta, como é certo que esta violência experimenta presença marcante na forma com que se dá a direção de veículos automotores no território nacional, mas também é certo que esta problemática não deita suas raízes na falta prisão para os que dirigem mal ou perigosamente, mas em uma fragilidade estrutural da noção de cidadania na sociedade brasileira, com o não desenvolvimento de uma cultura de colaboração e respeito aos espaços coletivos, mas de individualismo e contínuo desfrute pessoal, independente dos danos que possa produzir em terceiras pessoas.[17]

A inteligência da dogmática penal posterior à segunda guerra mundial é antever que ao administrador sempre será mais cômodo, em hipóteses como a em comento, nada fazer em relação às políticas públicas e simplesmente incrementar poder punitivo como resposta puramente retórica. [18]

Antevendo justamente essa tendência, em bloqueio à possibilidade de utilização desta estratégia, pois são gerados alguns campos infranqueáveis para qualquer ação punitiva, obrigando, em contrapartida, a que sejam efetivamente adotadas medidas reais de equacionamento e resolução dos conflitos sociais. [19]

No tema específico em análise, o dolo eventual não é dotado de incompatibilidade absoluta com os delitos de trânsito, o que significa afirmar que pode haver homicídio na direção de veículo automotor na modalidade dolosa, mas também é correto afirmar que presumir a presença de dolo com base na comprovação da embriaguez pelo motorista e/ou da presença do excesso de velocidade é medida de todo incorreta e sua sustentação decorre de evidente falta de compreensão dos pressupostos dogmáticos que estruturam o dolo, notadamente o eventual, atualmente sendo medida contrária à redação expressa do texto legal.

Dessa forma, há clara negativa ao implemento da estratégia retórica e ineficaz de transferência dos problemas decorrentes da direção agressiva praticada no trânsito brasileiro para o poder punitivo, impondo ao administrador que desta questão trate no seu universo próprio, o das políticas públicas de valorização da vida e do respeito ao próximo, mantendo submetida à instância punitiva claramente orientada por regra de proporcionalidade, fazendo com que a punição em geral aos delitos de trânsito seja na modalidade culposa e, somente possam as ações particularmente graves, que consigam , de forma indiscutível, preencher todas as exigências estruturais do dolo, sofrer punição nesta modalidade.

Sem dúvida há muitas dores decorrentes dos delitos de trânsito no Brasil e muitas vítimas inocentes, massacradas em uma inexplicável forma de dirigir automóveis, em que o motorista ingressa em um nível pleno de individualismo, fazendo da velocidade e da agressividade linguagens usuais.

Por outro lado, também é certo que, assim como os aprisionamentos nunca fizeram diminuir os roubos, furtos, o tráfico de drogas, não é meio hábil para ensinar os motoristas, quando dirigem seus automóveis, os valores básicos da cidadania e, com a forçada imposição do dolo eventual, quando ele não está caracterizado, com o objetivo indisfarçado de punir mais e com maior severidade, o que se faz é corromper o sistema dogmático-penal desenvolvido no raciocínio lógico-real das estruturas ontológicos. [20]

Admitir a exceção para normatizar o que é dolo eventual nos delitos de trânsito é franquear a possibilidade de deslocamento do modelo jurídico penal brasileiro para o normativista de aporte neokantista, com todos os riscos dele decorrentes de produção de abusos, em nome do que está estabelecido nas normas, como já ocorrido tantas vezes na história humana.

E não se diga se tratar de apenas uma exceção, pois quando esta é admitida, está afirmado que o sistema admite exceções e, portanto, outras podem ser criadas e rapidamente há tendência em ocorrer uma total subversão estrutural, com a ampliação do poder punitivo e a redução das, no Brasil, já bastantes limitadas políticas públicas de enfrentamento da conflitividade social.

Como lembra Eduardo Galeano, “a história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será.” É sabido o que a estrutura jurídica exclusivamente normativista, sem limites dogmáticos, representou para o poder punitivo – massacres -, portanto, nada justifica que a ela se retorne anunciando a chegada de novos massacres, sendo essencial à preservação, em última análise, da própria democracia, que os limites estruturais limitativos ao exercício do poder punitivo sejam inflexíveis e assim, dolo é dolo e culpa e culpa e neste universo nada é presumido ou fruto de pura imposição retórica decorrente de pânico social ou de pressão midiática, dependendo de atendimento às exigências lógico-reais que estruturam os conceitos.


Notas

[1] A questão é que “contra o conceito causal de ação Welzel formulou o conceito finalista. A formulação do conceito finalista da ação ocorreu dentro do marco da crítica a influência do naturalismo na ciência do Direito Penal, perceptível no conceito causal de ação, assim como na crítica à filosofia neokantiana, com sua inflexível separação do ser e do dever ser, da realidade e do valor.” CEREZO MIR, José. Obras Completas: Derecho Penal, Parte General. Lima: Aras: 2006 p.393-394, livre tradução.

[2] Ao tratar da distinção entre a Parte Geral e a Especial do Código Penal, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS traz importante aporte no esclarecimento das funções exercidas pela dogmática penal: “De um ponto de vista teórico e dogmático torna-se complexíssimo estabelecer a espécie e a natureza concretas das relações que, aos mais diversos propósitos, intercedem entre a PG e a PE do direito (e do próprio Código) penal. Seria demasiado simplista reconduzi-lo simplesmente a uma qualquer distinção ideal entre o abstrato e concreto, entre o comum e o particular ou mesmo entre a principiologia e a concretização. Importante neste enquadramento é acentuar que, de um ponto de vista funcional e racional, a autonomização de uma PG do direito penal serve o controlo racional da aplicação jurídico-penal, através do esclarecimento fundamental da matéria da regulamentação jurídica e do domínio dos critérios de valoração. De modo a evitar, até onde é possível, tanto as contradições normativas, como uma jurisprudência sentimental e, deste modo, a propiciar a ‘ descoberta’ da justiça do caso”. (DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: parte geral. 2ª edição. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p.8.)

[3] No pensamento de “Maier, o poder penal do Estado, aplicado racionalmente, resguarda certos valores essenciais para a vida de uma comunidade e foi a criação do Estado de Direito que estabeleceu as garantias contra sua utilização arbitrária. As garantias, segundo a doutrina constitucionalista, são as asseguradas para impedir que seja atingido o rol de direitos que são atributos essenciais dos membros da comunidade(....) Por sua vez, a noção do que se deve entender por ‘bem jurídico’, segundo foi claramente explicado por Rudolphi, oferece uma perspectiva liberal ou substantiva, contraposta a noção meramente metodológica, que implica o reconhecimento da importância significativa das garantias contidas no conceito de Estado de Direito.” (HENDLER, Edmundo. La razonabilidad de las leyes penales: la figura del arrepentido. Teorías Actuales en el Derecho Penal, Buenos Aires, Ad-Hoc. 1998, p. 393-394. Livre tradução).

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[4] Veja-se: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Havia um realismo jurídico marginal. Caracas/Venezuela: Monte Ávila Editores. 1993, 186p.

[5] Vale referir a observação que “toda a América está sofrendo as consequências de uma agressão aos Direitos Humanos (que chamamos de injusto jus humanista), que afeta o nosso direito ao desenvolvimento, que se encontra consagrado no art. 22 (e disposições concordantes) da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este injusto jus humanista tem sido reconhecido pela Organização dos Estados Americanos (OEA), através da jurisprudência internacional da Comissão dos Direitos Humanos, que declara ter sido violado o direito ao desenvolvimento em El Salvador e no Haiti. A existência deste injusto jus humanista não é, pois, uma afirmação ética, mas uma afirmação jurídica, reconhecida pela jurisprudência internacional. Este injusto jus humanista de violação de nosso direito ao desenvolvimento não pode ser obstacularizado, uma vez que se resguarda de seus efeitos, que se traduzem num aumento das contradições e da violência social interna que, vista em perspectiva, nos levaria a genocídios internos e à destruição do sistema produtivo, submetendo-as a um desenvolvimento ainda pior, como decorrência de uma violência incontrolável. Se a intervenção do sistema penal é, efetivamente, violenta, e sua intervenção pouco apresenta de racional e resulta ainda mais violenta, o sistema penal nada mais faria que acrescentar violência àquela que perigosamente, já produz o injusto jus humanista a que concomitantemente somos submetidos. Por conseguinte, o sistema penal estaria mais acentuando os efeitos gravíssimos que a agressão produz mediante o injusto jus humanista, o que resulta um suicídio.”(ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 4.ª ed. São Paulo: RT, 2002, p. 80-81.)

[6] Sobre o tema veja: DENBEAUX, Mark P.; HAFETZ, Jonathan. Los abogados de Guántánamo: dentro de la prisión, fuera de la ley. Barcelona: sol90IDEA, 471 p.

[7] Observe-se que “o legislador ordinário deve sempre ter em conta as diretrizes contidas na Constituição e os valores nela consagrados para definir os bens jurídicos, em razão do caráter limitativo da tutela penal. Aliás, o próprio conteúdo liberal do conceito de bem jurídico exige que sua proteção seja feita tanto pelo Direito Penal como ante o Direito Penal. Encontram-se, portanto, na norma constitucional, as linhas substanciais prioritárias para a incriminação ou não de condutas. O fundamento primeiro da ilicitude material deita, pois, suas raízes no Texto Magno. Só assim a noção de bem jurídico pode desempenhar função verdadeiramente restritiva. A conceituação material de bem jurídico implica o reconhecimento de que o legislador eleva à categoria de bem jurídico o que já na realidade social se mostra como um valor. Essa circunstância é intrínseca à norma constitucional, cuja virtude não é outra que a de retratar o que constitui os fundamentos e os valores de uma determinada época. Não cria os valores a que se refere, mas se limita a proclamá-los e dar-lhes um especial tratamento jurídico.” (PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 92-93.)

[8] Destaque-se que "o dolo eventual conta com três requisitos: (a) representação do resultado + (b) aceitação desse resultado + (c) indiferença frente ao bem jurídico. Na culpa consciente temos dois requisitos: o agente representa o resultado como possível, mas confia que não vai acontecer (confiança em sua habilidade para evitá-lo). Não o aceita. Não atua com indiferença frente ao bem jurídico. No dolo eventual o agente, mesmo sabendo certo o resultado, não se detém. Na culpa consciente caso o agente representasse como certo o resultado não prosseguiria (não atuaria, porque não lhe é indiferente o bem jurídico)." MOLINA, Antonio García-Pablos & GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 378.

[9] No sentido da necessidade de previsibilidade em relação ao dolo eventual, vale observar que “poder-se-á dizer que uma pessoa agiu com dolo eventual se, tendo previsto uma certa consequência como possível, a sua atitude foi mais ou menos: ‘aconteça o que acontecer, eu actuo’” (BELEZA, Teresa Pizarro. Direito Penal. Lisboa: AAFDL 1980, p. 201.).

[10] A construção do Direito penal liberal coloca em manifesto que “a autonomia da vontade é o principio de movimento próprio da subjetividade, independente da realidade. Deste modo aparece em contradição com a representação causal determinista, desde a qual é impossível qualquer imputação moral ou jurídica. A autonomia, assim entendida, é irrecusável em vários sentidos, como determinação livre do sujeito do processo na determinação de seu conteúdo. Somente sobre esta ideia de sujeito-vontade livre é pensável o conceito de imputação. Deste modo se pode dar a inter-relação entre o sujeito espiritual por uma parte, a realidade por outra e o Direito e sua negação, isto é, o ilícito. O Direito deve considerar o sujeito com um ‘ser da liberdade’, no qual, na realidade objetiviza sua autonomia com outros sujeitos tão autônomos como ele, mostrando que o injusto pessoal não é outra coisa que um relativo defeito nesta autonomia que requer uma objetivização livre da vontade na realidade.” DONNA, Edgardo Alberto. Derecho Penal: Parte General. Tomo I. Santa-Fe: Rubinzal-Culzoni, 2006, p. 27. Livre tradução.) 

[11] Já anteriormente a reforma no Código de Trânsito a doutrina especializada deixava patente que sob enfoque de direito positivo, considerando a regulamentação do dolo eventual, da parte geral do Código Penal brasileiro: “a questão não é tão simples como se pensa. Essa fórmula criada, ou seja, embriaguez + velocidade excessiva = dolo eventual, não pode prosperar. Não se pode partir do princípio de que todos aqueles que dirigem embriagados e com velocidade excessiva não se importam em causar a morte ou mesmo lesões em outras pessoas. O dolo eventual, de acordo com, a teoria do assentimento, adotada na segunda parte do inciso II do art. 18 do Código Penal, reside no fato de não se importar o agente com a ocorrência do resultado por ele antecipado mentalmente.” (GRECO, Rogério. Curso de Direito penal: Parte Especial: crimes contra a pessoa. Niterói/RJ: Impetus, 2006, p. 165.)

[12] A propósito, vigora um “princípio de irretroatividade da lei e sua exceção: consagra-se aqui o princípio constitucional da irretroatividade da lei penal, ressalvada a retroatividade favorável ao acusado – ‘ a lei penal não retroagirá salvo para beneficiar o réu’ (art. 5º, XL, CF; art. 2º, CP).” (PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 8ª edição. São Paulo: revista dos Tribunais, 2008, p. 132.)

[13] Não se pode esquecer que “segundo MOMMSEN, o direito penal começa quando a lei do Estado coloca limites ao arbítrio dos magistrados. É, em sustância, a mesma idéia que pode encontrar-se expressada em uma obra clássica da matéria — clássica no sentido de sua perdurabilidade, não no de classificação de escolas que alguma vez se propôs com sentido pejorativo —. CARRARA, em seu monumental Programa, apontava que ‘a ciência criminal bem entendida é o supremo código da liberdade’.” (HENDLER Edmundo S.. Las garantías penales y procesales: un enfoque histórico-comparado; Presentación. Buenos Aires: Del Puerto, 2004, pág. I - II.).

[14] Interessante lembrar que “Morrison nega rotundamente esta explicação do caminho especial – o Sonderweg do nazismo y a patologização do holocausto com evidências de que as pessoas que participaram ativamente em estes crimes eram normais y logo muitos deles retornaram a sua vida normal sem dificuldades” ZAFFARONI, Eugenio Raul. La palavra de los muertos: conferencias de criminologia cautelar. Buenos Aires: Ediar, 2011, p. 309. Livre tradução.

[15] É fato certo que “o recurso à intervenção penal cabe apenas quando indispensável em virtude de que tem o Direito Penal caráter subsidiário, devendo constituir a ‘ultima ratio’ e por isso ser fragmentário, pois o antijurídico penal é restrito em face do antijurídico decorrente do Ordenamento, por ser obrigatoriamente seletivo, incriminando apenas algumas condutas lesivas a determinado valor, as de grau elevado de ofensividade. A opção de se valer o legislador do Direito Penal, por seu aspecto simbólico, não se justifica nem mesmo na proteção de valores de patamar constitucional, não se legitimando muito menos seja o instrumento preferencial para imposição de interesse de menor relevo, como sucede hodiernamente com a denominada ‘administrativização do Direito Penal’, ou com a expansão exagerada para figuras de perigo abstrato e de formas culposas, às vezes sem resultado material significativo, com o recurso a elementos normativos com referência a outras leis, em avalanche de incriminações, própria de uma ilusão penal. Assim, sendo possível a tutela por via extrapenal esta deve prevalecer. É a tendência que se verifica na Itália com o processo de despenalização, que transformou delitos e contravenções em infrações administrativas, especialmente porque muitas destas infrações tinham cunho penal por ausência de previsão de prescrições de cunho administrativo. Dessa forma, o Direito Penal é de ser regido pelo princípio da intervenção mínima, subsidiária e fragmentária, como extrema ratio.”(REALE JUNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal. Vol. I, Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 26).

[16] Nunca é demais referir que “notabilizam-se as políticas criminais inócuas pela edição contínua de leis penais novas mais severas e o corte de direitos e garantias fundamentais; o Estado assim procede para compensar sua falida política preventiva-social que é pouca coisa mais que zero (ou nula); ainda como compensação para os eu déficit preventivo segue a tendência do encarceramento massivo sem critério, aprisionando alopradamente inclusive os que não praticam crimes violentos; ostenta violência epidêmica (10 ou mais assassinatos para cada 100 mil pessoas) e boa parcela dessa tragédia jus-humanitária se deve ao quase absoluto descontrole da polícia, da Justiça e das prisões, que tanto matam como morrem numa ambiência laboral desumana, arbitrária, corrupta e violenta. No Brasil praticamos o modelo político-criminal mais aberrante possível porque esquecemos uma lição básica de Beccaria, que enfocava o direito penal como ultima et extrema ratio: o direito penal só faz sentido quando outros ramos do direito assim como outras medidas falharem.” (GOMES, Luiz Flávio. Beccaria (250 anos) e o drama do castigo penal: civilização ou barbárie. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 327.)

[17] Registre-se que “a primeira verificação importante é que argumentos, ainda que aparentemente bem intencionados, mas que produzam a ampliação do poder punitivo, não servem ao tratamento da questão criminal e são mecanismos de reafirmação de estigmas e preconceitos que fazem a humanidade dividir-se entre os cidadãos-fim, receptores dos bens da terra e usufrutuários de todos os confortos e, por outro lado, cidadãos-meio, a quem compete meramente existir para a geração de recursos que possibilitem o bem-estar dos outros, estando continuamente submetidos a limitações de direitos e garantias para que se possa aproximá-los ao máximo da imagem de um objeto.” EL TASSE, Adel. Criminologia. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 79.)

[18] A título de sistematização convém observar que “estrategicamente, portanto, exige-se a atuação do jurista em frear a lógica de contínuo crescimento do poder punitivo, pela já referida proclamação de sua integral ilegitimidade e manuseio das estruturas jurídicas como força de contenção do poder punitivo, o que somente o finalismo de WELZEL, conduzido ao seu extremo, no que se refere à teoria do delito e levado também à teoria da pena, permite, pois imediatamente lhe bloqueia a parte mais irracional, não permitindo que a atividade legislativa seja implementada por qualquer nível de pressão social para estabelecer uma lógica inversa.” EL TASSE, op.cit., p. 11.)

[19] Vale lembrar que justamente “o Poder Judiciário é o principal guardião da cidadania, por ser o órgão do Estado incumbido de proteger o particular e a sociedade contra abusos de quem, transitoriamente, detém o poder, ou mesmo, proteger os particulares dos desrespeitos e agravos perpetrados uns contra os outros. É o Poder Judiciário que tem a função de garantir à sociedade que o conjunto de direitos básicos da cidadania será rigorosamente observado, não sendo aceitas atitudes contrárias aos interesses maiores da mesma. (TASSE, Adel El. A “crise” no Poder Judiciário. Curitiba: Juruá, 2001, p. 55.)

[20] Em imagem de feliz crítica ao idealismo normativo no Direito Penal, tem-se que: “construem-se sobre uma norma que indica como deve ser a pena e para que deva servir. Propõem aos juízes que resolvam segundo como cada autor crê que deve ser a pena. Mas os juízes não tem outro recurso que impor as penas tais como são e não como devem ser, porque assim não são.” (ZAFFARONI, Eugenio Raul. Estructura Basica del Derecho Penal. Buenos Aires: Ediar 2009, p. 20. Livre tradução.)

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Sobre o autor
Adel El Tasse

Professor de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação, professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná e no Curso Cers, mestre e doutor em Direito Penal, coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais e do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos do Município de Curitiba.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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