I- ANTECEDENTES HISTÓRICOS
A teoria finalista da ação, também conhecida como teoria do domínio do fato, aduz resumidamente que ninguém pode responder penalmente sobre um fato que não detém domínio; tal teoria surgiu em meados de 1939, e o seu propagador foi o jurista alemão Hans Welzel, é dele a tese de que, nos crimes dolosos é autor quem tem o controle final do fato (Bitencourt, 2004).
Posteriormente, tal teoria foi estudada e aperfeiçoada na Alemanha pelo Doutrinador e Jurista Claus Roxin, em 1963, em um livro de 700 (setecentas) páginas denominado “Taterschaft und Tatherrschaft”; tal teoria, por comportar um raciocínio mais lógico e justo do que a simples adequação dos fatos ao tipo penal, foi amplamente empregada no julgamento e condenação dos nazistas em decorrência dos crimes por eles perpetrados durante a Segunda Guerra Mundial; na Argentina, em relação aos comandantes militares; no Peru, em relação ao ex-presidente Fujimori.
No Brasil, a teoria do domínio do fato tornou-se mais evidente no julgamento da Ação Penal 470, distinta popularmente como o “Mensalão”, entretanto também é aplicada por juízes no que se relacionam a crimes que envolvem todos os tipos de crimes e também de atos infracionais quando há menores envolvidos, sob o comando de maiores.
O Ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Dr. Joaquim Barbosa, além de outros ministros, no relevante caso que se tornou popular pelo nome de “Mensalão”, condenaram o ex-ministro da casa civil do Governo Brasileiro, José Dirceu, resumidamente, em virtude de que este chefiava aludida organização criminosa, e tinha o domínio do fato, ou seja, a participação na empreitada criminosa, da parte do ex-ministro da casa civil, era comprovadamente relevante, conforme decidiram os Ministros do STF, não um mero acaso ou participação eventual; isso é o domínio do fato.
II – O POSICIONAMENTO DE CLAUS ROXIN SOBRE O JULGAMENTO DO MENSALÃO
Isso basta para condenar alguém? Foi o que se perguntaram repórteres brasileiros ao professor Claus Roxin (autor da teoria do domínio do fato), sobre a condenação do ex-ministro José Dirceu, que em sua resposta destacou: “A participação no comando de esquema tem de ser provada” (ROXIN, 2012), ou seja, segundo o renomado doutrinador, somente ocupar alguma posição de destaque em organização criminosa, não basta para condenação, é necessária prova convincente da participação ativa do acusado em relação aos fatos que são acusados.
A teoria do domínio do fato foi aplicada no julgamento da Ação Penal 470, e o doutrinador Claus Roxin explicou-a brevemente em uma entrevista exclusiva; esclareceu a posição dele em relação ao julgamento do “Mensalão” (ROXIN, 2012), nos termos seguintes:
A teoria do domínio do fato não foi criada por mim, mas fui eu quem a desenvolveu em todos os seus detalhes na década de 1960, em um livro com cerca de 700 páginas. Minha motivação foram os crimes cometidos à época do nacional-socialismo. A jurisprudência alemã costumava condenar como partícipes os que haviam cometido delitos pelas próprias mãos - por exemplo, o disparo contra judeus, enquanto sempre achei que, ao praticar um delito diretamente, o indivíduo deveria ser responsabilizado como autor. E quem ocupa uma posição dentro de um aparato organizado de poder e dá o comando para que se execute a ação criminosa também deve responder como autor, e não como mero partícipe, como rezava a doutrina da época. Posteriormente, o Bundesgerichtshof [equivalente alemão de nosso Superior Tribunal de Justiça, o STJ] também adotou a teoria para julgar os casos de crimes na Alemanha Oriental, especialmente as ordens para disparar contra aqueles que tentassem fugir para a Alemanha Ocidental atravessando a fronteira entre os dois países. A teoria também foi adotada pelo Tribunal Penal Internacional e consta em seu estatuto.
Ao ser questionado se seria possível utilizar a teoria do domínio do fato para fundamentar a condenação de um acusado, presumindo-se a sua participação no crime a partir do entendimento de que ele dominaria o fato típico por ocupar determinada posição hierárquica, respondeu (ROXIN, 2012):
Não, de forma nenhuma. A pessoa que ocupa uma posição no topo de uma organização qualquer tem que ter dirigido esses fatos e comandado os acontecimentos, ter emitido uma ordem. Ocupar posição de destaque não fundamenta o domínio do fato. O 'ter de saber' não é suficiente para o dolo, que é o conhecimento real e não um conhecimento que meramente deveria existir. Essa construção de um suposto conhecimento vem do direito anglo-saxônico. Não a considero correta.
No caso de Fujimori, por exemplo, ele controlou os sequestros e homicídios que foram realizados. Ele deu as ordens. A Corte Suprema do Peru exigiu as provas desses fatos para condená-lo. No caso dos atiradores do muro, na Alemanha Oriental, os acusados foram os membros do Conselho Nacional de Segurança, já que foram eles que deram a ordem para que se atirasse em quem estivesse a ponto de cruzar a fronteira e fugir para a Alemanha Ocidental.
Posteriormente, ao ser indagado se seria aceitável a adoção da teoria dos aparelhos organizados de poder, para fundamentar a condenação por prática de crimes, que de maneira suposta, seriam cometidos por dirigentes governamentais em uma democracia, respondeu:
Em princípio, não. A não ser que se trate de uma democracia de fachada, onde é possível imaginar alguém que domine os fatos específicos praticados dentro deste aparato de poder. Numa democracia real, a teoria não é aplicável à criminalidade de agentes do Estado. O critério com que trabalho é a dissociação do Direito (Rechtsgelöstheit). A característica de todos os aparatos organizados de poder é que estejam fora da ordem jurídica. Em uma democracia, quando é dado o comando de que se pratique algo ilícito, as pessoas têm o conhecimento de que poderão responder por isso. Somente em um regime autoritário pode-se atuar com a certeza de que nada vai acontecer, com a garantia da ditadura.
Aquele que tem o domínio do fato, ou seja, aquele que está no comando efetivo e dá a ordens eficazes para a consecução de determinado empreendimento, que resulte em prática(s) criminosa(s), ainda que não participe diretamente da execução dos atos, não pode ser avaliado como um simples partícipe, mas deve ser considerado como o verdadeiro criminoso que possui o domínio do fato.
III – A NOVEL APLICAÇÃO DA TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO NA ESFERA TRABALHISTA
Tal teoria inovadora melhorou muito a qualidade dos julgamentos por parte dos juízes que a aplicam, nos casos criminais que lhes são submetidos a julgamento; recentemente, no Brasil, tal teoria tem sido bem utilizada, também nos casos relacionados às constatações de ocorrências de trabalho análogo ao trabalho escravo, onde, além de múltiplas violações contidas nas disposições da CLT, geralmente a vida a segurança e a liberdade dos trabalhadores são também vulneradas.
É fato que, no tempo presente, muitas pessoas ainda são vítimas de criminosos que articuladamente impõem a humildes trabalhadores, incautos ou desinformados, formas de trabalho análogas ao trabalho escravo, e quase sempre, tais vítimas somente descobrirão que serão submetidas a tais circunstâncias quando já estiverem no local de trabalho, já que tais “empregos” implicam entre outras coisas no uso de violência física e/ou moral, pois que são indignas condições habitualmente existentes nos locais de trabalho em condição análoga à de escravo.
Segundo estabelece a Instrução Normativa 91 de 05 de outubro de 2011 do Ministério do Trabalho e Emprego, que dispõe sobre a fiscalização para a erradicação do trabalho em condição análoga à de escravo, e dá outras providências, os Auditores fiscais do Trabalho são os agentes governamentais responsáveis pela fiscalização e autuação dos infratores, tal instrução baliza os juízes trabalhistas e criminais para que possam verificar se houve a situação de trabalho análogo ao de escravo, nos casos concretos.
Segue abaixo a transcrição normativa:
Art. 2 º. Serão observados pelos Auditores-Fiscais do Trabalho, na fiscalização para a erradicação do trabalho em condição análoga à de escravo, em qualquer atividade econômica urbana, rural ou marítima, e para qualquer trabalhador, nacional ou estrangeiro, os procedimentos previstos na presente Instrução Normativa.
Art. 3º. Para os fins previstos na presente Instrução Normativa, considera-se trabalho realizado em condição análoga à de escravo a que resulte das seguintes situações, quer em conjunto, quer isoladamente:
I – A submissão de trabalhador a trabalhos forçados;
II - A submissão de trabalhador à jornada exaustiva;
III – A sujeição de trabalhador a condições degradantes de trabalho;
IV – A restrição da locomoção do trabalhador, seja em razão de dívida contraída, seja por meio do cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, ou por qualquer outro meio com o fim de retê-lo no local de trabalho;
V – A vigilância ostensiva no local de trabalho por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
VI - A posse de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 1º. As expressões referidas nos incisos de I a VI deverão ser compreendidas na forma a seguir:
a) “trabalhos forçados” – todas as formas de trabalho ou de serviço exigidas de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente, assim como aquele exigido como medida de coerção, de educação política, de punição por ter ou expressar opiniões políticas ou pontos de vista ideologicamente opostos ao sistema político, social e econômico vigente, como método de mobilização e de utilização da mão-de-obra para fins de desenvolvimento econômico, como meio para disciplinar a mão-de-obra, como punição por participação em greves ou como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa;
b) “jornada exaustiva” - toda jornada de trabalho de natureza física ou mental que, por sua extensão ou intensidade, cause esgotamento das capacidades corpóreas e produtivas da pessoa do trabalhador, ainda que transitória e temporalmente, acarretando, em consequência, riscos a sua segurança e/ou a sua saúde;
c) “condições degradantes de trabalho” – todas as formas de desrespeito à dignidade humana pelo descumprimento aos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador, notadamente em matéria de segurança e saúde e que, em virtude do trabalho, venha a ser tratada pelo empregador, por preposto ou mesmo por terceiros, como coisa e não como pessoa;
d) “restrição da locomoção do trabalhador” - todo tipo de limitação imposta ao trabalhador a seu direito fundamental de ir e vir ou de dispor de sua força de trabalho, inclusive o de encerrar a prestação do trabalho, em razão de dívida, por meios diretos ou indiretos, por meio de e coerção física ou moral, fraude ou outro meio ilícito de submissão;
e) “cerceamento do uso de qualquer meio de transporte com o objetivo de reter o trabalhador” – toda forma de limitação do uso de transporte, particular ou público, utilizado pelo trabalhador para se locomover do trabalho para outros locais situados fora dos domínios patronais, incluindo sua residência, e vice-versa;
f) “vigilância ostensiva no local de trabalho” – todo tipo ou medida de controle empresarial exercida sobre a pessoa do trabalhador, com o objetivo de retê-lo no local de trabalho;
g) “posse de documentos ou objetos pessoais do trabalhador” – toda forma de apoderamento ilícito de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o objetivo de retê-lo no local de trabalho;
§2º. Ao identificar qualquer infração que possa caracterizar uma ou mais das hipóteses previstas nos incisos I a VI do caput, o Auditor-Fiscal do Trabalho deverá lavrar os respectivos autos de infração, indicando de forma explícita no corpo de cada auto que aquela infração, vista em conjunto com as demais, caracteriza trabalho realizado em condição análoga à de escravo.
(grifos nossos)
Conforme previsão no artigo 3º, II, da Instrução Normativa 91 de 05 de outubro de 2011 do Ministério do Trabalho e Emprego, que segundo o referido dispositivo, considera-se trabalho em condição análoga à de escravo aquele que resulte em submissão de trabalhador a jornada exaustiva.
Ou seja, se somente for constatada a jornada exaustiva de trabalho, tal fato pode gerar lesão à dignidade da pessoa humana e à integridade física do empregado.
Caso o empregador submeta, com habitualidade, o empregado a jornadas de trabalho superiores ao limite legal, (dez horas, art. 59, CLT), o estará submetendo a condição análoga à de escravo, por exigir-lhe jornadas excessivas, ainda que remunere tais horas suplementares (OLIVEIRA, 2010), vejamos;
Caso o empregador exija trabalho suplementar, ainda que respeitado o limite do art. 59 da CLT, e deixe de remunerá-lo se estará diante de trabalho em condição análoga à de escravo, não mais por excesso de jornada, mas por submeter o empregado a condições de trabalho degradante, qual seja, o trabalho sem remuneração.
A escravidão hodierna no Brasil sujeita o empregado a tarefas humilhantes, e geralmente são privados do livre-arbítrio, e muitas vezes sem os aprovisionamentos de proteção individual (EPI) na zona rural e também na zona urbana.
Além destes fatos degradantes e humilhantes, para colocarem os trabalhadores nessa vexatória e desumana posição, tais empregadores criminosos, muitas vezes obrigam-lhes a se comprometerem a pagar uma dívida injusta interminável para liquidar o valor referente às passagens, ou transporte até o local onde trabalham, além de algumas vezes oferecem escassa alimentação que servem apenas para sobreviverem; a estadia inadequada e insalubre igualmente faz parte desse degradante quadro que são submetidas essas pessoas.
IV - DA COMPETÊNCIA PARA O JULGAMENTO DESTAS VIOLAÇÕES
Constituem-se em crime no Brasil:
Art. 149 do Código Penal Brasileiro:
Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho (...).
Pena: reclusão, de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência.
Como o trabalho escravo, ou análogo, também é crime previsto em legislação internacional, segundo preceitua o artigo 109, V da Constituição Federal Brasileira, e também porque somos signatários de legislação internacional, como as convenções da OIT e o Estatuto de Roma, é patente interesse da União; desta maneira, como já decidira o Supremo Tribunal Federal, a competência para julgamento de crimes desta natureza é da Justiça Federal, porque há interesse da União, porque é um crime contra organização do trabalho (ANDRADE, 2010).
Na esfera trabalhista, como a Justiça do Trabalho é Federal, não há discussões sobre a competência para o julgamento de fatos relacionados à matéria.
V - DA IMPERIOSA NECESSIDADE DA APLICAÇÃO DA TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO NA ESFERA TRABALHISTA JUDICIAL E ADMINISTRATIVA
Os “empregadores” que impõem o trabalho análogo ao trabalho escravo, evidentemente não se preocupam com tais restrições legais, pois geralmente alegam, em suas defesas, que estão exercendo o princípio da livre iniciativa, mas, esquecem do princípio da dignidade humana, asseverando que desconhecem a real situação em que os humilhados trabalhadores se encontram, pois muitas vezes “terceirizam” ou “quarteirizam” a mão de obra escrava, com a criação de pessoas jurídicas “fantasmas” apenas para justificarem o suposto desconhecimento das situações que são submetidos os trabalhadores.
Para que não saiam ilesos os tais vulneradores da legislação trabalhista, mostra-se como uma real necessidade a aplicação da teoria do domínio do fato, acima mencionada, também nos casos em que se verifica a ocorrência do trabalho análogo ao trabalho escravo.
Qualquer pessoa, antes de ser empresário ou trabalhador, é um ser humano, e como tal, somente por esse fato ele é dotado de dignidade, o Estado é “a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um certo povo, situado em um determinado território” (DALARI, 1995) e disso “o bem comum” a humanidade não se pode abrir mão, sob qualquer contexto.
Se o ganancioso empregador, nesses casos tenta fazer prevalecer o fundamento da República calcado na livre iniciativa (artigo 1º, IV, da CF/1988), não deve olvidar de um fundamento maior, é dele que decorrem todos os demais, ou seja, todos os direitos não tem sentido de existir se não respeitarmos os princípios da dignidade do ser humano, o único princípio fundamental que não permite embate com nenhum outro princípio.
Tais empregadores criminosos, muitas vezes retém os documentos dos trabalhadores/escravos que, em regra, ficam geograficamente isolados da maioria da população local, o que ainda obsta extremamente a fiscalização das autoridades em relação à constatação de tais esses fatos (UNICAMP, 2014), que na maioria dos casos, em virtude dessas circunstâncias acima mencionadas, agem fundamentados em denúncias.
VI – IMPEDIR A PERPETRAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO É PROTEGER OS DIREITOS HUMANOS
No primeiro semestre do ano de 2014, segundo informou o Ministério do Trabalho e emprego, foram realizadas 57 (cinquenta e sete) operações com o intuito de fulminar o trabalho escravo, tais operações culminaram com resgate de 421 (quatrocentos e vinte e um) trabalhadores na condição idêntica à de escravo e com autuação de 109 (cento e nove) patrões envolvidos, sobretudo nos estados de Minas Gerais que foi o campeão em trabalhadores resgatados pelos auditores fiscais, Espírito Santo que ficou em segundo, com 86 resgatados em apenas uma ação fiscal, Goiás, São Paulo e Pará, principalmente relacionados às atividades da pecuária, indústria, agricultura, produção de carvão vegetal e construção civil respectivamente (BRASIL, 2014).
O “empregador” nessas empreitadas criminosas age com nítido desrespeito aos direitos civis e trabalhistas dessas vítimas/trabalhadores, tais Direitos são conquistas alcançadas com muitas lutas dos cidadãos brasileiros e do Mundo (J. Pinsky & C. B. Pinsky, 2009)
Ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei: é, em resumo, ter direitos civis. É também participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma velhice tranquila.
Fábio Konder Comparato definiu a teoria jusnaturalista como:
Aquela em que fundamenta os direitos humanos em uma ordem superior universal, imutável e inderrogável...todos os seres humanos, apesar das inúmeras diferenças biológicas e culturais que os distinguem entre si, merecem igual respeito, como únicos entes no mundo capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza...ninguém, nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação pode afirmar-se superior aos demais. (COMPARATO, 2008).
Situações de trabalhadores explorados como estas que aludimos, foi objeto de uma reportagem exibida no programa chamado Profissão Repórter, transmitido pela Rede Globo de Televisão, na qual foi exposta a precária situação de trabalhadores imigrantes, principalmente bolivianos, na Zona Norte de São Paulo, que em razão da situação de penúria financeira que viviam em sua Pátria natal, submetiam-se voluntariamente a jornadas de trabalho extenuantes e a condições sub-humanas de trabalho. Tais imigrantes bolivianos, prestavam serviços em pequenas oficinas, costurando roupas a serem destinadas a grandes marcas de roupas (GLOBO, 2012).
Os fatos acima mencionados foram objeto de investigações parlamentares por meio da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada para averiguar a existência do trabalho escravo ou análogo ao de escravo, em zonas rurais e urbanas, em todo o território; foram investigadas por esta CPI grandes confecções que se aproveitavam de mão de obra análoga a de escravo, em particular de imigrantes bolivianos, paraguaios e peruanos.
VII - PEQUENAS OFICINAS, GRANDES VIOLADORAS
Um coordenador do Grupo de Combate ao Trabalho Escravo Urbano da Secretaria Regional do Trabalho e Emprego/SP, LUÍS ALEXANDRE FARIA em reunião que ocorrera na referida CPI, em 11/07/2012, ressaltou como se dava o modus operandi das grandes marcas de fabricação e distribuição de roupas, no Brasil e no exterior, que exploravam a mão-de-obra análoga à de escravo em nosso território, (FARIA, 2012) in verbis:
(...) E aí já entrando numa das tônicas do nosso trabalho, a Superintendência em São Paulo, em conjunto com os demais parceiros da Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo, tem procurado priorizar, nas ações de combate ao trabalho escravo, aquelas grande redes, tanto atacadistas quanto varejistas do vestuário, que é a nossa atividade mais epidêmica de exploração de trabalhador em condição análoga à de escravo no Estado São Paulo; priorizar as grandes empresas ou as grandes redes que, descuidando da sua cadeia produtiva, permitem, por ação ou por omissão, que a sua rede de abastecimento de peças seja alimentada por oficinas que superexploram o trabalhador em condição vulnerável, principalmente o estrangeiro vindo das regiões dos Andes, mas também do Paraguai, do Peru e assim por diante. Ficamos muito à vontade em comparecer à CPI, até porque o começo do nosso trabalho, do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo Urbano em São Paulo decorreu da inspiração também de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, no caso, a Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara Municipal de São Paulo, que foi, em 2005, a caixa de ressonância da sociedade paulista e paulistana com relação àquelas várias denúncias, àquelas frequentes denúncias que chegavam até o Ministério do Trabalho, até a Polícia, até os meios de imprensa, com relação à exploração de trabalhadores em condição análoga à de escravos. Bem, a Câmara dos Vereadores de São Paulo realizou essa CPI. O relatório gerado pela CPI eu vou deixar disponível aqui, para a CPI da Câmara também. É um material bastante rico e bastante elucidador com relação às causas e aos efeitos desse problema da exploração dos trabalhadores na cadeia do vestuário. Uma das primeiras, um dos introitos do relatório final da CPI do Trabalho Escravo da Câmara dos Vereadores é o diagnóstico dessa situação. E eles definem que o problema decorre do fato de que o poderoso mercado de vestuário em São Paulo se escora fortemente numa ponta fraca: a da mão de obra análoga à escravidão. Enquanto os números do comércio impressionam pela pujança, um grande número de trabalhadores, premidos pela necessidade e vulnerabilidade em que se encontram, se submetem a condição desumana. Em um outro trecho do relatório da CPI do Trabalho Escravo da Câmara dos Vereadores, eu queria apontar um outro ponto muito explorado pela CPI, lá no ano de 2005, foi a frustração que os membros da CPI tiveram por conta de que todas as ações que vinham sendo empreendidas tanto pela Polícia Civil, Polícia Federal, Ministério do Trabalho e Ministério Público do Trabalho, essas ações, apesar de muito frequentes e muito intensas, estourando aquelas oficinas clandestinas que mantinham trabalhadores em situação análoga à de escravos, essas ações se mostraram absolutamente ineficazes porque não chegavam ao ponto fulcral da questão, que é, nas auditorias, nas ações do poder público, responsabilizar aquelas que são as empresas verdadeiramente beneficiárias da mão de obra desses trabalhadores. Essa é a parte que as empresas não declaram, quando são procuradas pela imprensa ou quando são questionadas na CPI: não declaram que têm um departamento... Elas não são simplesmente empresas do ramo varejista, ou do ramo do comércio, ou do ramo atacadista. Elas são empresas que desenvolvem uma peça, fixam quais são os insumos que devem ser aplicados na produção daquela peça, fixam os prazos, fixam o estilo. Tudo o que diz respeito àquela produção e que são condições que vão ser reproduzidas nas oficinas de costura clandestinas é fixado pela empresa-mãe dessa rede.
A dita CPI concluiu que os trabalhadores estrangeiros que trabalhavam para grandes marcas distribuidoras de roupas, aproximadamente 15 (quinze) horas por dia, durante 02 (dois) a 04 (quatro) meses apenas o faziam para pagarem a “entrada” no nosso País. Infantes, no inverno, tomavam banhos gelados, em banheiros que eram usados por todos, sem qualquer distinção; os trabalhadores moravam e trabalham no mesmo local, não possuíam os direitos trabalhistas assegurados pelos empregadores, os locais de trabalho não tinham condições de higiene e segurança, e além de tudo isso o “salário” pago, nos casos averiguados pela CPI variava entre R$ 274,00 (duzentos e setenta e quatro reais) e R$ 387,00 (trezentos e oitenta e sete reais). (CÂMARA DOS DEPUTADOS FEDERAIS, 2012).
VIII - CONCLUSÕES
Trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho, restrição da locomoção, vigilância ostensiva ou posse de documentos com o fim de reter o operário no local de trabalho são particularidades que podem sugerir a existência de trabalho comparável ao trabalho escravo.
No âmbito da seara trabalhista é muito bem vinda, desde que seja muito bem aplicada, a teoria do domínio do fato, aprimorada por Claus Roxin, dantes, somente consagrada na esfera penal.
Somente com a aplicação da teoria do domínio do fato, grandes fábricas e distribuidoras de roupas puderam ser punidas em nosso Território, nas esferas administrativa, penal e trabalhista, pois os trabalhadores violados eram empregados de empresas “terceirizadas” e “quarteirizadas”.
Agora aquele que não fiscalizar as reais condições de trabalho dos fornecedores de produtos e/ou mão de obra, e que possuam voz de comando na escala de produção dos produtos, quando submeterem os obreiros a condições degradantes de trabalho, que estão exemplificativamente apontadas na Instrução Normativa 91/2011 do Ministério do Trabalho e Emprego, está sujeito a responder integralmente, e não subsidiariamente, pelos danos morais e materiais causados ao empregado.
A responsabilidade em indenizar tais trabalhadores vulnerados, por parte daquele que tem a autêntica administração, ou o domínio do fato, deve ser irrestrita, ainda que a empresa prestadora dos serviços e/ou de mão de obra seja “terceirizada” ou “quarteirizada”, porquanto somente assim serão minimamente preservados os Direitos Trabalhistas e a dignidade dos trabalhadores brasileiros e estrangeiros que em nossa Pátria laborem.
Bibliografia
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