Dispõe o art. 5º, incisos X e XII, da CF:
“X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”
“XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;”
Sem embargo de especificação do seu âmbito de conformação, a inviolabilidade de dados bancários, na expressão de GILMAR MENDES[1], “consiste na obrigação imposta aos bancos e a seus funcionários de discrição, a respeito de negócios, presentes e passados, de pessoas com que lidaram, abrangendo dados sobre a abertura e o fechamento de contas e sua movimentação”.
De todo modo, a inviolabilidade de dados bancários é direito fundamental do indivíduo.
Mas como se bem sabe, não existem direitos absolutos (nem mesmo os fundamentais!).
Para tanto, deve ser visto que ao lado do direito fundamental em tela foi também previsto na Constituição, em seu art. 192, o Sistema Financeiro Nacional, cuja diretriz esta voltada “a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade”.
Nesse diapasão, havendo tensão entre o interesse individual e o interesse da coletividade, pode o direito fundamental da inviolabilidade de dados bancários ser mitigado.
Conforme disposição do art. 10, inciso IX, da Lei nº 4.595/64, compete privativamente ao Banco Central “exercer a fiscalização das instituições financeiras”, através da autorização de seu funcionamento e fiscalização de suas atividades, nos termos do art. 18 da mesma Lei.
De outra sorte, nos termos da LC nº 105/2001 (dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras), em seu artigo inaugural está dito que “as instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados”, sendo que na continuidade do seu art. 2º: “o dever de sigilo é extensivo ao Banco Central do Brasil, em relação às operações que realizar e às informações que obtiver no exercício de suas atribuições”.
Continuando, na ressalva do §1º, do art. 2º, da LC nº 105/2001:
“§ 1o O sigilo, inclusive quanto a contas de depósitos, aplicações e investimentos mantidos em instituições financeiras, não pode ser oposto ao Banco Central do Brasil:
I – no desempenho de suas funções de fiscalização, compreendendo a apuração, a qualquer tempo, de ilícitos praticados por controladores, administradores, membros de conselhos estatutários, gerentes, mandatários e prepostos de instituições financeiras;
II – ao proceder a inquérito em instituição financeira submetida a regime especial.”
Destarte, a inviolabilidade de dados bancários não se opõe ao Banco Central somente nas estritas hipóteses: (1) de fiscalização “de ilícitos praticados por controladores, administradores, membros de conselhos estatutários, gerentes, mandatários e prepostos de instituições financeiras”; (2) e de instauração de “inquérito em instituição financeira submetida a regime especial”.
Se justificando essa ponderação aprioristicamente realizada pelo legislador infraconstitucional, dado que, no primeiro caso, são sujeitos ativos dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, nos termos do art. 25 da Lei nº 7.492/86, “o controlador e os administradores de instituição financeira, assim considerados os diretores, gerentes”, cumprindo ao Banco Central, como filtro apuratório principal dos crimes desse jaez, proceder a tal fiscalização apuratória. E, no segundo caso, como as instituições financeiras não estão submetidas à falência na realização de sua liquidação extrajudicial, possível é ao Banco Central levantar dados para identificação de motivos de insolvência, viabilizando proposta de recuperação (art. 45 da Lei nº 4.595/64).
Entrementes, ambas as hipóteses acima descritas, por se tratarem de restrição positiva de direito fundamental, são interpretadas restritivamente.
Isso significa dizer que, para o Banco Central ter acesso a dados bancários (como movimentação) de correntistas/clientes (pessoas físicas/jurídicas) das instituições financeiras, necessário é a quebra do sigilo judicialmente, ex vi do art. 1º, §4º, da LC nº 105/2001, com a seguinte redação: “A quebra de sigilo poderá ser decretada, quando necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial”.
Trata-se da necessidade de interpretação sistemática da LC nº 105/2001.
Isto é, nas sábias palavras de ALEXANDRE DE MORAES[2], “os sigilos bancário e fiscal, consagrados como direitos individuais constitucionalmente protegidos, somente poderão ser excepcionados por ordem judicial fundamentada”.
De mais a mais, a manutenção da incolumidade da cláusula de reserva da jurisdição para restrição do direito fundamental à inviolabilidade do sigilo de dados (quando houver o conflito entre o direito fundamental e o interesse coletivo, resolvido por técnica de harmonização por ponderação de valores no caso concreto, através do exercício da jurisdição) é o melhor caminho para dar interpretação conforme à Constituição aos ditames da LC nº 105/2001.
Sobre a técnica da interpretação conforme a Constituição, prevista no art. 28, parágrafo único, da Lei nº 9.868/99, comenta DIRLEY DA CUNHA JR.[3], verbo ad verbum:
“A ideia subjacente ao princípio em comento consiste na conservação da norma legal, que não deve ser declarada inconstitucional, quando, observados os seus fins, ela puder ser interpretada em consonância com a Constituição”.
Em situação muito similar, quando ainda da vigência da redação original da Lei nº 4.595/64, que previa em seu art. 38 a inviolabilidade de dados bancários, excepcionado cosoante seu §1º somente por ordem judicial, o Egrégio STJ firmou o leading case sobre a impossibilidade de quebra do sigilo bancário de correntista das instituições financeiras diretamente pelo Banco Central.
Colhe-se o julgado a esse respeito:
“ADMINISTRATIVO. QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO. BANCO CENTRAL DO BRASIL.
1. Os poderes de fiscalização do Banco Central do Brasil, como órgão de fiscalização do sistema bancário, estão limitados às informações acerca de operações, de ativo, de passivo e de quaisquer outros dados que possam auxiliar o BACEN no exercício de suas atribuições, oriundas das instituições financeiras ou das pessoas físicas ou jurídicas, inclusive as que atuem como instituição financeira.
2. Não se deve confundir o poder de fiscalização atribuído ao BACEN, com o poder de violar o sigilo bancário, que é norma de ordem pública.
3. Agravo Regimental improvido.”
(AgRg no REsp 325.997/DF, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 23/03/2004, DJ 20/09/2004, p. 223)
Por oportuno, é de se registrar que, interposto recurso contra o paradigma supramencionado, o Colendo STF manteve o entendimento posto, dando lume ao seguinte precedente:
“SIGILO DE DADOS - ATUAÇÃO FISCALIZADORA DO BANCO CENTRAL - AFASTAMENTO - INVIABILIDADE. A atuação fiscalizadora do Banco Central do Brasil não encerra a possibilidade de, no campo administrativo, alcançar dados bancários de correntistas, afastando o sigilo previsto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal.”
(RE 461366, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 03/08/2007, DJe-117 DIVULG 04-10-2007 PUBLIC 05-10-2007 DJ 05-10-2007 PP-00025 EMENT VOL-02292-03 PP-00668 RTJ VOL-00202-03 PP-01254 RT v. 97, n. 868, 2008, p. 152-161)
Estando, hodiernamente, ainda alinhada a jurisprudência do Tribunal da Cidadania a esta posição aqui propalada:
“HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. QUEBRA DE SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS. ATUAÇÃO FISCALIZADORA DO BANCO CENTRAL. LEIS N. 4.595/1964 E 6.024/1974. ILICITUDE DA PROVA. NULIDADE DECLARADA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.
1. A atuação fiscalizadora do Banco Central do Brasil - Bacen não abrange a possibilidade de, no campo administrativo, alcançar dados bancários de correntistas de instituições financeiras. O exercício de sua atividade típica está limitada às informações acerca de operações, de ativo, de passivo e de quaisquer outros dados oriundos das instituições financeiras ou das pessoas físicas ou jurídicas, inclusive das que atuem como instituição financeira.
2. De acordo com o art. 38 da Lei n. 4.595/1964, então em vigência, o sigilo bancário era imposto de forma explícita, só podendo ser mitigado por ordem proveniente da Justiça.
3. Entre as competências exclusivas do Bacen previstas na Lei n. 4.595/1964, está a de exercer a fiscalização das instituições financeiras e aplicar as penalidades previstas, conforme o art. 10, IX. E, de acordo com o art. 37, tais instituições, bem como os corretores de fundos públicos, ficam obrigadas a fornecer ao Bacen, na forma por ele determinada, os dados ou informes julgados necessários para o fiel desempenho de suas atribuições.
4. Nem mesmo essas disposições legais indicam esteja o Bacen, no exercício de sua atividade típica, autorizado a quebrar o sigilo de todos quantos estiverem sob sua mira, seja como investigado, seja como participante em operação objeto de investigação. Apenas o Poder Judiciário, por um de seus órgãos, pode eximir as instituições financeiras do dever de segredo imposto por lei.
5. Se existe alguma exceção quanto à quebra, é aquela prevista no art. 41 da Lei n. 6.024/1974, segundo a qual, decretada a intervenção, a liquidação extrajudicial ou a falência de instituição financeira, o Banco Central do Brasil procederá a inquérito, a fim de apurar as causas que levaram a sociedade àquela situação e a responsabilidade de seu administradores e membros do Conselho Fiscal. E, nesse inquérito, somente nele, conforme o § 3º, o Bacen poderá, de acordo com as alíneas a e e, examinar, quando e quantas vezes julgar necessário, a contabilidade, os arquivos, os documentos, os valores e mais elementos das instituições e de terceiros.
6. Somente em tais situações, excepcionalíssimas, é que a autarquia tem amplos e mais significativos poderes, que objetivam garantir- lhe maior força investigativa para fiscalizar a regularidade dos atos administrativos realizados por instituições financeiras que se encontrem naquelas condições, a fim de apurar responsabilidades. Já no regime de administração especial temporária, disciplinado pelo Decreto-Lei n. 2.321/1987, e em qualquer outra circunstância, dependerá a instituição, sempre e sempre, de decisão judicial para quebrar qualquer sigilo bancário.
7. Em qualquer situação, cabe à autarquia, de mão de um conjunto de informações sigilosas, o dever de preservar tal sigilo, e não remeter esses dados ao Ministério Público quando da comunicação de supostos indícios de crime. Se isso ocorre, como na espécie, o Parquet acaba tendo acesso, de forma ilegítima, sem autorização judicial, a elementos que deveriam estar resguardados.
8. No caso, a quebra do sigilo bancário do paciente caracteriza, sim, manifesta arbitrariedade do Bacen, e não poderia, jamais, a prova daí advinda ter sido utilizada como elemento a embasar a propositura da ação penal. Além disso, reputadas ilegais as provas e sendo elas as únicas a darem apoio à denúncia contra o paciente - pois inexistente outro dado no inquérito policial, que nada acrescentou em termos de indícios de crime à documentação remetida pelo Bacen -, contaminado está o processo, o que justifica a descontinuidade da persecução penal em relação ao paciente.
9. Habeas corpus não conhecido. Ordem expedida de ofício, para que seja declarada a nulidade de todas as provas provenientes da quebra de sigilo bancário do paciente efetivada pelo Bacen.
(HC 123.840/MG, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 15/10/2013, DJe 16/12/2013)
Nada obstante, por fidelidade dialética, é necessário destacar que todos os julgados citados alhures não se pronunciaram exatamente sobre os termos da conjugação do art. 2º, §1º, §4º, e 9º, todos da LC nº 105/2001. Outrossim, deve ser dito que tanto o STJ como o STF já se pronunciaram em torno desta mesma almejada interpretação conforme a Constituição sobre o art. 6º da Norma, para dizer que também a inviolabilidade dos dados bancários não pode ser excepcionada diretamente pela Receita Federal.
Nesse sentido os seguintes escólios:
SIGILO DE DADOS – AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção – a quebra do sigilo – submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário – e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal. SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS – RECEITA FEDERAL. Conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte.
(RE 389808, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 15/12/2010, DJe-086 DIVULG 09-05-2011 PUBLIC 10-05-2011 EMENT VOL-02518-01 PP-00218 RTJ VOL-00220- PP-00540)
PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. 1. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 157 DO CPP. OCORRÊNCIA. CONDENAÇÃO PELO DELITO DO ART. 1º, I, DA LEI N. 8.137/1990. QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO PELA ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. NULIDADE DA PROVA. 2. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. Afigura-se decorrência lógica do respeito aos direitos à intimidade e à privacidade (art. 5º, X, da CF) a proibição de que a administração fazendária afaste, por autoridade própria, o sigilo bancário do contribuinte, especialmente se considerada sua posição de parte na relação jurídico-tributária, com interesse direto no resultado da fiscalização. Apenas o Judiciário, desinteressado que é na solução material da causa e, por assim dizer, órgão imparcial, está apto a efetuar a ponderação imprescindível entre o dever de sigilo - decorrente da privacidade e da intimidade asseguradas ao indivíduo, em geral, e ao contribuinte, em especial - e o também dever de preservação da ordem jurídica mediante a investigação de condutas a ela atentatórias.
2. Recurso especial a que se dá provimento para reconhecer a ilicitude da prova advinda da quebra do sigilo bancário sem autorização judicial, determinando-se que seja proferida nova sentença, afastada a referida prova ilícita e as eventualmente dela decorrentes.
(REsp 1361174/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 03/06/2014, DJe 10/06/2014)
Se não bastasse, também na compreensão do art. 8º, incisos II, IV e VIII, da LC nº 75/933, em conformidade com a CF, tanto o STF como o STJ entendem que o Ministério Público não tem legitimidade para proceder a quebra de sigilo bancário sem autorização judicial:
“Recurso. Extraordinário. Inadmissibilidade. Instituições Financeiras. Sigilo bancário. Quebra. Requisição. Ilegitimidade do Ministério Público. Necessidade de autorização judicial. Jurisprudência assentada. Ausência de razões novas. Decisão mantida. Agravo regimental improvido. Nega-se provimento a agravo regimental tendente a impugnar, sem razões novas, decisão fundada em jurisprudência assente na Corte.”
(STF, RE 318136 AgR/RJ, Rel. Min. Cezar Peluso, julgado em 12/09/2006, publicado em 06/10/2006).
“AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSO PENAL. DIVERSAS FRAUDES PERPETRADAS, EM TESE, CONTRA O DETRAN/RS. ALEGAÇÃO DE ILICITUDE DOS DOCUMENTOS FISCAIS SIGILOSOS REQUISITADOS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DIRETAMENTE AO FISCO. FLAGRANTE ILEGALIDADE.
QUEBRA DO SIGILO FISCAL QUE IMPRESCINDE DE PRONUNCIAMENTO JUDICIAL.
PRECEDENTES DESTA CORTE SUPERIOR. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. Segundo entendimento desta Corte Superior, os poderes conferidos ao Ministério Público pelo art. 129 da Carta Magna e pelo art. 8.º da Lei Complementar n.º 75/93, dentre outros dispositivos legais aplicáveis, não são capazes de afastar a exigibilidade de pronunciamento judicial acerca da quebra de sigilo bancário ou fiscal de pessoa física ou jurídica, mormente por se tratar de grave incursão estatal em direitos individuais protegidos pela Constituição da República no art. 5º, incisos X e XII.
2. Decisão agravada que deve ser mantida por seus próprios fundamentos.
3. Agravo regimental a que se nega provimento.”
(STJ, AgRg no HC 234.857/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 24/04/2014, DJe 08/05/2014)
Notas
[1] Curso de Direito Constitucional, 7ª Ed., p. 326.
[2] Direito Constitucional, 23ª Ed., p. 71.
[3] Curso de Direito Constitucional, 6ª Ed., p. 236.