Sumário: 1. Uma introdução. 2. Marcelo Neves e a Constitucionalização Simbólica no Brasil: descortinando a Constituição álibi e a falta de efetividade das normas constitucionais. 3. A subcidadania: dos problemas sistêmicos à “ralé brasileira”. 4. Da formação da consciência cidadã: concretizando o simbolismo constitucional. 5. Considerações Finais. 6. Referências.
1. Uma introdução
Quando Marcelo Neves (2011) tratou da constitucionalização simbólica e dos seus efeitos em Estados periféricos, deixou clara a tendência à politização das normas constitucionais e o quanto estas poderiam servir como “álibis” da falta de concretização de direitos, tendo destacado de forma exemplificativa a questão da subintegração e da sobreintegração que ocorre no sistema jurídico brasileiro.
Discorrendo ainda sobre o assunto, e adentrando a questão da Teoria dos Sistemas de Luhmann, tratou de observar as normas constitucionais sob um prisma de sua baixa efetividade para determinados grupos, arrematando com o conceito de “subcidadania” para os excluídos pela alopoiese[1] do sistema.
O mesmo conceito de subcidadania ou subcidadão já foi trabalhado em nosso país por alguns autores, dentre os quais Jessé de Souza (2012), de forma mais sociológica, detendo por base a questão do “capital social”, apoiado na doutrina de Pierre Bourdieu.
Tanto em Marcelo Neves (2011), quanto em Jessé de Souza (2012) fica claro que o conceito de subcidadania decorre da necessidade de algumas classes se manterem no poder a qualquer custo, o que poderia indicar uma necessidade de análise do conceito próprio de democracia.
Partindo destas premissas, e evitando tergiversar, o presente estudo se propõe a analisar a constitucionalização simbólica, presente na obra de Marcelo Neves (2011; 2012), ressaltando a questão da norma constitucional como um “álibi”, buscando dedutivamente encontrar algum vínculo entre o conceito de subcidadania (SOUZA, 2012) e a falta de efetividade das normas constitucionais, onde, desde logo, confessa-se a impossibilidade, dentro da singeleza a que se propõe o trabalho, de se analisar a completude do fenômeno.
2. Marcelo Neves e a Constitucionalização Simbólica no Brasil: descortinando a Constituição álibi e a falta de efetividade das normas constitucionais
Ao tratar sobre o termo “Constitucionalização Simbólica”, Marcelo Neves (2011) determina previamente o conteúdo que pretende dar ao termo “simbolismo”, evitando a equivocidade, e, a partir dele, constrói um raciocínio, apoiado, dentre outras, na Teoria dos Sistemas de Luhmann, onde demonstra que o grau de politização da norma, e por decorrência, de alopoiese, dos sistemas periféricos, tende a diminuir o grau de efetividade de determinados direitos para certos núcleos da sociedade.
As normas formadas dentro desta perspectiva deteriam uma incapacidade jurídico-normativa, contudo efeitos sociais observáveis, onde se terminou por dividi-las em 03 (três) grupos, quais sejam: as normas como confirmação de valores sociais; as normas como “álibis”; e as normas como compromissos dilatórios.
O primeiro grupo, normas de confirmação de valores sociais, representa um posicionamento do legislador acerca de alguma controvérsia social (NEVES, 2011, p. 33), onde, em verdade, não se busca uma normatização, contudo uma definição do grupo social “vencedor”, aquele que conseguiu trazer o legislador para seu lado. O simbolismo da norma se encontra na desnecessidade de efetivação, entretanto o conteúdo sociológico e mesmo de controle social desta tomada de posição legislativa é essencial para a manutenção da paz social.
O segundo grupo, legislação-álibi, detém por base não mais a resolução da controvérsia entre grupos sociais diversos, e sim a manutenção da confiança do administrado no sistema jurídico e político (NEVES, 2011, p. 36), uma vez que, por exemplo, diversas normas são formuladas em virtude de fato ou clamor social pelo legislador como resposta, todavia, boa parte delas termina na inexequibilidade, detendo apenas papel simbólico.
No terceiro grupo, compromissos dilatórios, tem-se a feitura de uma norma que não detém em sua base qualquer solução para a controvérsia apresentada pelos grupos sociais, em verdade, faz-se uma norma que procrastina a resolução do caso para um momento futuro e, possivelmente, ainda sem data certa (NEVES, 2011, p. 41).
Passando às normas constitucionais, após diferenciar os diversos conceitos de constituição e constitucionalização, Marcelo Neves (2011, p. 102) identifica os três grupos de normas citados com estas, determinando a existência de normas constitucionais simbólicas para a corroboração de valores sociais, de compromisso dilatório e a denominada “constitucionalização-álibi”.
Dos grupos mencionados, ganha para este estudo maior espectro o último, uma vez que visto como “álibi em favor dos agentes políticos dominantes e em detrimento da concretização constitucional” (NEVES, 2011, p. 105).
Os efeitos desta norma constitucional são brutais, retirando a Constituição de seu papel de acomplamento entre o Direito e a Política (alopoiética), para um contexto, onde não há identificação direta entre a normatização infraconstitucional e a norma constitucional, uma vez que há uma “desconexão entre a prática constitucional e as construções da dogmática jurídica e da teoria do direito sobre o texto constitucional” (NEVES, 2011, p. 154).
Como decorrência e observando o Brasil como detentor de um sistema constitucional de “periferia”, ao se analisar a Constituição Nominalista[2] de 1988, dentro de uma tendência alopoiética, observa-se um problema não na abrangência material constitucional, entretanto no que toca à sua concretização (NEVES, 2011, p. 184).
Nascem neste contexto os grupos dos “sobreintegrados” e dos “subintegrados” (NEVES, 2011, p. 184), onde alguns são beneficiados e outros excluídos dos direitos constitucionais básicos no que toca à efetivação, nascendo, assim, um problema de cidadania e um contingente de subcidadãos[3].
A constitucionalização simbólica brasileira é pautada basicamente como álibi para a manutenção das classes favorecidas, ocorrendo a confusão “pré-agendada” entre norma programática e simbólica, onde, antes de desenhar um programa de implantação futuro (mas já definido e obrigatório), configura-se, no máximo, como norma de adiamento para discussão futura (NEVES, 2011). Um efeito típico da influência do subsistema político sobre o jurídico, uma verdadeira “corrupção sistêmica” (NEVES, 2012, p. 241).
Em suma, há plena adequação do conceito de constitucionalização simbólica ao caso brasileiro, enquanto participante da periferia mundial, onde se observam normas simbólicas “álibi” e de “compromissos dilatórios” na Constituição e que o núcleo dos direitos do cidadão existe (como normas supostamente programáticas, em vários casos), contudo, em virtude do seu baixo grau de efetividade para grande parte da população, apenas serve para justificar a manutenção de determinados grupos no poder.
3. A subcidadania: dos problemas sistêmicos à “ralé brasileira”.
Conforme já demonstrado anteriormente, como reflexo das normas constitucionais álibi no Brasil houve a formação de dois grandes grupos sociais, o dos subcidadãos e o dos sobrecidadãos (NEVES, 2011, p. 184), onde estes detém a efetividade dos direitos constitucionais previstos, enquanto aqueles terminam por ficar a margem do sistema.
Como se propõe tratar do descortinar das normas constitucionais simbólicas, resta por uma necessidade maior tratar do conceito de subcidadania, abordando-se a visão de Marcelo Neves (2011) e de Jessé de Souza (2012).
Para Jessé de Souza (2012) a subcidadania é um conceito baseado nas características econômicas dos grupos sociais e a possibilidade de interação e participação entre as classes, observando, no caso brasileiro, a existência de diversos vácuos governamentais que levam a esta divisão entre cidadanias, onde alguns têm acesso aos serviços do Estado, enquanto outros apenas sofrem os desmandos dos agentes públicos.
A análise efetuada pelo autor leva em conta aspectos sociológicos da formação da “ralé brasileira”[4], onde apresentam-se como determinantes para a questão do acesso aos direitos fundamentais (em nosso caso, concretização destes direitos) aspectos exógenos, como a facilidade de alcance de determinados serviços para aqueles que apresentam padrão físico europeizado ou detém bens de consumo considerados “de padrão europeu” (SOUZA, 2012, pp. 174-175).
Marcelo Neves (2011, pp. 183-185) chega ao subcidadão por caminho jurídico e não sociológico, onde enxerga que a alopoiese do sistema jurídico e a atuação do sistema político impedem a satisfação dos serviços sociais básicos aos grupos sociais menos favorecidos, momento em que esta desconexão do subsistema jurídico gera duas classes diversas, a classe dos “sobrecidadãos” (“sobreintegrados”) e a classe dos “subcidadãos” (“subintegrados”).
Numa compilação da visão dos dois autores, chega-se a uma mesma conclusão, seja em razão da alopiese do sistema e do predomínio do sistema político sobre o sistema jurídico, seja pela formação da sociedade brasileira e a criação de uma massa marginalizada, a atuação da Constituição Federal de 1988 detém uma concretização de direitos limitada à classe dominante, restando à classe marginalizada apenas esperança de concretização dos direitos no futuro.
Dentro desta perspectiva, que Marcelo Neves (2011, pp. 185-188) denomina “realidade constitucional desjustificante”, nasce, paradoxalmente, como principal álibi a alocação de novos direitos fundamentais na Constituição como forma de defesa da própria cidadania.
O questionamento que surge a partir deste ponto, e que será abordada no item seguinte, é a possibilidade de criação de uma real consciência cidadã que não esteja “sobre” ou “subconcretizada”, abandonando a lógica meramente formal da “norma jurídica” e adentrando a materialização efetiva dos direitos fundamentais?
4. Da formação da consciência cidadã: concretizando o simbolismo constitucional
George Orwell em seu “A revolução dos bichos”, após tratar da tomada da propriedade pelos animais, deixa bem clara a perversão do poder ao tratar da regra: “todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais que os outros” (ORWELL, 2000, p. 135), onde se vê claramente a criação de um contingente de pessoas (animais, no caso) excluídos do sistema jurídico e, por decorrência, do conceito de cidadania.
Para Dalmo Dallari de Abreu (1998, p. 14), cidadania
expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social.
Logo, o desenvolvimento da consciência cidadã depende da integração das pessoas que fazem parte daquele Estado, mas a sua formação depende de uma efetiva participação na vida da polis, sob pena da impossibilidade de participação relega-las à marginalidade.
Como, então, formar uma consciência cidadã no contexto da constitucionalização álibi brasileira? Como sair do paradoxo da constitucionalização de direitos fundamentais para albergar a cidadania, no momento em que a cidadania não existe em virtude da falta de materialização dos termos constitucionais?
A resposta para tal questionamento é dada por Marcelo Neves (2011, p. 188), ao mencionar que “não se deve interpretar a constitucionalização simbólica como um jogo de soma zero na luta política pela ampliação ou restrição da cidadania”.
A esperança de materialização futura da norma constitucional ou mesmo da norma álibi alimenta a participação das pessoas no sistema, alimenta a cidadania e, se utilizada de forma a constituir grupos de pressão, pode ser efetivada.
A manutenção do status quo se dá pela desesperança das classes sociais ditas dominadas, mas, uma vez que existe a norma constitucional, ao menos resta a possibilidade de supressão do simbolismo, concretizando-a pela ação de grupos de pressão organizados pelas classes menos favorecidas. Mais uma vez importante lembrar as palavras de Marcelo Neves (2011, p. 189) ao expor que “não se pode excluir a possibilidade, porém, de que a realização dos valores democráticos expressos no documento constitucional pressuponha um momento de ruptura com a ordem de poder estabelecida”.
Em suma, a existência de normas constitucionais simbólicas é uma esperança, mesmo como compromisso de concretização futura ou como norma álibi, de uma concretização pela formação de grupos de pressão advindos das mais diversas classes sociais, retratando uma verdadeira retomada da cidadania e a formação de uma consciência cidadã, o que se mostra como grande aliada da exclusão de posições de sub e sobreintegração social constitucional. É o preâmbulo para o findar da posição de subcidadania nos sistemas constitucionais de periferia.
5 Considerações Finais
Numa visão inicial a “Constitucionalização Simbólica” nos países de periferia poderia ser interpretada como mais uma forma da manutenção do status quo dos sistemas sociais, sendo colocada como um reflexo da alopoiese do sistema com o sobressair do político sobre o jurídico.
Esta mesma visão prefacial, observando os termos “sub” e “sobreintegrados”, faz nascer o paradoxo da constitucionalização dos direitos como forma de manter a cidadania x a cidadania não alcançada pela falta de efetividade constitucional.
Entretanto não se pode confundir uma norma simbólica com uma mera norma sem aplicabilidade, pois ela não faz parte de “um jogo com resultado zero”, mesmo quando classificada como norma álibi, detendo a possibilidade de fazer nascer um conceito de cidadania capaz de mudar as estruturas sociais e, até mesmo, mudar a situação de subcidadania de parte de população. Para tanto, necessário é o engajamento social e a formação de grupos de pressão para a efetivação da norma.
Assim, após uma análise dedutiva bibliográfica, tornou-se claro um vínculo direto entre a subcidadania, a constitucionalização simbólica e a efetivação das normas constitucionais, onde com o desenvolvimento da consciência cidadã e com o descortinar da norma constitucional álibi, há a possibilidade de efetividade das normas constitucionais para o grupo menos favorecido do sistema social.
6. Referências
ABREU, Dalmo Dalari. Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo: Moderna, 1998.
NEVES, Marcelo. Entre têmis e leviatã: uma difícil relação. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
______________. A constitucionalização simbólica. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
______________. Da Autopoiese à Alopoiese do Direito. In: Anuário de Mestrado em Direito da Universidade Federal de Pernambuco, n. 5. Recife: Universitária, jan./jun. 1995.
ORWELL, George. A revolução dos bichos. São Paulo: Companhia das letras, 2000.
SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política de modernidade periférica. 2 ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
Nota
[1] O significado imposto à palavra “alopoiese” é o de influência assistêmica de subsistemas sociais, dentro dos conceitos de Luhmann expostos por Marcelo Neves no seu artigo “Da Autopoiese à Alopoiese do Direito” (1995).
[2] O termo “nominalista” é utilizado com base em Karl Loewenstein, citado em vários momentos por Marcelo Neves, onde deve ser considerada a Constituição com validade jurídica, contudo sem efetividade prática.
[3] O conceito lógico de subcidadão está em utilização a partir da explanação de Marcelo Neves, contudo este mesmo conceito já foi explorado por Jessé de Souza em seu livro “A Construção Social da Subcidadania: Para uma Sociologia Política da Modernidade Periférica” (2012).
[4] O termo “ralé brasileira” é utilizada por Jessé de Souza (2012) ao analisar a formação da população brasileira a partir dos conceitos, dentre outros, de Florestan Fernandes, Pierre Bourdieu e Gilberto Freire.