4. AS NECESSIDADES DE REFORMAS NA ESTRUTURA POLÍTICA
Toda a problemática que é acima apresentada reflete a necessidade de mudanças, sejam elas comportamentais ou estruturais. O ambiente do poder, bem como a necessidade de se buscar uma condição de plena governabilidade, encaminham as forças políticas a empreenderem um verdadeiro “comércio de apoio político”. Alianças que almejam acesso facilitado ao poder sem ter, muitas vezes, qualquer alinhamento ideológico ou programático com o segmento que está no poder. Este quadro de degeneração das relações políticas deve ser encarado como grande obstáculo para a construção de uma sociedade consciente dos caminhos que deseja seguir.
São recorrentes as opiniões no sentido de que a mudança deve partir do cidadão eleitor, que através do voto deve escolher bem os representantes nos diferentes legislativos. No entanto, o eleitorado brasileiro tem se mostrado insatisfeito, levando a uma renovação de metade das cadeiras da Câmara dos Deputados, enquanto nos Estados Unidos esta renovação é de 10%, em média.
As reformas que buscam soluções para a crise de representatividade não podem ser fruto de instituições que não possuem legitimidade para tal iniciativa. Ao Judiciário é impensável realizar tal propositura. Ao Executivo igualmente, pois são poderes que não devem participar da iniciativa, uma vez que a legitimidade é pressuposto essencial para importante tarefa. Já o Legislativo não demonstra interesse em modificar o status quo em virtude da comodidade que o atual quadro institucional confere aos parlamentares, seja em razão da relação dentro dos partidos políticos como também em relação a aqueles que detêm o poder. As campanhas eleitorais são marcadas pelo verdadeiro comércio de apoio político, ou de tempo de televisão, no chamado programa gratuito.
Percebe-se que o cenário apresenta-se problemático e merece, certamente, uma mudança substancial. A política está sendo vista como algo degenerado, sem credibilidade, mas deveria ser vista como o instrumento de solução de problemas sociais. É incontroverso que a mudança é necessária, tanto estrutural e institucional como comportamental e cultural. Ademais, esta paralisia no funcionamento das instituições parlamentares e partidárias colabora sobremaneira para estimular o papel ativista protagonizado pelo Judiciário na atualidade.
É imprescindível a participação do cidadão na elaboração das leis, no exercício dos direitos políticos para que possa exercer os direitos pessoais (elementares). [30] As iniciativas de reformas não nascem no seio do Parlamento, mas vêm de segmentos da sociedade civil, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Esta entidade da Igreja Católica utiliza a capilaridade que dispõe na sociedade para colher assinaturas para apresentação de uma proposta de iniciativa popular de reforma política. Dentre os pontos explorados na proposição destacam-se o afastamento do poder econômico das eleições; a adoção do sistema eleitoral do voto dado ao partido e depois a um candidato de uma lista formada democraticamente; a alternância de gênero nas listas de candidatos; o fortalecimento dos partidos e fidelidade partidária programática; a regulamentação dos instrumentos da democracia direta, previstos no artigo 14 da Constituição: projeto de lei de iniciativa popular, referendo e plebiscito. [31]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não há outra alternativa na atual conjuntura que não seja uma reforma nas estruturas estatais voltadas a conferir maior legitimidade e representação popular aos parlamentos em geral. Aliás, este é um problema complexo vez que a classe política é desinteressada por mudanças tão significativas. O Estado Democrático de Direito demanda uma relação de tensão entre as aspirações de uma maioria e o exercício de um poder contramajoritário.
Todavia, importa destacar que a democracia é exercida de maneira representativa, mas o processo eleitoral é viciado e dominado pelo poder econômico. Como grande consequência deste quadro, tem-se uma verdadeira falta de sintonia entre os apelos populares e as ações dos parlamentares que representam essa massa. Esta é uma realidade incontestável. O Estado, sua estrutura e os processos de formação da representação política e popular se mostram anacrônicos, elitistas e subservientes ao poder econômico.
Como resultado desse quadro, vê-se um protagonismo judicial exagerado na verdadeira condução de políticas públicas em geral, tais como saúde, educação, participação dos partidos políticos na vida parlamentar, direitos civis, dentre outros. Assim, esta postura revela verdadeiras substituições dos demais poderes pelo Judiciário como forma de garantir ao cidadão o acesso a direitos constitucionalmente garantidos. Um cidadão que tem negado um medicamento de alto custo para tratamento de uma moléstia grave não tem outra alternativa que não seja a via judicial para ver satisfeita a sua pretensão.
Esta postura ativista, comum ao Judiciário na atualidade, gera problemas importantes na atividade decisória e um volume considerável de demandas. A atividade decisória passa a se assemelhar à atividade legislativa com a discussão de temas com uma carga de politização considerável. Institutos como a súmula vinculante, a repercussão geral, introduzidos pela Emenda Constitucional nº 45, a chamada reforma do Judiciário, revelam uma jurisdição de temas, e não de casos. A problemática reside no fato de que diante de temas variados, o julgador pode se utilizar de argumentos diversos para decidir, levando a uma discricionariedade.
Diante de todos os fatos até então expostos, pode-se concluir que há uma necessidade imperiosa de reformas estruturais urgentes que modifiquem a maneira de financiamento de campanhas eleitorais, a criação e estruturação de partidos políticos, a proporcionalidade das representações parlamentares, bem como o processo legislativo nos projetos de iniciativa popular. No entanto, tais reformas não têm como berço maior o Parlamento, que está dominado por correntes políticas que desejam a manutenção da atual conjuntura em razão dos benefícios que auferem. Estas reformas devem vir das ruas, das praças, das universidades, das Igrejas, das entidades representativas de classe, como forças vivas da sociedade a exercer forte pressão no Parlamento com intuito de concretizar as modificações desejadas.
REFERÊNCIAS
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WALLERSTEIN, Immanuel. Universalismo europeu: a retórica do poder. Trad.: Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2007.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Direito jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
Notas
[1] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 108-109.
[2] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 60.
[3] ARISTÓTELES. Política. Tradução de Pedro Constantin Toles. São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 217.
[4] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 36-37.
[5] MONTESQUIEU, Barão de. O espírito das leis. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 24.
[6] BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Recursos extraordinários no STF e no STJ. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 232.
[7] SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do estado: introdução. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Del Rey, 2004, p. 217.
[8] MAUS, Ingelborg. O judiciário como superego da sociedade. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2010, p. 147.
[9] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre a facticidade e a validade. 1. ed. reimp. vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 53.
[10] WALLERSTEIN, Immanuel. Universalismo europeu: a retórica do poder. Trad.: Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 26-27.
[11] HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro – estudos de teoria política. (Die Einbeziehung des Anderen – Studien zur politischen Theorie). Trad. George Sperber, Milton Camargo Mota e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 1997, p. 230-231.
[12] MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? a questão fundamental da democracia. 6. ed. rev. atual. Trad. Peter Naumann. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 79.
[13] HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad.: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991, p. 20.
[14] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. Trad.: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997, p. 34.
[15] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. Trad.: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997, p. 20.
[16] MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na ‘sociedade órfã’. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 58, nov. 2000, p. 185.
[17] MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na ‘sociedade órfã’. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 58, nov. 2000, p. 197.
[18] NUNES, Dierle José Coelho. Precedentes, padronização decisória preventiva e coletivização. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Direito jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 250.
[19] HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro – estudos de teoria política. (Die Einbeziehung des Anderen – Studien zur politischen Theorie). Trad. George Sperber, Milton Camargo Mota e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 1997, p. 355.
[20] NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá Editora, 2012, p. 178.
[21] NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá Editora, 2012, p. 179.
[22] NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá Editora, 2012, p. 181.
[23] SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. Disponível em http://www.danielsarmento.com.br/wp-content/uploads/2012/09/O-Neoconstitucionalismo-no-Brasil.pdf. Acesso em 26 jun 2014.
[24] A esse respeito, o Min. Ricardo Lewandowski se utilizou de argumentos diversos para assentar a constitucionalidade das ações afirmativas. Eis trecho do voto: “É importante ressaltar a natureza transitória das políticas de ação afirmativa, já que as desigualdades entre negros e brancos não resultam, como é evidente, de uma desvalia natural ou genética, mas decorrem de uma acentuada inferioridade em que aqueles foram posicionados nos planos econômico, social e político em razão de séculos de dominação dos primeiros pelos segundos.
Assim, na medida em que essas distorções históricas forem corrigidas e a representação dos negros e demais excluídos nas esferas públicas e privadas de poder atenda ao que se contém no princípio constitucional da isonomia, não haverá mais qualquer razão para a subsistência dos programas de reserva de vagas nas universidades públicas, pois o seu objetivo já terá sido alcançado.”
[25] Bakke v. Regents of the University of California, Gratz v. Bollinger e Grutter v. Bollinger.
[26] [...] o encéfalo é formado pelos hemisférios cerebrais, pelo cerebelo e pelo tronco cerebral. Para o diagnóstico de anencefalia, consoante afirmou o especialista, “precisamos ter ausência dos hemisférios cerebrais, do cerebelo e um tronco cerebral rudimentar. É claro que, durante essa formação, não tendo cobertura da calota craniana, também vai fazer parte do diagnóstico a ausência parcial ou total do crânio”.
[27] O fato é que o denominado problema da “judicialização do direito à saúde” ganhou tamanha importância teórica e prática, que envolve não apenas os operadores do direito, mas também os gestores públicos, os profissionais da área de saúde e a sociedade civil como um todo. Se, por um lado, a atuação do Poder Judiciário é fundamental para o exercício efetivo da cidadania, por outro, as decisões judiciais têm significado um forte ponto de tensão entre os elaboradores e os executores das políticas públicas, que se veem compelidos a garantir prestações de direitos sociais das mais diversas, muitas vezes contrastantes com a política estabelecida pelos governos para a área de saúde e além das possibilidades orçamentárias.
[28] SCHMITT, Rogério. Haverá renovação no Congresso? Disponível em http://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunistas/havera-renovacao-no-congresso/. Acesso em 27 jun 2014.
[29] [...] o professor Michel Zaidan, do Mestrado em Ciência Política da UFPE, vê o próprio Congresso como problema mais grave a ser tratado na reforma política. “Um Legislativo despreparado, lento e fragmentado termina tendo suas funções suplantadas pela agilidade do Judiciário e pelo ativismo do Executivo”, diz, acrescentando que se isso não for revisto, a reforma ficará limitada a tópicos que não vão mudar a relação desigual entre os poderes. Zaidan, porém, culpa os próprios parlamentares pelo problema. “Essa reengenharia não acontece porque os congressistas fazem cálculos mesquinhos de quantas cadeiras vão perder, quantos votos deixarão de ganhar com as mudanças. Puro casuísmo, que impede o andamento da verdadeira agenda da reforma que está posta”, conclui. Cf. MONTENEGRO FILHO, Sérgio. Reforma política: sociedade entra no debate. Disponível em http://mauricioromao.blog.br/reforma-politica-sociedade-entra-no-debate/. Acesso em 27 jun 2014.
[30] BAUMAN, Zygmund. Tempos líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 68.
[31] Disponível em http://www.cnbb.org.br/imprensa/noticias/13103-2013-11-07-13-31-52. Acesso em 29 jun 2014.