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O que sobrou da lei dos crimes hediondos

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5.A inconstitucionalidade do indulto humanitário

 

 A CF veda a anistia e a graça aos crimes hediondos. Não fala do indulto. Nem precisaria. O indulto nada mais é do que uma variante da graça, essa individual, aquele coletivo. Ambos são espécies de clemência estatal, mediante decreto presidencial, causas de extinção da punibilidade.

 

A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que o instituto da graça, previsto no art. 5.º, inc. XLIII, da Constituição Federal, engloba o indulto e a comutação da pena, estando a competência privativa do Presidente da República para a concessão desses benefícios limitada pela vedação estabelecida no referido dispositivo constitucional. (STF. HC 115099, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 19/02/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-049 DIVULG 13-03-2013 PUBLIC 14-03-2013)

 

A Lei 8072/90 é expressa em vedar, nos crimes hediondos e equiparados, a anistia, a graça e o indulto (art. 2º, I). Apenas por amor ao debate, para aqueles que entendem que não está subsumida à CF a vedação do indulto aos crimes hediondos, a Lei 8072/90 tratou de colocar uma pá de cal nisso. É verdade que aqueles que entendem que não está subsumida à CF a vedação do indulto aos crimes hediondos, poderão dizer que a lei 8072/90 não poderia trazer essa vedação inovatória. Ledo engano. A CF trouxe um rol mínimo de benefícios penais que não devem ser concedidos aos praticantes de crimes hediondos, mas não vedou a proibição de outros benefícios penais, desde que compatíveis com a Constituição. Ora, se proibida a clemência estatal individual (graça) pela CF, compatível com a Constituição a proibição legal da clemência estatal coletiva (indulto).

 

Mesmo assim, os decretos presidenciais de indulto têm admitido o chamado indulto humanitário  (aquele concedido por razões de grave deficiência física ou em virtude de debilitado estado de saúde) aos condenados a crimes hediondos e equiparados, por razões administrativas e humanitárias, o que vem encontrando certa guarida na jurisprudência.

 

Habeas corpus SUBSTITUTIVO DE RECURSO APROPRIADO. DESCABIMENTO. EXECUÇÃO DA PENA. PLEITO PELO INDULTO HUMANITÁRIO DO DECRETO Nº 7.648/11. CEGUEIRA. COMPROVAÇÃO POR LAUDO MÉDICO. PACIENTE CONDENADA POR TRÁFICO DE DROGAS.  POSSIBILIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. 1. Nos termos do art. 1.º, inciso X, alínea a, do Decreto Presidencial n.º 7.648/11, foi concedido indulto aos apenados acometidos com paraplegia, tetraplegia ou cegueira, desde que tais condições não sejam anteriores à prática do delito e se comprovem por laudo médico oficial ou, na falta deste, por médico designado pelo juízo da execução. 2. A restrição contida no art. 8º do mencionado Decreto, que afasta a possibilidade de se conceder indulto aos condenados pela prática de tráfico de drogas, não atinge aqueles que, assim como a paciente, se enquadram na hipótese do art. 1º, inciso X, conforme ressalva contida no próprio art. 8º, § 1º. 3. Habeas corpus concedido de ofício para cassar o acórdão impugnado e deferir à paciente o benefício do indulto humanitário, nos termos do Decreto Presidencial nº 7.648/11. (STJ. HC 291.275/SP, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, QUINTA TURMA, julgado em 07/08/2014, DJe 14/08/2014)

 

Sob minha ótica, tal entendimento viola frontalmente a CF e a Lei 8072/90, que determinou tratamento rígido e severo aos crimes hediondos, não cabendo, sobretudo por ato infralegal (decreto presidencial), flexibilizar vedação prevista na Constituição e na Lei, que proíbem taxativamente a clemência estatal a crimes hediondos e equiparados, mesmo que seja por razões administrativas (superlotação e déficit carcerário) ou humanitárias. Ademais, tais situações de precária saúde já encontram tratamento mais brando em sede de execução penal, por exemplo, a prisão domiciliar (art. 117 da LEP).

 

Revela-se inconstitucional a possibilidade de que o indulto seja concedido aos condenados por crimes hediondos, de tortura, terrorismo ou tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, independentemente do lapso temporal da condenação (STF. Plenário. Medida cautelar na ADI 2.795/DF. Rel.: Min. MAURÍCIO CORRÊA. 8/5/2003, un. DJ, 20 jun. 2003, p. 56)

 

Habeas corpus. 2. Tráfico e associação para o tráfico ilícito de entorpecentes (arts. 33 e 35 da Lei 11.343/2006). Condenação. Execução penal. 3. Sentenciada com deficiência visual. Pedido de concessão de indulto humanitário, com fundamento no art. 1º, inciso VII, alínea a, do Decreto Presidencial n. 6.706/2008. 4. O Supremo Tribunal Federal já declarou a inconstitucionalidade da concessão de indulto a condenado por tráfico de drogas, independentemente da quantidade da pena imposta [ADI n. 2.795 (MC), Rel. Min. Maurício Corrêa, Pleno, DJ 20.6.2003]. 5. Vedação constitucional (art. 5º, inciso XLIII, da CF) e legal (art. 8º, inciso I, do Decreto n. 6.706/2008) à concessão do benefício. 6. Ausência de constrangimento ilegal. Ordem denegada. (STF. HC 118213, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 06/05/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-149 DIVULG 01-08-2014 PUBLIC 04-08-2014)

 

 Daí a inconstitucionalidade do indulto aos crimes hediondos e equiparados, ante a necessidade de tratamento rígido a esses delitos, por mandamento constitucional.


 

6.Lei dos Crimes Hediondos - Mandado Constitucional de Criminalização e Princípio da Proteção Suficiente.

 

Ante a interpretação dos tribunais acerca da Lei 8072/90, pouco sobrou da lei dos crimes hediondos. Pouco ou quase nada. Só restaram a diferenciação dos critérios objetivos de progressão (art. 112 da LEP), livramento condicional (art. 83, V, CP) e o prazo estendido de prisão temporária (30 dias prorrogável por igual período – art. 2º, § 4º). Além disso, apenas o aumento da pena do art. 288 do CP, quando se tratar de associação criminosa que visar a prática de crimes hediondos e equiparados (art. 8º), sendo certo que o próprio art. 288 do CP não é considerado hediondo. Nada mais sobrou, afinal, a vedação da anistia, graça e indulto (art. 2º I) e da fiança (art. 2º II), são previsões que já constavam da Constituição, sendo certo que o art. 9º está revogado pela revogação do art. 224 do CP.

 

 

Assim, a conclusão que se chega é que a lei dos crimes hediondos merece uma releitura constitucional. Como sabido, o constitucionalismo contemporâneo – neoconstitucionalismo - apresenta algumas características: a) a normatividade das regras e dos princípios; b) a superioridade das normas constitucionais; c) a centralidade da Constituição, assumindo o papel de norma centralizadora do sistema (BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e Controle das Políticas Públicas. In Leituras Complementares de Direito Constitucional. Direitos Humanos e Direitos Fundamentais. JusPodivm. 3ª ed. p. 152). Ante a superioridade das normas constitucionais, bem como o papel da Constituição de norma central do sistema, toda a legislação infraconstitucional deve ser obrigatoriamente interpretada à luz da Constituição, e não o contrário.

 

Lado outro, o art. 5º XLIII, da CF trata do que o constitucionalismo moderno chama de mandato (rectius: mandado) constitucional de criminalização. A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas e o tratamento rígido e duro para essas espécies comportamentais. Em todas essas normas é possível identificar um mandado de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. É exatamente o que acontece com o art. 5º, XLIII, da CF.

 

Mandatos Constitucionais de Criminalização: A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas (CF, art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; art. 7º, X; art. 227, § 4º). Em todas essas normas é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente. (STF. HC 104410, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 06/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-062 DIVULG 26-03-2012 PUBLIC 27-03-2012)

 

 

Em outras palavras, o legislador infraconstitucional, por força do art. 5º, XLIII, da CF, possui o dever constitucional de conferir tratamento rígido e severo aos crimes hediondos e equiparados. Por um imperativo constitucional, a lei 8072/90 deve conferir tratamento duro aos praticantes de crimes hediondos, afinal, o texto da Carta Política não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.

 

Como se não bastasse, deve-se invocar no caso o princípio da proporcionalidade, na vertente da proteção suficiente (ou proibição da insuficiência). Com base no princípio da proteção suficiente - ou proibição da insuficiência - não pode o legislador, em matéria penal ou processual penal, agir de forma insuficiente, deficitária, a ponto de desproteger os bens jurídicos tutelados pelo sistema penal ou enfraquecer a persecução penal.

 

O Estado – também na esfera penal – poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar [...] É nesse sentido que  - como contraponto da assim designada proibição do excesso – expressiva doutrina e inclusive jurisprudência tem admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição da insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado). (SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Proporcionalidade: Notas a respeito dos limites e possibilidades da aplicação das categorias da proibição do excesso e de insuficiência em matéria criminal. In Leituras Complementares de Direito Constitucional. Teoria da Constituição. Org. Marcelo Novelino. LumenJuris. p. 269)

 

 

Em matéria penal e processual penal, salta aos olhos a necessidade de retomarmos aqui à noção de que entre o extremo do abolicionismo desenfreado ou mesmo um minimalismo unilateral e cego, e um sistema de intervenção máxima na esfera penal, há que relembrar constantemente que também o Estado Democrático de Direito (e, portanto, o sistema jurídico estatal) haverá de atuar nos limites do necessário à consecução dos seus fins primordiais, dentre os quais assume destaque a proteção e promoção da pessoa humana de todos os integrantes da comunidade (SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Proporcionalidade: Notas a respeito dos limites e possibilidades da aplicação das categorias da proibição do excesso e de insuficiência em matéria criminal. In Leituras Complementares de Direito Constitucional. Teoria da Constituição. Org. Marcelo Novelino. LumenJuris. p. 281), aí incluindo não só o réu, mas também as vítimas e a coletividade.

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A vítima possui direitos fundamentais, violados em razão da prática criminosa (vida, integridade física, dignidade sexual, patrimônio etc.), que devem, portanto, também ser tutelados pelo direito penal e processual penal. Lado outro, quando a sociedade não é a própria vítima do crime, inegavelmente sofre violação aos seus direitos em razão da prática criminosa (a ordem pública, a paz social, a segurança geral, etc.), que também devem ser defendidos pelo sistema penal e processual penal. Por isso, não se pode visualizar o sistema penal e processual penal tão somente como um aparato próprio à salvaguarda de direitos do réu. No crime, a vítima e a sociedade também têm direitos violados, que merecem tutela eficiente e adequada. No crime hediondo essa situação se potencializa.

 

Em outras palavras, ao se levar ao extremo o garantismo, observamos um enfraquecimento do sistema penal e processual penal, e, consequentemente, dos aparatos estatais atuantes na persecução criminal, atenuando, por conseguinte, o poder-dever estatal de punir criminosos, de desmantelar grandes organizações criminosas, de coibir graves crimes, enfim, desprotegendo os bens jurídicos tutelados e mitigando a possibilidade de transformar a realidade social em prol da paz, segurança e do bem comum, exatamente o que se espera do sistema judicial e em especial do sistema judicial-penal.

 

O que se propõe é uma nova perspectiva, que pode ser chamada de direito penal ou processo penal funcional-garantista. A norma penal e a processual penal não estão unicamente direcionadas às limitações e garantias atribuídas ao acusado, mas estão também estruturadas de modo que não se torne obstáculo aos objetivos de política criminal de bons resultados (MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Culpabilidade no direito penal. Quartier Latin. p. 294-295).  Parte-se de um referencial teórico funcional-garantista, no qual os direitos fundamentais são sempre tomados em uma dupla perspectiva: sem se descurar dos direitos e garantias individuais e, a um só tempo, sem abrir mão da eficiência na proteção dos bens jurídicos pela viabilização da atuação legítima do jus puniendi (MARTELETO FILHO, Wagner. O princípio e a regra da não auto-incriminação. Os limites do nemo tenetur se detegere. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Disponível em http://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/1805/1/Princ%C3%ADpioRegraAutoincrimina%C3%A7%C3%A3o.pdf. Acesso em 24/03/2014).

 

Em outras palavras, a eficiência na atuação do jus puniendi pressupõe um direito penal e um processo penal garantista e, a um só tempo, funcional, no qual os direitos fundamentais do acusado são respeitados, mas, em contrapartida, os bens jurídicos tutelados são efetivamente e suficientemente protegidos.

 

É preciso ressaltar que não se trata de um discurso próprio do direito penal e processual penal máximo ou do inimigo. Ao contrário, pugna-se pelo direito penal e processual penal do equilíbrio.

 

O direito penal e o processual penal devem ser pensados na perspectiva de seus fins – proteção dos bens jurídicos e salvaguarda dos direitos do réu. Assim, a primeira tarefa daquele que esteja preocupado com o adequado funcionamento da Justiça Penal é a apropriada identificação da finalidade do direito penal e processual penal em um Estado Constitucional. Do contrário, a Justiça Penal se converterá em algo indiferente aos seus fins, em que sua finalidade ficará esfumaçada pela ausência de sua efetiva percepção.

 

A lei dos crimes hediondos, se bem interpretada, é um instrumento de proteção suficiente dos bens jurídicos mais importantes da nossa sociedade. Por isso, o tratamento rígido, severo e duro aos crimes hediondos possui guarida constitucional. Todavia, quando o legislador infraconstitucional, a pretexto de enrijecer o tratamento jurídico dos crimes hediondos, viola direitos constitucionais de especial proteção ao réu, merecerá referida legislação a glosa da inconstitucionalidade, como ocorreu com a proibição da liberdade provisória e da progressão de regime. De outro modo, quando o legislador infraconstitucional, sem malferir direitos fundamentais do réu, recrudesce o tratamento jurídico penal e processual penal dos crimes hediondos, considerados os mais graves da nossa sociedade, está o legislador tão somente cumprindo com o seu dever constitucional de proteger de forma eficiente os bens jurídicos mais importantes da nossa sociedade, como aconteceu com a proibição da clemência estatal e com a fixação do regime inicialmente fechado.

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Sobre os autores
Cleber Couto

Promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Coordenador Regional das Promotorias de Justiça da Educação, Infância e Juventude. Coordenador Regional do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Bacharel em Direito pela Unifenas. Pós-Graduado em Direito Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Doutorando em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires, Argentina.

Túlio Leno Góes Silva

Delegado de Polícia Civil do Estado de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COUTO, Cleber ; SILVA, Túlio Leno Góes. O que sobrou da lei dos crimes hediondos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4437, 25 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42097. Acesso em: 25 abr. 2024.

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