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Uma análise das teses defensivas redutoras do direito repressivo

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17/10/2015 às 12:23
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DAS AÇÕES NEUTRAS

Nas palavras de José Danilo Tavares[23], a respeito do ensinamento de Winfried Hassemer, “ações neutras são aquelas que preenchem os pressupostos tradicionais do injusto da cumplicidade, mas que, ao final, não constituem nenhum injusto objetivo de cumplicidade. São prestações de auxílio que, tendo como referência um observador externo, não têm tendência objetiva alguma de injusto.” Nesse sentido, somente quando partem de um contexto criminal transpassasse o limite para a criminalidade, o qual é contido pela concepção de adequação profissional, cujos elementos são profissionalidade e adequação propriamente dita.

Isso porque, o âmbito das ações profissionais está normativamente pré-estruturado, bem como nem toda ação que é causa para um resultado delitivo deve ter sua responsabilidade reconhecida, diante da liberdade geral de ação pelo risco geral da vida em sociedade. Ainda nesse diapasão, José Danilo esclarece a preleção de Luís Greco,[24] in verbis:

[...] Greco afirma que se tornará inútil a proibição à determinada conduta neutra, caso ela possa ser obtida em qualquer lugar e sem a menor dificuldade. As contribuições neutras não são manifestadamente ilegais e em razão disso possuem caráter ubíquo. Essa característica, pois, impõe uma análise quanto à idoneidade da proibição que vise a proteger um bem jurídico. [...] a não-realização da ação proibida precisa ‘melhorar de alguma maneira’ a situação do bem jurídico, não sendo necessário que o bem jurídico penalmente tutelado seja salvo pela abstenção da referida conduta. O ‘melhorar de alguma maneira’ não se identifica com a modificação do curso do fato principal, pois é mais do que a mera modificação. [...] na visão de Greco, é mais que a aptidão para modificar o curso dos fatos e menos que a capacidade para salvar o bem jurídico em jogo.”

Não custa repetirmos que, sendo de fácil aquisição, por acessibilidade, por ubiquação, qualquer norma proibitiva estará fadada ao insucesso, podendo atuar apenas sobre a motivação daquele que conhecia o estratagema delitivo do autor. Contudo, a conduta continuará autorizada àqueles sem o conhecimento especial do autor, numa perspectiva ex ante sobre o fato. Intuitivo que está vedado o abuso de direito, o qual afastaria o princípio da confiança, porém não basta a impressão subjetiva e abstrata acerca da aparência suspeita do cliente, sob pena de devassar a personalidade do indivíduo.

Em idêntico toar, mesmo atuando com dolo eventual, quando se der por ações profissionais (art. 5º, inc.XIV, CR) e regulares, especificamente idôneas e comportamentos cotidianos, nos quais o participante não conhece e muito menos fomenta o injusto alheio, não haverá cumplicidade, tampouco favorecimento pessoal, com a ressalva de dados indiciários apoiado no descumprimento de normas setoriais. As ações neutras trazem à baila o risco inerente de utilização delitiva por um terceiro, tais como a venda de remédios, armas e outras prestações negociais, todavia, os cursos causais hipotéticos não podem ser considerados.

Nessa toada, o risco de punibilidade deve ser lastreado no elemento subjetivo com supedâneo na representação do perigo, vez que será punível somente se houver conhecimento positivo de fatos criminosos e externalização do sentimento de solidariedade na empreitada criminosa.

Importante ressaltar a crítica de José Danilo[25] que, por sua verve, pedimos vênia para transcrever:

“Inclusive, reiteramos nossa crítica no sentido de que a teoria defendida por Greco traz o problema de saber quem irá determinar a relevância ou não, da idoneidade da proibição. A princípio, parece que caberá ao ‘prudente arbítrio’ do juiz, em cada caso concreto, responder a tal indagação. Outra crítica consiste no fato de que a aplicação do princípio da idoneidade para descobrir a proibição ou não, do risco é insuficiente para resolver todos os problemas de cumplicidade por meio de ações neutras [...].

Em arremate, não há conduta avalorada, e sim, contextualizadas em sua avaliação para fins de distinção entre mera participação culposa em crime doloso (impunível por neutra) ou cumplicidade não-neutra. Nesse diapasão, pode-se vislumbrar as ações neutras como não-configuração do tipo penal objetivo[26], diante de um risco permitido, ou mesmo, por meio da falta de antijuridicidade, pela não extensão pelo art. 29 do CP, devido ao cumprimento de um dever. 


DA CULPABILIDADE[27]

Claus Roxin[28] defende a absorção da culpabilidade pela categoria mais ampla da responsabilidade, de sorte que, na busca do equilíbrio entre a necessidade interventiva estatal e a liberdade individual, a valoração sobre a responsabilidade deve abranger a reprovabilidade e a teoria dos fins da pena. Em casos de culpabilidade reduzida, o autor, minoritariamente, não menciona exclusão de culpabilidade, porém exclusão de responsabilidade[29], como nova etapa limitadora de aplicação da pena, in verbis:

“O primeiro passo é reconhecer que injusto e responsabilidade se tratam de diversas valorações, que devem ser referidas cada qual a um substrato próprio. O injusto determina o que é proibido sob ameaça de pena, que comportamento é, portanto, legal ou ilegal. Já a responsabilidade decide quais dentre os comportamentos ilícitos necessitam de pena e em quais deles a pena pode ou dever ser dispensada. O primeiro nível valorativo tem por tarefa o controle de comportamentos: ele diz aos cidadãos o que, segundo as regras do direito penal, devem omitir e, em certos casos, fazer, combinando uma valoração com uma diretriz de comportamento. O segundo nível decide a respeito da consequência jurídica – punibilidade ou não-punibilidade – segundo pontos de vista que não se confundem, de modo algum, com os da valoração do injusto, mas que devem ser extraídos da teoria dos fins da pena.”

De outro giro, Davi de Paiva[30] contesta a noção tradicional de culpabilidade, dentro do finalismo, nos moldes abaixo:

“O livre-arbitrário como base ontológica da culpabilidade será o alvo principal de críticas posteriores ao finalismo, considerado seu calcanhar de Aquiles, ‘na medida em que o livre-arbítrio do homem não poderia ser provado nem de maneira geral, tampouco com relação a um caso concreto’. Outra crítica importante é a da estreita vinculação entre Direito e moral, embutida na ideia de culpabilidade como reprovabilidade não poder se sustentar, pois (i) o Estado não tem legitimação para elevar-se moralmente sobre o cidadão (Roxin); e (ii) ‘não se pode formular responsavelmente uma reprovação a uma pessoa que se conhece de modo tão seletivo e rudimentar como a conhece o juiz penal’ (Hassemer). A esse propósito, de maneira mais incisiva, já afirmava Engisch que seria impossível aferir o ‘poder agir de outro modo’, eis que uma prova empírica desse fato reclamaria repetir-se aquela situação fática, experimento fadado ao insucesso.”

Davi de Paiva sustenta o conceito incrível da falta de motivabilidade, como exclusão de culpabilidade (exculpação), como hipótese ainda não aventada de inexigibilidade de conduta diversa, elencando requisitos para seu reconhecimento[31]. Nessa baila, não se coaduna com a visão de que a exclusão social seja carta branca para o cometimento de delitos, defende, no entanto, que certos injustos alinhados a projetos de vida éticos não podem sofrer a pecha de crime.

Nesse tom, exige (1) que o crime cometido seja embutido por um projeto de vida ético e moral, ou seja, associado ao autorrespeito e respeito à alteridade (exclui, portanto, todos os atos praticados com violência); (2) que os valores morais adotados sejam legítimos no seio do grupo social do qual faz parte (noção de pertencimento social); (3) falência estatal na efetivação dos mais elementares direitos fundamentais (fragilidade da escolha de outros projetos éticos).

E mais: reconhece que um agir antijurídico possa ser moral, dado que delito e moralidade não são autoexcludentes. Diante da neutralidade moral das regras, investiga os valores por detrás e visualiza a probabilidade de ser moralmente indicada a transgressão. Nesse ponto, tece crítica ao Direito Penal hipertrófico, sem conteúdo moral, e sim moralista.

Já prevendo críticas ao manejo da falta de motivação, registre-se, integralmente, o entendimento do autor[32], que não se esquece que o ônus não pode ser atribuído ao agente vulnerável, como que uma intensificação da teoria alemã da co-culpabilidade:

“E nem se diga que ele poderia ter bravamente resistido e se humilhado a vida toda como assistente de obras, mediante remuneração e condições laborativas desumanas. A busca da felicidade, como se viu, é incontornável e não se pode exigir que alguém escolha uma vida indigna apenas para atender aos reclamos de um Estado que nunca lhe valeu. Tratar-se-ia de uma espécie de perda da possibilidade de exercício do poder punitivo estatal em virtude de sucessivas e reiteradas falhas de todos os seus braços (educacional, de saúde, de assistência social, de trabalho, de lazer, de higiene, de habitação etc.), que redundaram na impossibilidade absoluta de um determinado indivíduo escolher um projeto de vida ético e moral conforme ao Direito. A ideia de impedir o exercício do jus puniendi em virtude do mau funcionamento estatal não só não é nova, mas encontra-se até mesmo regulamentada no Código Penal. Trata-se do instituto da prescrição, definível como ‘a perda do direito de punir do Estado, pelo decurso do tempo, em razão do seu não exercício, dentro do prazo previamente fixado’. Coerentes com a perspectiva segundo a qual o crime é um ato que gera repulsa social e que reclama, para aplacá-la, a imposição de uma pena, os fundamentos da prescrição estão centralmente relacionados ou com o enfraquecimento do alarme social em razão do transcurso temporal, ou com a desnecessidade da pena em face da recuperação do criminoso, da expiação de sua culpa ou de sua constituição psíquica. Se o Estado pode (e deve) se responsabilizar quanto à omissão ex post, igualmente razoável que o possa em face de uma omissão ex ante.”

De seu turno, Rodrigo Roig[33], no âmbito da execução da pena, também condena a ideia de reprovação, substituindo-a por uma imputação estritamente jurídica, por força do princípio da culpabilidade (art. 45, § 3º, da LEP), vejamos:

“No cotidiano carcerário, é sabido que raramente os condenados ou denunciados recebem da Administração as devidas informações sobre o rol de faltas e recomendações disciplinares. Diante desse manifesto descumprimento à LEP e à Constituição Federal, é possível afirmar que a falta de ciência das normas disciplinares ao condenado ou denunciado, no início da execução da pena ou da prisão, também pode ensejar o afastamento da culpabilidade por uma falta disciplinar, uma vez descaracterizada a potencial consciência da ilicitude da conduta carcerária, por erro de proibição. Outra prática atentatória ao princípio da culpabilidade é a imposição de juízos valorativos negativos sobre a pessoa presa (ex.: periculosidade, rebeldia, subversão), sem qualquer vinculação com a ocorrência de fatos concretos. [...] Com tais juízos, o ônus probatório é invertido do Estado para a pessoa presa, que precisa provar a improcedência da imputação valorativa a ela realizada, em claro prejuízo ao contraditório, ampla defesa e presunção de inocência.”

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DA APLICAÇÃO DA PENA

Indo mais fundo, no âmbito da mensuração da reprimenda, elucida que o princípio da lesividade, sob o prisma redutor, significa a mínima lesividade sobre o condenado, de sorte a vetar juízos utilitaristas, por exemplo. De outro lado, a intervenção mínima, sob o viés redutor, seria a necessidade aflitiva de imposição da pena privativa de liberdade seja a menor possível. Por fim, o festejado Rodrigo Roig[34] dispõe, in litteris:

“Acertada, assim, a constatação de que o sistema penal formal viola a legalidade penal, uma vez que a deficiência de parâmetros legais e doutrinários definidos para a gradação penal enseja avaliações extremamente vastas e desprovidas de regulação, confiando esse campo à arbitrariedade. Uma vez entregue a injunção penal ao mero arbítrio judicial, produz-se uma abdicação da legalidade e, ordinariamente, tende-se a destinar o poder da agência judicial a um sentido potencializador de danos, quando na verdade deveria atuar de maneira contra-habilitadora do poder punitivo”.

Não só isso. Rodrigo Roig[35] rememora que nos casos de absolvição do Réu, o Ministério Público não possui direito ao duplo grau de jurisdição, por ser direito exclusivo do acusado. Nessa senda, o jus accusationis restaria esgotado no provimento de 1ª instância, como materialização da individualização da pena, bem como descaberia recurso com o fito de elevar a pena aplicada.

Isso porque a presunção de inocência – sob a ótica redutora de danos – cria a presunção de pena mínima, ou até mesmo, presunção de pena zero. Por sua vez, entende que uma nova concepção da anterioridade interdita a avaliação deletéria de imputações e fatos pretéritos, haja vista a vedação de projeção futura de efeitos penais das condenações anteriores.

Ainda, sustenta o autor que a exposição dos motivos do delito como consequência da confissão, a qual possui efeito atenuante, torna imprestáveis os motivos para fins de incremento da resposta penal. Nesse passo, descabe imputar ao réu “consequências do crime”, que, em momento algum, ingressaram em sua esfera cognitiva, por contemplar a odiosa versari in re illicita.

Ao fim, Rodrigo Roig sustenta, veementemente, que a reincidência se revela inconstitucional, devido aos princípios do ne bis in idem, intangibilidade do caso julgado, lesividade, proporcionalidade, igualdade, individualização da pena e secularização. E nem se queira falar na aplicação do ne bis in idem para obstar a aplicação cumulativa de atenuantes, pois um postulado destinado à tutela do indivíduo não pode ser empregado justamente para habilitá-lo, em detrimento do dever de arrefecimento de danos.

Por fim, na terceira fase do processo dosimétrico, Rodrigo Roig defende que a aplicação das causas de diminuição previstas na parte especial espraia-se por todo o ordenamento a todas as espécies delitivas. Ou seja: a analogia in bonam partem, combinada ao dever jurídico-constitucional de redução da afetação individual e a máxima efetividade recomenda que as minorantes não se restrinjam aos tipos penais em que topologicamente se encontram. Ainda, o magistrado deve aplicar todas as causas de diminuição, de forma cumulativa, ainda que pertencentes à parte especial do Diploma Penal.

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Sobre o autor
Lucas Medeiros Gomes

Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Especialista em Regulação na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Defensor Público Federal. Juiz Federal Substituto no Tribunal Regional Federal da 3ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Lucas Medeiros. Uma análise das teses defensivas redutoras do direito repressivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4490, 17 out. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42850. Acesso em: 26 abr. 2024.

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