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Uma análise das teses defensivas redutoras do direito repressivo

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17/10/2015 às 12:23
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A Constituição não recepcionou as finalidades de prevenção especial positiva e retribuição, por força da teoria redutora de danos.

Resumo: Trata-se de um esforço de compilação conexo a uma breve análise das teses inovadoras em prol da contenção do poder punitivo elaboradas por grandes autores, consagrados na doutrina brasileira. É notório que o poder punitivo é seletivo e ocasiona danos sociais de grande monta, contudo, seja por uma sede de retribuição ou por pura irracionalidade, muitos ainda apregoam o alargamento de seus braços opressores. A fim de obstar tais esforços, lançou-se mão de temas cruciais, tais como: execução penal, crime continuado, bem jurídico, ações neutras e culpabilidade.

Palavras-Chave: Direito Penal Mínimo – Execução Penal – Crime Continuado – Bem Jurídico – Ações Neutras – Culpabilidade


INTRODUÇÃO

Não é de hoje que a capilaridade da criminalização, no bojo do capitalismo periférico, tem ocasionado a reação das minorias desfavorecidas, no desenvolvimento de subculturas, o que golpeia, cada dia mais, a possibilidade de defesa da tese de universalidade axiomática do bem jurídico, de cunho jusnaturalista. Assim, contesta-se a noção de consciência profana do injusto, vez que nem sempre há o conhecimento da antissocialidade, imoralidade ou lesividade da conduta pelo agente vulnerável.

Nesse ponto, ainda, o patente pluralismo sustenta uma grande variedade de sistemas de valores, o que impede a noção de culpabilidade como reprovabilidade, na forma proposta tradicionalmente pela doutrina. E mais, a teoria do etiquetamento (labeling approach) tem nos mostrado uma sociedade conflitiva, na qual sonhos e meios de acesso são desigualmente distribuídos.

Nesse giro, cabe um resgate à funcionalidade do conflito, na dinâmica do processo social, em que a distribuição desigual de poder e riqueza denota a principal causa do comportamento desviado (outsiders). Desse modo, o controle social formal e informal traz um rol de injustos, contudo, não é a conduta em si que é desvalorada, em vista da criminalização primária e secundária seletiva pelo manejo da injunção penal subserviente à interesses políticos e sociais outros. Nessa perspectiva, falacioso é o discurso da teoria das janelas quebradas.

Com isso, propôs-se, aqui, questionar o discurso tradicional do Direito Penal, construído na corrente sociedade de Risco, que levou a um Estado de Segurança. Para gerir tais riscos, antecipou-se a punibilidade e criaram-se mais crimes omissivos, culposos e de perigo, a despeito da falência da pena, como se o Direito Penal fosse panaceia para os problemas estruturais sociais que grassam a sociedade brasileiras há tempos.

Por meio de ginásticas jurídicas, perfazem-se “criptoimputações” e demais ilegalidades, à moda do poder subterrâneo, bem como pelo mascaramento de leis penais latentes e eventuais. A prisão preventiva, por sua vez, promove a erosão processual da pena, dentro da política de tolerância zero. É de bom alvitre rememorar que, quem deseja punir demais, no fundo, quer impor um mal, logo, equipara-se à própria figura do delinquente.

A pauta axiológica constitucional deve servir de freio valorativo contra totalitarismos judiciais, na medida em que desmistifica normas paternalistas de bens jurídicos inexistentes como segurança e ordem. A título de exemplo, a Lei Federal nº 11.671/08 possibilitou uma desterritorialização com aparência de pena de banimento, em que pese a vigência da Carta Política.

Percebendo que o Direito Penal pune os pobres (incrimina a vulnerabilidade, à luz dos crimes toscos) e, em respeito à heterogeneidade, deve-se romper com a imagem tradicional e seus baluartes, com o objetivo de conter essa irracionalidade punitiva. Para tanto, utilizou-se de inputs de grandes autores, trazendo teses inovadoras e que merecem maior publicidade, a fim de dinamizar filtros de contenção. Sendo assim, o presente autor trouxe uma compilação de entendimentos, com provocações teóricas e raciocínio crítico.


DA EXECUÇÃO PENAL

A falácia pseudo-humanista da ressocialização mascara o defensivismo social, de sorte que o modelo meritocrático de execução penal leva ao “engessamento do Poder Judiciário pelo obscurantismo administrativista do cárcere”, tendo em vista que “o Poder Judiciário se curva diante da preeminência do direito penitenciário (informal) sobre o direito processual penal (formal)”, levando à perda do senso de posteridade[2].

Nesse ponto, a medicina carcerária, própria dessa instituição total, busca a uniformização dos prisionados, devassando suas interioridades psíquicas, com medidas profiláticas, com o fito de coisificá-los, estigmatizá-los, aculturá-los, nulificá-los e despersonalizá-los como objeto de pesquisa criminológica. Essa estrutura relacional etiológica, dentro da política de gerência de conflitos sociais, caracteriza o policialismo, a brutalização, o belicismo, o marginalismo, o rotulacionismo e o predelitualismo (viés seletivo ínsito).

Isto é: o princípio da secularização, consectário do princípio da humanidade (art. 1º, III e art. 4º, IV, CR), impede a regulação moral do executado e, portanto, a prevenção especial objetiva. Não só: o princípio da individualização da pena não poderá ser usado para legitimar tratamentos penitenciários, tampouco para desrespeitar a isonomia.

Nessa toada, a inquisitoriedade do processo de apuração de faltas graves[3], em busca da disciplina, resta à margem da lei, invertendo o ônus de prova de periculosidade para o próprio preso, impedindo a refutação de juízos valorativos feitos sobre a pessoa, em defesa do arquétipo correcionalista e reformador, ao passo que eleva a bem jurídico a ordem carcerária, à guisa de um regime de exceção constitucional ou estado de anomia, apregoada pelos discursos alarmistas.

A jurisdicionalidade da execução penal, desde 1984, não valida um dever incondicional de obediência ou uma lei do silêncio ou, muito menos, uma discricionariedade velada da Administração Penitenciária, em que se pune quando necessário e se perdoa, quando conveniente, o que se reforça, pelo fato de que a categoria periculosidade opõe-se ao princípio da presunção de inocência. Nessa nota, obtempera Rodrigo Roig[4]:

“Inicialmente, cumpre destacar que o reconhecimento do caráter jurisdicional da execução penal conduz à necessária refutação da legitimidade da Comissão Técnica de Classificação para o julgamento disciplinar dos apenados. Isso porque tal julgamento é ontologicamente nulo se encarado frente aos princípios da imparcialidade, inafastabilidade e indisponibilidade da jurisdição, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

O Estado, com a finalidade de coibir a autotutela no cárcere, retira dos agentes e presos o poder de livre resolução dos conflitos [...] é possível verificar que a atividade judicante é realizada exatamente por alguns membros de um dos polos litigantes [...] instintivamente impelidos a decidir em favor dos agentes da Administração, já que a sua segurança no convívio diário depende justamente daqueles”.

Além disso, resta-nos, pela lucidez e brilhantismo notável, transcrever trecho escrito por Rodrigo Roig[5] sobre a necessidade de aporte de todos os benefícios legais, não contemplados na LEP, para a execução penal:

“não são suficientes a suspensão condicional da execução da sanção (art. 71), a revisão (art. 88) e a reabilitação disciplinar (art. 89). Urge ainda o aporte de diversas causas de extinção da punibilidade disciplinar, circunstâncias agravantes e atenuantes e dirimentes, assim como são imprescindíveis o estabelecimento de requisitos formais para a parte disciplinar, a criação de autênticos ‘tipos disciplinares’, com penas específicas para cada uma das faltas (evitando, assim, a amplitude sancionatória) e a previsão da ‘Suspensão Condicional do Processo Administrativo’, análoga àquela estabelecida na Lei nº 9.099/95”.

Noutro giro, Rodrigo Roig[6] admite a suspensão da prisão de pais, quando a medida for necessária ao melhor interesse das crianças, em nome do princípio da transcendência mínima. E avança:

“Observado sob a ótica redutora de danos, o princípio da transcendência mínima ganha novos contornos. Sob uma perspectiva, assim como a pena deve passar o mínimo possível da pessoa do condenado, fatores externos ao evento delitivo concreto igualmente devem passar o mínimo possível à pessoa do condenado. Essa nova visão traz alguns efeitos importantes. Inicialmente, a refutação de todas as considerações de índole preventiva em detrimento da pessoa presa. Em outros termos, não se pode admitir a imposição de rigor penitenciário a alguém apenas como necessidade de exemplo aos demais. Outro efeito é a impossibilidade de utilização, em desfavor da pessoa presa, de critérios eminentemente abstratos, tais como o suposto avanço da criminalidade ou a gravidade em tese de determinada espécie delitiva, fatos estes alheios ao próprio nexo de responsabilidade entre pessoa presa e fato delitivo. Também pode ser constatada a ilegitimidade da apuração judicial da personalidade da pessoa presa a partir de sua comparação com determinado padrão moral de personalidade, ou ainda, sua conferição com a personalidade do chamado ‘homem médio’.”

Oportuno também consignar, por pertinência, o entendimento de Rodrigo Roig sobre a vigilância eletrônica no sentido da inconstitucionalidade da medida por violação da intimidade, pela dificuldade de manter vínculos afetivos e familiares, por conta da estigmatização, por exemplo. Nesse passo, inconstitucional a medida quanto aos presos provisórios, por causa da presunção de inocência, ao mesmo tempo em que gera risco à integridade moral e física do vigiado, caso haja populares movidos por pânicos ou vingança privada.

Não só isso. A vigilância eletrônica representa alto custo, usada em exagero, que permite a extorsão por parte de policiais corruptos, bem como a imputação de crime sem a devida precisão técnica de localização. A mais: a medida impõe um desvio de função de segurança pública para particulares, a ponto de transmudar os presos em mercadorias. Por fim, insta ressaltar que o potencial descarcerizador da medida não é fenômeno que se vivencia.

A propósito, importante ter em mente que existem várias outras teses redutoras, contrastantes com a posição jurisprudencial majoritária, as quais merecem acolhida por representar o melhor direito, que apenas não se menciona pelo limite do presente estudo. Contudo, podemos citar a recomendação do numerus clausulus pelo juízo da execução, com supedâneo nos artigos 85, caput, art. 185 e art. 66, VI da LEP.

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A par disso, pode-se entender que a superlotação carcerária permite o deferimento da prisão domiciliar. Inobstante, no âmbito da execução da pena, deve-se martelar na ideia da vedação ao anatocismo disciplinar, por configurar odioso bis in idem, isto é, a necessidade de domesticação das faltas graves. Nesse toar, as faltas graves jamais podem repercutir na pena privativa de liberdade, tendo efeitos apenas no âmbito administrativo.


DO CRIME CONTINUADO

Em que pese o estado de pânico e medo, fomentados pelas agências midiáticas e pelo Direito Penal Simbólico e de Emergência - ou em interesses-tabu, a própria lei penal transformou-se em fator de aumento da criminalidade. Afinal, retribuição é um juízo retrospectivo. Ela não soluciona problemas da violência, de base estrutural da sociedade, de forma que devemos rechaçar os movimentos de Defesa Social e o Movimento Lei e Ordem, com o fito de visualizar o Estatuto Repressivo como instrumento de contenção do poder punitivo.

No que se refere à interpretação do instituto do Crime Continuado, existem considerações a serem feitas. Na perspectiva reducionista de danos, é importante assinalar que o delictum continuatum deve ser visto como um crime único e, portanto, sofrer apenas uma reprimenda penal, sem acréscimos de qualquer monta, inclusive para afastar a aplicação do art. 72 do Diploma Penal, em homenagem ao princípio odiosa sunt restringenda [7].

Subsistem diversas fundamentações ao crime continuado[8], como a benignidade, tendo em vista o intuito de evitar a pena de morte ao terceiro furto na Idade Média, e a utilidade, tendo em conta a melhor facilidade probatória ou mesmo a menor culpabilidade. A respeito de sua natureza jurídica, faz-se menção aos debates das teorias da unidade real/realidade natural, ficção jurídica e da unidade jurídica, circunstância atenuante ou agravante ou mera presunção, da quais não iremos nos aprofundar.

Em rumo ao epílogo do tópico, não podemos deixar de transcrever as lições de Patrícia Mothé Glioche[9], pela limpidez e argúcia no trato da questão, sobre o conteúdo do injusto do crime continuado[10], vejamos:

“[...] o verdadeiro crime continuado não está previsto na lei, o que não significa que não possa ser adotado na prática, uma vez que se trata do próprio tipo penal, que é cometido por intermédio de uma execução fracionada e repetida do próprio crime, quando houver planejamento e ideação inicial. Assim, seus contornos devem ser construídos pela doutrina e pela jurisprudência, que, registre-se, não seguem à risca, em muitos casos, sequer os critérios da legislação atual. [...] é possível perceber que o conceito de crime continuado adotado no Código Penal é, na verdade, uma modalidade de concurso material de crimes semelhantes entre si. A visão da teoria objetiva, que foi a adotada no Código Penal, conduz à conduta naturalística, sem indagar a intenção. [...] A lei e a doutrina – que segue a teoria objetiva -, não consideram a orientação finalista de conduta, porquanto analisam o crime continuado diante da sua estrutura objetiva, verificando somente a ocorrência de vários crimes e considerando a conduta sem, todavia, examinar qualquer elemento subjetivo de finalidade. Assim, partindo desse conceito de conduta, se conclui que o artigo 71 do Código Penal trata de uma espécie atenuada de concurso material. É justamente essa incompatibilidade entre o conceito de conduta finalista e a definição legal de crime continuado que leva à existência de tantas opiniões diferentes a respeito desta categoria delituosa. [...] No entanto, apesar de ser imperiosa a exigência da presença de um elemento subjetivo, a lei trata o crime continuado como uma modalidade de concurso de crimes, confundindo o verdadeiro crime continuado – crime único – com o concurso material mais brando (porque exasperado) tratado pelo legislador sob o nome de crime continuado. [...] um crime único de homicídio, praticado dessa maneira fracionada – em várias etapas que constituem por si só um crime autônomo – e a pena a ser aplicada é a prevista no tipo penal, sem nenhuma exasperação. [...] Como delito único que é, o verdadeiro crime continuado poderia e deveria ser considerado e apenado justamente com uma única sanção. No entanto, atualmente, o reconhecimento do crime continuado leva à exasperação da pena, porque a jurisprudência, bem como boa parte da doutrina, se baseiam apenas na disciplina do Código Penal, prejudicando, de certa forma, o agente que pratica vários crimes norteado pelo seu planejamento inicial de agir. Muito embora o Código Penal não trate, no artigo 71, do verdadeiro crime continuado, é louvável a sua intenção de exasperar a pena do concurso material – que é o que verdadeiramente é tratado no artigo, pois as consequências deste último são demasiadamente graves para o agente e para a sociedade, uma vez que penas muito longas afetam a dignidade da pessoa humana, excluindo o sujeito da sociedade; e, ainda, as penas excessivas também são prejudiciais à sociedade que tem uma falsa impressão de ter equacionado um problema, que, na verdade, não tem solução no Direito Penal.”

Noutro giro, Rodrigo Roig[11] sustenta a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 71 do Estatuto Repressivo. Segundo seu magistério, o dispositivo legal consagra o direito penal de autor, bem como vulnera os princípios da lesividade, da culpabilidade, da isonomia, da secularização, da proporcionalidade, sendo instrumento de pura retribuição que não sobrevive à ótica teleológica redutora de danos. Ainda, apregoa a desmistificação da ficção do crime único, tão só para fins de execução penal, de forma a beneficiar o condenado com a extinção da punibilidade, cômputo e cálculo de penas.


DO BEM JURÍDICO

No escólio de José Danilo Tavares[12], “o Direito Penal é um meio repressivo e não preventivo – somente atua após o dano ou o perigo de dano - assim, não é correto atribuir-lhe a missão de garantia de bens jurídicos”. Sendo assim, verifica-se que a seletividade ínsita ao sistema objetiva operar uma higiene social.

Nessa linha de intelecção, o autor[13] sustenta: “logicamente, extrai-se que um bem, por mais relevante que seja, somente poderá ser tutelado pelo Direito Penal, isto é, ter dignidade penal, se tiver referibilidade na proteção da pessoa humana”, de sorte a repelir o placebo social das leis penais simbólicas de baixo custo e alta jactância política em homenagem ao princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos[14].

Nesse sentido, José Danilo sugere a importação do sistema de contraordenações[15] para o tratamento de algumas questões, como os atuais crimes ambientais[16] e outros que configuram mero descumprimento de dever administrativo, dentro de um conceito material-valorativo para o Estado de Direito. Dito de outro modo, a acessoriedade[17] administrativa[18] e as normas penais em branco ferem de morte a conquista do princípio da legalidade penal, de modo que permitem à Administração Pública o alargamento da intervenção penal sponte propria.

De outro giro, José Danilo[19] refuta a radicalidade do entendimento de inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, por vislumbrar um potencial democrático. Nesse tom, ao invés de demonizá-los, defende que os crimes de perigo abstrato – que devem expressar ofensividade - poderão impedir a criação de falsos bens jurídicos, ao mesmo tempo em que esclarece o conceito de perigo concreto e põe às claras o fato de que o direito penal está se antecipando. Não obstante, não se trata de presunção absoluta, confusão que levou a doutrina à tese da inconstitucionalidade.

Notório refutar a constitucionalidade de crimes de perigo abstrato com presunção absoluta, o que não significa equiparação a crimes de perigo concreto, dado que a acusação não terá o ônus de provar a realização do perigo abstrato, ao passo que, nos crimes de perigo concreto, o ônus é do Ministério Público. Ousamos, com a devida venia, discordar de tal entendimento, uma vez que todo o ônus de prova deve competir ao Parquet, em função do princípio da presunção de inocência e sistema acusatório, observada a conduta imparcial do juiz, sob pena de legitimar a expansão do poder punitivo e legitimação acrítica do poder punitivo[20].

Em arremate, compete-nos citar integralmente o excerto para mantermos a fidelidade à posição do autor:

“[...] é um erro tratar a incolumidade ou a saúde públicas como bens jurídicos coletivos, posto que elas não passam da soma de bens jurídicos individuais e, como tal, devem ser metodologicamente tuteladas de forma individual e isolada, sob pena de se legitimar – como recorrentemente faz nossa doutrina – a aplicação de sanções extremamente elevadas para a prática de condutas perigosas a bens jurídicos individuais, mas que, pela construção do aparente bem jurídico coletivo, se tornam, in legis, lesivas a esta ficção, quando, em realidade, as condutas realmente lesivas aos bens jurídicos individuais são tratadas sem tanta energia por nossos legisladores. Nestas situações, a postura correta está em abandonar esta equivocada construção do bem jurídico (pseudo)coletivo, compreendido como a soma de inúmeros bens individuais, e tratar a conduta como perigosa aos bens jurídicos individuais.”

Paralelamente, cabe recordar que Claus Roxin[21] compreende que a mera descrição da finalidade da lei não é o suficiente para embasar um bem jurídico que legitime o tipo penal, de modo que, na interpretação limitadora da pena, posiciona-se contra o conceito metodológico de bem jurídico que o iguala a ratio legis.

Nessa vertente, Claus Roxin entende que os tipos penais não podem ser lastreados sobre bens jurídicos de abstração impalpável. Para nos mantermos fiel ao seu escólio, oportuna a transcrição do excerto:

“Como o ‘público’ não possui um corpo real, não é possível que algo como a ‘saúde pública’, no sentido estrito da palavra, exista. Não se pode, porém, fundamentar uma proibição penal na proteção de um bem jurídico fictício. Na verdade, só se pode estar falando da saúde de vários indivíduos membros do povo. Estes só podem, entretanto, ser protegidos respeitando o princípio de que autocolocações em perigo são impuníveis, como já foi exposto. Não é possível, assim, deduzir da proteção da ‘saúde pública’ um fundamento adicional de punição. Um bem jurídico similarmente pouco claro é a ‘paz pública’ [...]”           

Em relação à pena, interessante a adoção da teoria agnóstica da pena ou negativa, negando a existência de um direito de punir com o fito de encará-la como pura coerção. Nesse sentido, vejamos explanação de Davi de Paiva[22]:

[...] a pena não tem nenhuma função que não a de reafirmar a validade dos bens jurídicos que o Direito Penal protege. Trata-se preponderantemente de um fato concreto: ‘a pena é uma coerção, que impõe uma privação de direitos ou uma dor, mas não repara nem restitui, nem tampouco detém as lesões em curso ou neutraliza perigos iminentes’. Trata-se de conceito negativo, por não conceder nenhuma função positiva à pena e por ser obtido por exclusão (não é nem reparador, nem administrativo direto), e agnóstico ‘quanto à sua função, pois confessa não conhecê-la’. A essa teoria dá-se o nome de teoria agnóstica da pena, cuja tradução literária pode ser encontrada na pena de Clarice Lispector: ‘não há direito de punir. Há apenas poder de punir. O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte do que ele’.

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Sobre o autor
Lucas Medeiros Gomes

Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Especialista em Regulação na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Defensor Público Federal. Juiz Federal Substituto no Tribunal Regional Federal da 3ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Lucas Medeiros. Uma análise das teses defensivas redutoras do direito repressivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4490, 17 out. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42850. Acesso em: 19 abr. 2024.

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