Artigo Destaque dos editores

Aplicação da sham litigation no direito brasileiro

24/10/2015 às 14:40
Leia nesta página:

Caracteriza-se a sham litigation pelo abuso do direito de ação que veicule pretensão destituída de fundamentação jurídica, mas com potencial de trazer prejuízo à ordem econômica e/ou à concorrência.

Recentemente, a Superintendência Geral do Cade concluiu em parecer que a editora Ediouro fez uso do seu poder dominante de mercado e lançou mão de práticas anticompetitivas, consubstanciadas no abuso do direito de petição, como forma de prejudicar seus concorrentes.

A prática de que a SG menciona é conhecida por sham litigation, instituto advindo do direito norte-americano, que tem como finalidade o uso abusivo do direito de petição para inviabilizar a participação de concorrentes no mercado.

Diante dessa recente decisão e, de outras poucas ainda no direito brasileiro, há que se ponderar dois dos grandes princípios constitucionais consagrados: o direito de petição e a livre concorrência.

O direito de petição remonta à Idade Média, quando em 1215, o Rei João da Inglaterra assinou a Carta Magna, marco importante no surgimento dos direitos humanos. Em seguida, houve a Petição de Direito, feita em 1628 pelo Parlamento Inglês como uma declaração de liberdades civis, outro marco no desenvolvimento dos direitos humanos.

Todavia, foi com a Declaração dos Direitos da Constituição dos Estados Unidos, em 1791, que houve a consolidação dos direitos humanos e expressa proteção ao direito de petição.

Segundo os ensinamentos do eminente professor J.J. Gomes Canotilho, “entende-se por direito de petição a faculdade reconhecida a indivíduo ou grupo de indivíduos de se dirigir a quaisquer autoridades públicas apresentando petições, representações, reclamações ou queixas destinadas à defesa dos seus direitos”[1].

Trata-se de garantia constitucional conferida pelo artigo 5º, XXXIV da nossa Constituição, e tem por finalidade a defesa da legalidade constitucional e do interesse público geral contra ilegalidade ou abuso de poder.

De outra banda, temos o direito à livre concorrência, princípio-garantia da ordem econômica constitucional, protegido pelo artigo 170 da Constituição Federal Brasileira que prescreve: “a ordem econômica constitucional, fundada na valorização do trabalho humano e na livre inciativa, assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos expressamente previstos em lei e tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social”.

A ideia de concorrência, ou livre concorrência, permeia as relações interpessoais há mais tempo do que o direito de petição.

Segundo os estudiosos no assunto, pode-se visualizar alguns traços da concorrência ainda na Idade Antiga, mais especificamente na Grécia Antiga.

Nos ensinamentos de Vicente Bagnoli, “em meio ao renascimento do comércio (na passagem da Idade Antiga para a Idade Média), agora com o surgimento das cidades, os artesãos de interesses comuns se reúnem para proteger esses interesses, surgindo as corporações de ofício. O surgimento espontâneo das corporações de ofício a partir de associação dos agentes econômicos se assemelha com as associações atuais ou cartéis. É nesse momento que aparecem várias regras de concorrência que de algum modo inspiram os legisladores até hoje”[2].

Contudo, a consagração da livre concorrência, veio apenas com o programa New Deal em 1933, nos Estados Unidos, com a regulamentação da intervenção direta do Estado na esfera econômica.

Nas palavras de Alexandre de Moraes, a livre concorrência “constitui livre manifestação da liberdade de iniciativa, devendo, inclusive, a lei reprimir o abuso de poder econômico que visa a dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”.

Trata-se, igualmente ao direito de petição, de uma garantia constitucional, é desdobramento do princípio da livre iniciativa, funcionando como propulsor da economia.

Pois bem, temos duas garantias constitucionalmente protegidas, entretanto, uma cederá passo a outra quando ocorrer abuso no uso de suas atribuições, isto é, quando houver abuso de direito.

O abuso de direito é, segundo Antunes Varela, “o mau exercício dos direitos subjetivos decorrentes de lei ou contrato”[3].

Os direitos não são concedidos aos indivíduos para satisfazer apenas seus interesses e necessidades, não são poderes ilimitados concedidos pela lei. As normas têm como escopo uma finalidade social, servem para delimitar a conduta do indivíduo em sociedade.

A teoria do abuso do direito é a reação concreta contra certos resultados antissociais.

Na doutrina pátria, o abuso de direito está consagrado em diversas normas, tais como: artigos 927, 153, 188, 1.227. 1.289, 939 e 940 do Código Civil, bem como nos artigos 14 a 18, 598, 574, 475-O e 739-B do Código de Processo Civil.

No entanto, é o artigo 187 do Código Civil que sacramenta como ato ilícito o abuso de direito, senão vejamos:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Nesse diapasão, o direito pátrio rejeita veementemente o uso de forma excessiva dos direitos subjetivos, de forma a dispor expressamente, numa rede de artigos, a responsabilização do agente nos casos de abuso de direito.

O abuso de direito tem como efeitos a obrigação de ressarcir os danos causados a outrem, bem como a anulabilidade do negócio jurídico em algumas hipóteses, por exemplo.

Diante da responsabilização imputada pelas normas infraconstitucionais, temos que o abuso de direito, mais que uma infração no direito privado, consubstancia numa infração também no direito público, mais precisamente uma infração à ordem econômica.

Segundo o parecer exarado pela SG, a editora Ediouro “ajuizou ações cautelares e ordinárias contra editoras concorrentes apresentando fundamentos discutíveis. Durante o curso de tais ações, a Ediouro propôs compensação financeira a essas concorrentes para pôr fim ao processo judicial e mantê-las fora do mercado. Além disso, entre 1999 e 2009, a Ediouro enviou 16 notificações extrajudiciais a diversos concorrentes com o objetivo de intimidá-los por estarem, supostamente, desrespeitando direitos de Propriedade-intelectual" data-type="category">propriedade intelectual e/ou industrial da empresa. Contudo, durante a investigação foi possível comprovar que tais direitos de propriedade não haviam sido concedidos ou seus pedidos teriam sido arquivados pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Ou seja, a Ediouro ameaçou concorrentes valendo-se de direitos de propriedade inexistentes com a finalidade de garantir exclusividade sobre o mercado no qual já detinha posição dominante”[4] (grifo nosso).

A seguinte constatação, então, enquadra-se perfeitamente no disposto no artigo 36 da Lei Antitruste (Lei n. 12.529/11), quando prevê as infrações à ordem econômica.

No caso da editora Ediouro, o que há é uma flagrante tentativa de prejudicar a livre concorrência com base no exercício abusivo da posição dominante (incisos I e IV do artigo 36).

Importante ressaltar que, possuir posição dominante[5], por si só, não é infração à ordem econômica e sim o seu uso abusivo com fim na eliminação de players no mercado econômico.

A fim de delimitar quais seriam os elementos caracterizadores da prática de sham litigation, a justiça norte-americana ponderou, em duas etapas: “na primeira, de cunho objetivo, verificar-se-á se a ação deverá ser desprovida de base lógica, no sentido de que nenhum litigante razoável poderia, de fato, ter expectativas de ser bem-sucedido em seu mérito. Em seguida – e somente se atendida a etapa anterior – é que deverá a Corte apreciar as motivações do litigante. Sob essa segunda etapa, a Corte deverá analisar se a ação infundada constitui uma “tentativa de interferir diretamente nos negócios de um concorrente”, através do uso do “processo governamental – ao invés do resultado de tal processo – como uma arma anticompetitiva””[6].

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Em suma, para a caracterização da sham litigation é indispensável inferir que a pretensão de quem a pratica seja totalmente destituída de fundamentação jurídica e que a demanda judicial tenha, ao menos, o potencial de trazer um prejuízo à ordem econômica e/ou à concorrência.

O primeiro caso julgado pelo Cade em que houve o reconhecimento da sham litigation como prática abusiva e prejudicial à concorrência foi o caso Siemens em 2010.

A Siemens VDO Automotive foi condenada por mover ações judiciais para prejudicar uma concorrente no ramo de tacógrafo, a Seva Engenharia Eletrônica.

De acordo com a Secretaria de Defesa Econômica, ao ajuizar ação alegando interesse particular, fica evidenciada a intenção da Siemens de prejudicar a empresa concorrente. “A insistência em pedido já declarado improcedente e a falta de menção ao Mandado de Segurança fracassado também demonstram má-fé da representada. O intuito de prejudicar concorrente é evidenciado por (1) inclusão da Seva no pólo passivo da Ação Ordinária, (2) ataque a novo produto desenvolvido pela Seva e homologado por autoridades competentes e (3) deixar de combater outras portarias emitidas pelas autoridades que não teriam atendido a exigências da Resolução 92/99 (sendo que, de acordo com parecer do Denatran, os problemas técnicos do tacógrafo da Seva são comuns a outros tacógrafos no mercado)[7]”.

Outro caso recente, deste ano, foi da farmacêutica Ely Lilly.

Neste, a farmacêutica visava a exclusividade na produção do medicamento Gemzar, para o tratamento contra câncer. Para tanto, ajuizou diversas ações contra a Anvisa e o INPI do Rio de Janeiro e do Distrito Federal.

Após falhar em conseguir a exclusividade no processo de fabricação do componente do medicamento – cloridrato de gencitabina – envidou novos esforços para conseguir a exclusividade na comercialização do produto.

Diante do cenário, o Cade entendeu que houve abuso do direito de petição, pois ao se utilizar de ações judiciais contra esses órgãos públicos, a empresa não permitiu que o mercado tivesse acesso ao a um medicamento similar ao que ela produzia, afetando a concorrência e o consumidor final. No caso foi aplicada multa de R$ 36 milhões à farmacêutica.

A aplicação do abuso do direito de petição como prática anticompetitiva ainda é pequena em território nacional, mas com o recente parecer da SG no caso Ediouro, nos faz concluir que muito embora seja tímida, é crescente e fundamental.


Bibliografia:

BAGNOLI, Vicente, O direito da concorrência e sua aplicação na área de livre comércio das Américas. São Paulo: Dissertação de Mestrado (Universidade Presbiteriana Mackenzie), 2003, p. 14.

BATISTA, Eurico, Cade pode aplicar multa por abuso do direito de ação in Consultor Jurídico, 16 de março de 2010. Disponível em http://www.conjur.com.br/2010-mar-16/cade-julga-primeiro-sham-litigation-ordem-economica-pais.

CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998.

CASTRO, Bruno Braz de, Sham Litigation e o ordenamento jurídico brasileiro in Cade Informa. Disponível em: http://www.cade.gov.br/news/n024/artigo.htm.

DANTAS, Iuri, Cade condena Eli Lilly a pagar R$ 36 milhões por sham litigation in Jota, 24 de junho de 2015. Disponível em http://jota.info/cade-condena-eli-lily-a-pagar-r-36-milhoes-por-sham-litigation.

______. Guerra das palavras cruzadas: Cade vai julgar Ediouro por sham litigation in Jota, 24 de setembro de 2015. Disponível em http://jota.info/guerra-das-palavras-cruzadas-cade-vai-julgar-ediouro-por-sham-litigation.

DINIZ, Maria Helena, Curso de direito civil brasileiro, v.7. São Paulo: Saraiva, 2009.

MORAES, Alexandre de, Direito Constitucional. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2004.

ROMERO, Caio Neves, A sham litigation no âmbito do Poder Judiciário e a atuação do Cade na vigência da lei 12.529/11 in Migalhas, 30 de dezembro de 2013. Disponível em http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI192880,91041A+sham+litigation+no+ambito+do+Poder+Judiciario+e+a+atuacao+do+Cade.


Notas

[1] J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 466.

[2] Vicente Bagnoli, O direito da concorrência e sua aplicação na área de livre comércio das Américas. São Paulo: Dissertação de Mestrado (Universidade Presbiteriana Mackenzie), 2003, p. 14.

[3] Antunes Varela apud Maria Helena Diniz, Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 586.

[4] Notícia veiculada pelo Consultor Jurídico em 24 de setembro de 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-set-24/ediouro-condenada-praticas-anticompetitivas-cade

[5] Art. 36, Lei n. 12.529/11, § 2o . Presume-se posição dominante sempre que uma empresa ou grupo de empresas for capaz de alterar unilateral ou coordenadamente as condições de mercado ou quando controlar 20% (vinte por cento) ou mais do mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo Cade para setores específicos da economia. 

[6] Bruno Braz de Castro, Sham Litigation e o ordenamento jurídico brasileiro in Cade Informa. Disponível em: http://www.cade.gov.br/news/n024/artigo.htm.

[7] Processo 08012.004484/2005-51.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Gabriela Gruber Sentin

Advogada; Especialista em Direito Tributário pelo IBET.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SENTIN, Gabriela Gruber. Aplicação da sham litigation no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4497, 24 out. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/43696. Acesso em: 23 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos