5 Laicidade, liberdade religiosa e lisura das eleições
Sob outro aspecto, as religiões, as igrejas e os líderes evangélicos, enquanto agentes sociopolíticos, têm direito de influenciar positivamente a vida pública. Com efeito, a avaliação da influência religiosa no pleito deve considerar como ponto de partida dois vetores constitucionais, a saber: princípio da lisura (ou legitimidade) das eleições, que visa a resguardar a autenticidade do resultado, da legalidade do pleito, da eficácia do voto livre, da igualdade entre candidatos e da imparcialidade e firmeza na condução das eleições[28], com esteio no art. 14 da Carta Magna; e o direito fundamental à liberdade religiosa, que tem previsão no art. 5°, incisos VI e VIII, da Constituição Federal. E, para intermediar esses dois vetores constitucionais é preponderante a correta compreensão do princípio da laicidade previsto no art. 19, inciso I, que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.
Pela dicção do art. 19, inciso I, o princípio da laicidade significa que o Poder Público não pode estabelecer cultos religiosos ou igrejas, patrociná-los ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. Sobre o tema, José Afonso da Silva ressalta que é a lei que deve definir a forma dessa colaboração, sendo certo que não poderá ocorrer no campo religioso.[29] Além disso, ao Poder Público não é permitido embaraçar o funcionamento das organizações religiosas, isto é, impor dificuldades, prejudicar ou proibir o seu funcionamento, sob pena de cercear o próprio direito de liberdade religiosa.
Diferentemente do laicismo que busca, como vimos no capítulo primeiro, o retraimento ou desaparecimento da religião enquanto tal, o modelo de laicidade adotado no Brasil não veda a participação dos religiosos na esfera pública, visto que a Constituição Federal do Brasil, além de explicitar a possibilidade de colaboração de interesse público com as entidades religiosas, prevê também a garantia da liberdade religiosa; um direito fundamental, uma liberdade pública ou, se se preferir, uma prerrogativa individual, em face do poder estatal.[30] Nesse sentido, Jónatas Machado defende que o princípio da laicidade ou da neutralidade do Estado “não pode ser usado, por parte das autoridades públicas e dos tribunais, como escapatória para o não envolvimento em questões religiosas, ideológicas ou morais”.[31] Machado diz que o princípio da neutralidade religiosa e ideológica do Estado Constitucional é incompatível com a consideração da religião unicamente como um fenómeno irracional, privado, individual, íntimo, ultrapassado, estranho e extrassocial. Muito menos será compatível com qualquer estratégia deliberada de remoção da religião da esfera de discurso público.[32]
É válido assinalar, com Roberto Blancarte, que o “Estado laico não deve ser entendido como uma instituição anti-religiosa ou anticlerical”.[33] Afinal, o Estado laico é a primeira organização que “garantiu as liberdades religiosas”, e que todos expressem suas opiniões desde a perspectiva religiosa ou civil”.[34] Segundo Blancarte:
[...] o único requisito é entender a representatividade bastante relativa que têm os hierarcas eclesiásticos e ministros de culto: Quando um líder religioso se expressa como líder espiritual, pode almejar certa autoridade entre os seguidores, no entanto depende do contexto de sua própria Igreja e das relações entre fieis e ministros de culto. Mas quando um líder religioso fala em termos políticos, fala por si mesmo; nada mais é do que uma pessoa com mais ou menos autoridade moral frente a qualquer dos outros fieis ou frente a qualquer dos outros membros de sua própria igreja ou da sociedade. Quando um líder religioso fala em termos políticos, o faz em nome próprio, visto que nenhum dos outros fieis confiou sua representação nele.[35]
Roberto Blancarte afirma que as organizações não governamentais, partidos políticos e qualquer outra instituição política não deveriam tentar lutar contra as igrejas, uma vez que elas também têm o direito de opinar e “não de impor sua visão sobre a legislação e políticas públicas”. Ele também afirma que “Os dirigentes eclesiásticos têm todo o direito de expressar-se, dar sua opinião e buscar inclusive influenciar nas políticas públicas. Isso não afeta, senão fortalece nossa convivência democrática”.[36]
A liberdade religiosa, por seu turno, é uma garantia constitucional que se desenvolve em três aspectos: liberdade de crença, culto e organização religiosa. Não envolve apenas o direito subjetivo de crer ou não crer em algum coisa, doutrina ou confissão, mas também de expressar essa doutrina no ambiente público. Segundo Jonas Moreno a liberdade religiosa nasce da necessidade de publicização da fé, como “meio de transformação do homem, de sua realidade interior, que gera consequências exteriores, dentre as quais, a de tornar pública a sua fé para que outros tenham a oportunidade de verem as suas vidas transformadas”.[37]
Desse modo, o Direito Eleitoral, enquanto ramo do Direito Público cujos objeto são “os institutos, as normas e os procedimentos regularizadores dos direitos políticos”[38] e que “normatiza o exercício do sufrágio com vistas à concretização da soberania popular” precisa considerar a influência da religião evangélica no processo eleitoral como elemento natural da dinâmica democrática, e não como algo estranho ao debate político, observando é claro, os limites necessários para resguardar a lisura e legitimidade das eleições. Não obstante, ainda que tenhamos afixado algumas balizas jurídico-eleitorais que delimitam a interferência do elemento religioso sobre o processo eleitoral, devemos dar seguimento para refletir sobre a delimitação ética dessa interferência, uma vez que os aspectos jurídicos não definem toda a abrangência e complexidade do assunto.
REFERÊNCIAS
[1] CUTRIM, Mirla Regina da Silva. Abuso do poder religioso. Disponível em: <http://www.asmac.com.br/noticia.php?noticia=740>. Acesso em: 17 nov. 2014.
[2] CUTRIM, 2014.
[3] SILVA, Alexandre Assunção e; ASSUNÇÃO, Magaly de Castro Macedo. Abuso do poder religioso nas eleições: desincompatibilização de sacerdotes e pastores. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3797, 23 nov. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25860>. Acesso em: 25 nov. 2013.
[4] TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. Trad. Neil Ribeiro da Silva. 4 ed. Belo Horizonte: Itatiaia Ltda, 1998. p. 229.
[5] SILVA, Alexandre Assunção e; ASSUNÇÃO, Magaly de Castro Macedo, 2013.
[6] SANTANA, Filipe. Abuso do poder religioso. Disponível em: <http://filipemsantana.blogspot.com.br/2014/09/o-abuso-do-poder-religioso.html>. Acesso em: 17 nov. 2014.
[7] SANTANA, 2014.
[8] RE-RECURSO ELEITORAL nº 49381 - Magé/RJ, Relator(a) Leonardo Pietro Antonelli, DJERJ - Diário da Justiça Eletrônico do TRE-RJ, Tomo 125, data: 24/06/2013. p. 13/22.
[9] ALVIM, Frederico Franco. Manual de Direito Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 409.
[10] GOMES, 2011, p. 209-210.
[11] GOMES, 2011, p. 209-210.
[12] GOMES, 2011, p. 210-211.
[13] DECOMANIN, apud ALMEIDA, Roberto Moreira. Curso de Direito Eleitoral. 3. ed., Salvador: JusPodivm, 2010. p. 332.
[14] PINTO, apud ALMEIDA, 2010, p. 332-333.
[15] GOMES, 2011, p. 215.
[16] FRANCISCO apud ALVIM, 2012, p. 411.
[17] ZILIO apud ALVIM, 2012, p. 420-421.
[18] RIBEIRO, Renato Ventura. Lei Eleitoral Comentada. São Paulo, Quartier Latin, 2006, p. 194.
[19] Ac. de 9.10.2012 no AgR-AI nº 1020743, rel. Min. Arnaldo Versiani; Ac. de 15.3.2012 no AgR-AI nº 8242, rel. Min. Marcelo Ribeiro.).
[20] RIOS, Odilon. Deputado tem mandato cassado por abuso de poder religioso. Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/brasil/politica/al-deputado-tem-mandato-cassado-por-abuso-de-poder>. Acesso em: 17 nov. 2014.
[21] No RO nº 343033 a ministra proveu o recurso do recorrente, João Caldas, para reformar o acórdão regional, diante da insuficiência de provas para lastrear a condenação buscada, julgando improcedente a ação de impugnação do mandato eletivo.
[22] AIJE n.º 2653-08.2010.6.22.0000 – Acórdão nº 514/2012, Relator: Des. Sansão Saldanha. TRE/RO.
[23] LUCON; VIGLIAR, p. 373.
[24] SCHAEFFER, Francis. Como viveremos. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003.
[25] STARK, Rodney. A vitória da razão. São Paulo. Tribuna. 200. p. 42.
[26] D´SOUZA, Dinesh. A verdade sobre o cristianismo: por que a religião criada por Jesus é moderna, fascinante e inquestionável. Tradução Valéria Lamim Delgado Fernandes. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2008.
[27] FRESTON, p. 30-31.
[28] ALVIM, 2012, p. 39.
[29] SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores Ltda. 1995. p. 244-245.
[30] SORIANO, apud GALDINO, Elza. Estado sem Deus: a obrigação da laicidade na Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 14.
[31] MACHADO, p. 16.
[32] MACHADO, p. 153.
[33] BLANCARTE, Roberto. O porquê de um Estado laico. In: LOREA, Roberto Arriada (Org.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 29.
[34] BLANCARTE, 2008, p. 29.
[35] BLANCARTE, 2008, p. 29.
[36] BLANCARTE, 2008, p. 29.
[37] SANTANA, Uziel; MORENO, Jonas; TAMBELINI, Roberto. A liberdade religiosa no Brasil e no Mundo. São Paulo: Anajure Publicações. 2014. p. 11.
[38] GOMES, 2011, p. 17.