O presente artigo analisa os contornos jurídicos acerca da participação da religião evangélica no processo eleitoral, à luz da legislação eleitoral brasileira, buscando discutir teoricamente a legitimidade das igrejas e dos atores religiosos para influir nas campanhas políticas, como mecanismo de exercício de poder e/ou de convencimento com esteio em valores morais religiosos. Além disso, tangenciaremos uma reflexão de cunho pragmático, a fim de arrazoar acerca do chamado “abuso do poder religioso” no processo eleitoral brasileiro, com o objetivo de conciliar os vetores constitucionais do princípio da lisura (ou legitimidade) das eleições e o direito fundamental à liberdade religiosa.
1 Abuso do poder religioso na esfera política
Devido à presença cada vez mais marcante da religião evangélica no processo eleitoral, passou-se a discutir, em tempos recentes, o cognominado abuso de poder religioso, pelo qual partidos políticos e candidatos, valendo-se da estrutura eclesiástica e do apoio de ministros religiosos com discursos carregados de conotação religiosa e moral, estariam subvertendo a legitimidade do pleito e influenciando diretamente o resultado das eleições, ao arrepio da legislação eleitoral.
Ao abordar o tema, Mirla Regina da Silva Cutrim expressa que “o poder religioso é uma novidade das mais recentes eleições, não só porque passa por cima das leis humanas e das leis de Deus, mas devido aos meios e artifícios utilizados pelas lideranças políticas, tudo com o indigesto aval das lideranças religiosas”.[1] Segundo Mirla Cutrim, esse tipo de abuso ocorre quando há assédio moral aos fiéis, cujas condutas vão desde o registro de números de candidaturas de fácil vinculação com números bíblicos, arregimentação de discípulos de células como cabos eleitorais, pedidos de votos na porta das igrejas até os apelos mais emocionais possíveis no altar, durante os cultos de celebração, com uma suposta base equivocada na Palavra de Deus. Para a autora, embora a religião tenha o seu poder positivo, de transformar pessoas que buscam cura na alma, estimulando comportamentos que colaboram com a paz na sociedade e o seu papel de conscientização social, orientando os fiéis na escolha de candidatos que possam contribuir com o aperfeiçoamento da sociedade, por outro lado não se pode aceitar “como as demais formas espúrias de poder e dominação, o poder religioso venha a atrair aqueles que queiram transformá-lo em um trampolim político, merecendo tal conduta não só a repressão legal da justiça eleitoral, como a repressão interna das autoridades religiosas”.[2]
Nessa mesma perspectiva, Alexandre Assunção e Silva e Magaly de Castro Macedo Assunção - partindo do pressuposto de que no Brasil mais de 90% da população tem alguma religião, sendo a maioria cristã (católicos e evangélicos), e que por conta disso os ministros e sacerdotes religiosos possuem grande influência entre os fiéis - defendem a desincompatibilização dos ministros religiosos a partir do momento em que forem escolhidos candidatos.[3] Isso porque, conforme os autores, permitir que sacerdotes-candidatos celebrem cultos pode dar margem à propaganda eleitoral subliminar (ilícita), que dificilmente será descoberta, porque não é de fácil percepção (visa o inconsciente do eleitor) e os fiéis não a denunciam”. Além disso, sustentam que alguns candidatos “representam” igrejas, apresentam-se como defensores de determinada religião, pondo de escanteio o partido, quando não é o próprio partido um braço da igreja. Por vezes esta funciona como uma superestrutura auxiliar da campanha, mais poderosa que o partido, que o candidato comum não possui, o que fere, segundo os autores, o princípio da isonomia. Para tanto, citam a seguinte advertência de Tocqueville:
Enquanto uma religião encontra a sua força nos sentimentos, nos instintos, nas paixões que se veem reproduzir da mesma forma em todas as épocas da História, ela arrosta o esforço do tempo, ou pelo menos não poderia ser destruída a não ser por outra religião. Mas, quando a religião quer apoiar-se sobre os interesses deste mundo, torna-se quase tão frágil como todas as potências da terra. Sozinha, pode ter esperanças de imortalidade; ligada a poderes efêmeros, segue o destino desses poderes e não raro cai com as paixões de um dia que os sustentaram. Unindo-se aos diferentes poderes políticos, a religião não poderia, destarte, contrair a não ser uma aliança onerosa. Não tem necessidade do seu auxílio para viver, e, servindo-os, pode morrer.[4]
Silva e Assunção destacam ainda que o abuso de poder religioso pode se materializar de diversas formas, seja pelo uso indevido de meios de comunicação em igrejas e locais de culto; abuso de poder econômico, em que o dinheiro recebido das doações de dízimos e ofertas podem ser usadas em prol da candidatura de algum clérigo e, por fim, através do abuso de autoridade religiosa.[5]
Seguindo outra linha doutrinária, há quem suscite o princípio da laicidade do Estado como argumento de contrariedade à influência religiosa no processo eleitoral. Nessa perspectiva, embora o ordenamento jurídico não proíba que ministros religiosos sejam candidatos a cargos políticos, o princípio da separação entre Estado e igreja deveria evitar que a extraordinária força do poder religioso desequilibre a eleição.[6] Logo, dentro de sua missão institucional, a Justiça Eleitoral deveria assegurar a liberdade de consciência do eleitor, notadamente para coibir a prática dessa nova espécie de abuso de poder religioso, através do qual candidatos utilizam-se do discurso religioso para captar votos das igrejas como trampolim para a conquista de mandatos eletivos, somados ainda, à ingenuidade e simplicidade da parcela menos esclarecida da população, para quem a influência exercida está acima da razão, no campo sagrado da fé.[7]
O tema também já passou a ser abordado no âmbito jurisprudencial. O Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, no Recurso Eleitoral nº 49381 - Magé/RJ, que teve como relator Leonardo Pietro Antonelli, concluiu que “a entidade religiosa, enquanto veículo difusor de doutrinas apto a alcançar um número indeterminado de pessoas, é talvez o meio de comunicação social mais poderoso de todos, porquanto detém a capacidade de lidar com um dos sentimentos mais intrigantes e transcendentais do ser humano: a fé”.[8] No caso, os depoimentos testemunhais demonstraram que os pastores representados, muito mais do que apenas induzir ou influenciar os fiéis, efetuaram, ao longo do período eleitoral, uma pressão para que votassem no candidato indicado pela igreja, incitando um ambiente de temor e ameaça psicológica, na medida em que levavam a crer que o descumprimento das orientações, que mais pareciam ordens, representaria desobediência à instituição e uma espécie de desafio à vontade Divina. Desse modo, segundo o decisum, o abuso da confiança de um sem número de seguidores, representou conduta violadora à liberdade de voto e ao equilíbrio da concorrência entre candidatos, de modo que o “propósito religioso que restou desvirtuado em prol de finalidades eleitoreiras, com templos transformados em verdadeiros comitês de campanha, cuja localização em áreas humildes da região pressupõe público-alvo, em princípio, mais suscetível a manipulações”. O voto assinalou que tal prática vem se mostrando cada vez mais frequente na sociedade, levando alguns estudiosos a vislumbrar uma nova figura jurídica dentro do direito eleitoral: o abuso do poder religioso. Apesar de não possuir regulamentação expressa, tal modalidade, caso não considerada como uso indevido dos meios de comunicação, merece a mesma reprimenda dada as demais categoriais abusivas legalmente previstas.
O chamado “abuso do poder religioso” em matéria eleitoral, portanto, é um tema atual. Para tanto, iniciaremos nosso percurso crítico-avaliativo a partir do conceito de abuso, prosseguindo, posteriormente, para os tipos de abuso de poder na esfera eleitoral, a fim de aferir a possibilidade de se falar em abuso de poder religioso como ilicitude autônoma no âmbito do Direito Eleitoral.
2 Abuso do poder em matéria eleitoral
Inexiste em nosso ordenamento um conceito jurídico-legal a respeito do abuso de poder nas eleições, daí a necessidade de se estabelecer as premissas conceituais necessárias visando a sua compreensão e caracterização.[9]
A teoria do abuso de poder nasce no Direito Privado[10], a partir da noção de abuso de direito, o qual ocorre sempre que o titular de um direito subjetivo – entendido como poder ou faculdade do credor – o maneje de maneira egoísta e emulativa, com o propósito de prejudicar terceiros, pois o exercício de um direito deve ser normal, regular, e não extremado (summum jus, summa injuria, sentenciavam os romanos), pondo-se em harmonia com os interesses sociais prevalecentes. Nesse sentido, o art. 187 do Código Civil vigente estabelece que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.[11]
Na seara privada, então, o abuso de direito é um ilícito na medida em que o agente, através de uma conduta antissocial, ou de uma omissão, transgride o dever de observar as regras morais e a finalidade econômica e social do direito.
No Direito Público, José Jairo Gomes explica o sentido da expressão abuso de poder:
O substantivo abuso (do latim abusu: ab + usu) diz respeito a ‘mau uso’, ‘uso errado’, ‘desdobramento do uso’, ‘ultrapassagem dos limites do uso normal’, ‘exorbitância’, ‘excesso’, ‘aproveitamento’, ‘uso inadequado’ ou ‘nocivo’. Haverá abuso sempre que, em um contexto amplo, o poder – não importa a sua natureza – for manejado com vistas à concretização de ações irrazoáveis, anormais inusitadas ou mesmo injustificáveis diante das circunstâncias que apresentarem e, sobretudo, ante os princípios agasalhados no ordenamento jurídico. Por conta do abuso, ultrapassa-se o padrão normal de comportamento, realizando-se condutas que não guardam relação lógica com o que normalmente ocorreria ou se esperaria que ocorresse. A análise da razoabilidade da conduta e a ponderação de seus motivos e finalidades oferecem importantes vetores para a apreciação e o julgamento do evento.
Já o vocábulo poder, no contexto em tela, deve ser compreendido no seu sentido comum, expressando a força bastante; a energia transformadora, a faculdade, a capacidade, a possibilidade, enfim, o domínio e o controle de situações, recursos ou meios que possibilitem a concretização ou a transformação de algo. Revela-se na força, na robustez, no império, na potencialidade de se realizar algo no mundo. Implica a capacidade de transformar uma dada realidade ou a faculdade de colocar em movimento um estado de coisas ou uma dada situação. Poder é também vontade: vontade de potência.
Na esfera política, em que se destacam as relações estabelecidas entre indivíduos e entre grupos, compreende-se o poder como a capacidade de influenciar, condicionar ou mesmo determinar o comportamento alheio.
Destarte, a expressão abuso de poder deve ser interpretada como a concretização de ações – ou omissões – que denotam mau uso de recursos tidos, controlados pelo beneficiário ou a ele disponibilizados. As condutas levadas a cabo não são razoáveis nem normais à vista do contexto em que ocorrem, revelando existir exorbitância, desdobramento ou excesso.
O abuso de poder constitui conceito jurídico indeterminado, fluido e aberto, cuja delimitação semântica só pode ser feita na prática, diante das circunstancias que o evento apresentar. Portanto, em geral, somente as peculiaridades do caso concreto é que permitirão ao intérprete afirmar se esta ou aquela situação real configura ou não abuso.[12]
Em linhas gerais, portanto, o abuso de poder é toda conduta abusiva de utilização de recursos financeiros, públicos ou privados, ou de acesso a bens ou serviços em virtude do exercício de cargo público que tenha potencialidade para gerar desequilíbrio entre os candidatos, afetando a legitimidade e a normalidade das eleições.
Diante das consequências maléficas que o abuso do poder pode desencadear, a sua materialização na esfera pública coloca em risco o Estado Democrático de Direito, a soberania popular e a legitimidade das eleições, por isso a Carta Magna preconiza em seu art. 14, §9°, que a lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.
Com efeito, coube à Lei Complementar n° 64/1990 efetivar o referido comando constitucional, estabelecendo em seu art. 22 a possibilidade da representação para a abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, com o objetivo de proteger a normalidade e legitimidade das eleições e coibir a influência de potência econômica ou política no resultado do pleito.
3 Espécies de abuso de poder
Como se nota, o abuso de poder pode ser configurado mediante (1) abuso de poder político, (2) abuso de poder econômico ou (3) abuso de poder no uso dos meios de comunicação.
3.1 Abuso de poder econômico
O uso inadequado e em excesso do dinheiro em campanha política é a espécie mais típica do abuso de poder, tendente a desequilibrar a disputa no pleito e a legitimidade das eleições. Na lição de Pedro Roberto Decomain, considera-se abuso de poder econômico “o emprego de recursos produtivos (bens e serviços de empresas particulares, ou recursos próprios do candidato que seja mais abastado), fora da moldura para tanto traçada pelas regras de financiamento de campanha constantes da Lei n. 9.504/97”.[13]
Djalma Pinto distingue o abuso de poder econômico direto do indireto. A forma direta é aquela praticada pelo próprio candidato, quando, por exemplo, coordena pessoalmente a distribuição de cestas básicas ou de tijolos a eleitores carentes.[14] A forma indireta, quando terceiros realizam o aliciamento com o objetivo de favorecer seu candidato que, mesmo tendo ciência do fato, não coíbe ou impede sua prática, a exemplo do fornecimento de ônibus por simpatizantes do candidato para transportar pessoas carentes, poucos dias antes do pleito, exigindo que votem no candidato por eles indicado como contrapartida pelo benefício recebido.
Nessa senda, para o Tribunal Superior Eleitoral o abuso do poder econômico é a utilização, em benefício eleitoral de candidato, de recursos patrimoniais, públicos ou privados, em excesso, a exemplo da vultosa contratação de veículos e de cabos eleitorais correspondentes à expressiva parcela do eleitorado (RESPE Nº 191868, REL. MIN. GILSON DIPP, DE 04.08.2011) e favorecimento eleitoral a um grande número de pessoas necessitadas por meio de manutenção de albergues, travestido de filantropia (RO Nº 1445, REL. MIN. MARCELO RIBEIRO, DE 06.08.2009).
3.2 Abuso de poder político
Abuso de poder político é o uso indevido de cargo ou função pública, com a finalidade de obter votos para determinado candidato. Trata-se, portanto, de uma conduta ímproba, pela qual o agente público se vale do seu cargo ou da estrutura pública para influenciar o processo eleitoral. De acordo com José Jairo Gomes o Tribunal Superior Eleitoral assentou: (i) o abuso de político é “condenável por afetar a legitimidade e normalidade dos pleitos e, também, por violar o princípio da isonomia entre os concorrentes, amplamente assegurado na Constituição da República” (TSE – ARO n 718/DF – DJ 17-6-2005); (ii) “Caracteriza-se o abuso de poder quando demonstrado que o ato da Administração, aparentemente regular e benéfico à população, teve como objetivo imediato o favorecimento de algum candidato” (TSE – Respe n 25.074/RS – DJ 28-10-2005).[15]
Com efeito, a fim de evitar a ocorrência do abuso do poder político em campanhas eleitorais, o art. 73 da Lei das Eleições n. 9.504/97 estabelece uma relação de condutas vedadas aos agentes públicos tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais. Contudo, impende avivar, com a maioria da doutrina, que o referido rol não é exaustivo, mas exemplificativo. Nesse entendimento, Caramuru Afonso Francisco diz não haver um rol único dos atos de abuso de poder político. Em sua opinião, “o rol mais extenso é o constante do art. 73, da Lei n. 9.504/97, que tipifica condutas que são vedadas aos agentes públicos em época de campanha eleitoral, bem como condutas previstas nos arts. 75 e 77 da mesma lei, regras, entretanto, que não esgotam a matéria”.[16]
3.3 Abuso de poder nos meios de comunicação
Por fim, o abuso de poder nos meios de comunicação corresponde ao uso exagerado dos veículos de imprensa como instrumentos de promoção de candidaturas, em medida suficiente a comprometer a normalidade e a legitimidade do evento eleitoral. Considerando a capacidade de influência que a mídia possui sobre o ideário dos eleitores, o seu uso descomunal e desarrozoado é capaz de jogar por terra as bases isonômicas que devem conduzir a disputa por cargos políticos. Com efeito, o abuso de poder da mídia “ocorre sempre que um veículo de comunicação social (v.g. rádio, jornal, televisão) não observar a legislação de regência, causando benefício eleitoral a determinado candidato, partido ou coligação.[17]
4 Direito eleitoral e abuso religioso
A par da exposição panorâmica dos tipos de abuso de poder referidos pela legislação pátria, ressai a inescapável conclusão da inexistência de um tipo de abusividade eleitoral relativa exclusivamente à religião.
Cabe lembrar, a propósito, que na legislação eleitoral há apenas duas referências à questão religiosa. A primeira encontra-se prevista no art. 24, inciso VIII, da Lei n. 9.504/97, dispositivo este que veda ao partido e ao candidato receber direta ou indiretamente doação em dinheiro ou estimável em dinheiro, inclusive por meio de publicidade de qualquer espécie, procedente de entidades beneficentes e religiosas. E a segunda está insculpida no art. 37, § 4o, da mesma lei, que considera os templos religiosos como bens de uso comum do povo, proibindo-se, portanto, a veiculação de propaganda de qualquer natureza, inclusive pichação, inscrição a tinta, fixação de placas, estandartes, faixas e assemelhados.
Tais dispositivos revelam a preocupação do legislador com a influência indevida da religião no processo eleitoral, com o propósito de impedir o abuso do poder econômico e a propaganda irregular no local reservado ao culto, por ser considerado bem de uso comum do povo. Contudo, a inobservância dos referidos dispositivos possui consequências diferenciadas. Enquanto a propaganda irregular contrária ao art. 37, § 4o acarreta somente multa aos infratores (art. 37, § 1o), o recebimento de doação de fonte vedada, no caso organização religiosa, ocasionará ao partido a perda do direito ao recebimento da quota do Fundo Partidário do ano seguinte, sem prejuízo de responderem os candidatos beneficiados por abuso do poder econômico, a teor do que dispõe o art. 25, caput, da Lei das Eleições, e ainda a rejeição/desaprovação das contas de campanha.
Desse modo, configura-se o abuso de poder econômico também pelo descumprimento das regras atinentes à arrecadação dos recursos de campanha. Segundo Renato Ventura, há abuso de poder econômico quando se constata o uso ilegal de dinheiro, bens e serviços, para auxiliar determinado ou determinados candidatos, tentando influenciar ou influenciando na normalidade e legitimidade das eleições.[18]
Nada obstante, o TSE já decidiu que, se a doação recebida de fonte vedada for de pequeno valor e não se averiguar a má-fé do candidato ou a gravidade das circunstâncias diante do caso concreto, é possível a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade para aprovar, com ressalva, a prestação de contas.[19] De igual modo, impende consignar que a Lei n.º 64/90, alterada pela Lei da Ficha Limpa (n.º 135/2010), em seu art. 22, inciso VXI, estabeleceu que “para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam”. Assim, embora não se fale atualmente no requisito de potencialidade lesiva do pleito, é preciso considerar, para a configuração do abuso de poder, a gravidade das circunstâncias. Logo, caso o valor doado irregularmente seja de pequena monta, sem capacidade de interferir no pleito, não há falar-se em abuso de poder.
Por outro lado, se o candidato tem o apoio de uma dada organização religiosa, recebendo, na forma de caixa dois (i.e. sem contabilização), doação de dinheiro, bens e serviços estimáveis em dinheiro, e utiliza toda a estrutura eclesiástica e mão de obra a seu favor, para impulsionar a sua campanha eleitoral, evidentemente que está configurado o abuso de poder econômico, diante do desequilíbrio na disputa.
Contudo, ainda assim, não é possível falar em “abuso de poder religioso”, afinal, como já exposto alhures, não há tal tipo de ilicitude eleitoral no ordenamento jurídico brasileiro. Nesse sentido, trago ao foco o emblemático julgamento que ocorreu no Estado de Alagoas, em que o Tribunal Eleitoral daquela Unidade da Federal cassou o mandato do deputado estadual João Caldas (PTN) por “abuso de poder religioso” e uso indevido de meios de comunicação nas eleições de 2010, em virtude de participação em eventos religiosos da Igreja Internacional da Graça de Deus.[20] No entanto, ao chegar ao Tribunal Superior Eleitoral (AC n. 134223), a Ministra Luciana Lóssio deferiu o pedido cautelar para suspender os efeitos do Acórdão do TRE-AL, consignando o seguinte:
Com a devida vênia, graves erros foram cometidos pelos juízes eleitorais alagoanos. Em primeiro lugar, condenaram o réu por uso indevido dos meios de comunicação, ilícitos que só poderia ser apurado em Ação de Investigação Judicial Eleitoral, nunca em AIME. No dizer do relator, o impugnado usou abusivamente meios de comunicação a seu dispor para obter o apoio da igreja. Em segundo, proferiram julgamento extra petita, ao condenar o impugnado por conduta não descrita na inicial. Em terceiro, ignoraram o conjunto probatório dos autos. Em quarto, utilizaram na fundamentação elementos probatórios que não se encontram no processo, nomeadamente dados da prestação de contas de João Caldas, pai do impugnado, os quais não foram submetidas ao contraditório (fls. 1046). Em quinto, lançaram mão de ilícito não previsto no ordenamento jurídico, o “abuso do poder religioso”, assim descrito pelo TRE às fls. 977: “o abuso de poder se apresenta à Justiça Eleitoral na forma do abuso de poder econômico decorrente do assédio moral aos fiéis para a arregimentação de eleitores” (sic). (Fl. 60).[21]
Portanto, no dizer da ministra Luciana Lóssio não há previsão no ordenamento jurídico de ilícito administrativo-eleitoral denominado “abuso do poder religioso”. É preciso assinalar a distinção entre o abuso de poder por meio da estrutura eclesiástica-religiosa e “abuso de poder religioso”. Na primeira situação, a entidade religiosa se vale, como é mais comum, do poder econômico e dos meios de comunicação para apoiar determinada candidatura, em detrimento da lisura e do equilíbrio do pleito. Exemplo de abuso dos meios de comunicação mediante atos religiosos é a hipótese de evento previamente denominado de fim religioso, mas em que a pregação faz apelo a expresso pedido de votos para candidatos a cargos eletivos que encontram-se presentes e participam ativamente da “encenação de fé”.[22] Nessa hipótese, a igreja e a religião são usados como instrumentos para o cometimento de atitudes abusivas no processo eleitoral, a configurar, obviamente, uma das espécies de abuso de poder previsto pela legislação, devendo, portanto, receber a respectiva reprimenda do Poder Judiciário Eleitoral.
Situação diferente é o assim cognominado “abuso de poder religioso”. Aqui, parte-se do pressuposto subjacente que o “poder religioso”, é dizer: a autoridade religiosa-eclesiástica, naturalmente, induziria a um tipo de abuso de repercussão eleitoral, por conta do assédio moral ao fieis, mediante pressão psicológica espiritualizada, induzindo-os a votar nesse ou naquele candidato. Nessa perspectiva, a religião não poderia influenciar o voto de seus fiéis, na medida em que estaria se valendo da fragilidade espiritual dos indivíduos, inculcando doutrinação religiosa com fins eleitoreiros. Por essa razão, argumenta-se, a religião não pode se envolver com questões políticas, visto que sua atuação deve dizer respeito somente aos aspectos transcendentais do ser humano, sem envolvimento com as coisas desse mundo, especialmente em virtude do princípio da laicidade, que exige a separação entre Estado e igreja.
Esse tipo de “abuso de poder religioso” na esfera eleitoral, além de não encontrar respaldo em nosso ordenamento jurídico, é assentado em pressupostos equivocados na compreensibilidade tanto da religião quanto do seu relacionamento com o Estado. A expressão traz consigo toda uma carga ideológica negativa da religiosidade e uma visão igualmente tacanha dos religiosos, tidos como desprovidos de discernimento racional e incapazes de pensarem autonomamente. Também desconsidera o papel da igreja como agente sociopolítico, com esteio em premissas enganosas sobre o princípio da laicidade.
A fim de desfazer essas equivocidades, é preciso destacar, à partida, que o abuso psicológico e o assédio moral não são inerentes à religião. Infelizmente, a violência psíquica e a coação moral fazem parte da humanidade. Em todas as esferas da sociedade, do ambiente público ao privado, em casa ou no trabalho, presenciamos esse tipo grotesco de conduta, pela qual alguém influi sobre o estado de ânimo de outrem obrigando-a a proceder de determinada forma. No âmbito cível, a coação é espécie de vício de vontade, pelo qual se incute ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens (art. 151, Código Civil).
Na esfera eleitoral, o art. 301 do Código Eleitoral tipifica como crime “usar de violência ou grave ameaça para coagir alguém a votar, ou não votar, em determinado candidato ou partido, ainda que os fins visados não sejam conseguidos”. Nos dizeres de Lucon e Vigliartal tipo penal possui como elementares as expressões “violência” e “grave ameaça”.[23] A violência precisa ser física contra a pessoa; enquanto a grave ameaça se apresenta como uma forma de intimidar a pessoa de um mal futuro e sério (qualquer espécie de intimidação impossível ou sem qualquer gravidade – observada de forma subjetiva – descaracteriza o crime em questão”. Exemplo dessa coação moral é quando o coator prenuncia o mal contra familiares do coato, cabos eleitorais e contra os próprios candidatos.
Com efeito, possível discurso de natureza religiosa, que busque influenciar o voto do eleitor a partir de princípios da fé, não constitui o crime tipificado no art. 301, tendo em vista tratar-se de questão de natureza subjetiva, que diz respeito à interioridade do ser humano, sobre a qual não é possível avaliar a influência e o alcance, ainda que seja exercido por autoridade eclesiástica, pastor, sacerdote, padre ou líder religioso. De forma objetiva, a única coação psicológica especifica na legislação é aquela exercida por servidor público. O art. 300 tipifica a conduta do servidor público que se vale da sua autoridade para obrigar alguém a votar ou não votar em determinado candidato ou partido.
É válido observar, contudo, que não há falar-se em coação eleitoral do art. 301 tão somente em relação à influência psicológica da religião sobre a mente do fiel, mas em relação a qualquer outra cosmovisão, doutrina ou ideologia secular exposta e defendida por alguém, em condição de superioridade hierárquica, na tentativa de direcionar o voto de um grupo de pessoas. Desse modo, não se considera coação eleitoral quando o líder de uma dada entidade associativa de defesa dos gays e lésbicas, por exemplo, busque inculcar em seus membros a necessidade de se votar em um candidato específico que defenda sua linha de pensamento. O mesmo vale para outros grupos da sociedade, como ambientalistas, ruralistas, entidades sindicais etc. Nesses casos, ainda que possa haver excesso e até mesmo coação psicológica para direcionar os votos dos eleitores, dificilmente será levantada hipótese de “abuso de poder homossexual”, “abuso de poder ambientalista”, “abuso de poder ruralista” ou “abuso de poder sindical”. Nessas situações, a influência é considerada legítima, como o simples exercício da liberdade de pensamento e convicção filosófica, com supedâneo na Constituição Federal. Por outro lado, quando o mesmo ocorre na esfera religiosa, o fenômeno passa a ser taxado de “abuso de poder religioso”, “abuso espiritual” e coação moral de natureza eleitoreira.
Tal postura dúplice tem início numa visão distorcida do fenômeno religioso, como sendo algo eminentemente acrítico e anti-intelectual e desprovido de profundidade epistemológica. Nessa perspectiva, os fiéis não passariam de meros autômatos, sem discernimento próprio, subservientes e incapazes de reagir diante de qualquer tentativa de influência eleitoreira. Trata-se, pois, de uma visão secularizada que vê o mundo de forma dicotômica dividido em dois pavimentos, como diria Francis Schaeffer.[24] No pavimento de cima estaria a fé, o não racional e não lógico; no pavimento de baixo, a razão, o racional e o lógico. No pavimento de cima, as pessoas são induzidas pela emoção, fé e sentimento. No pavimento de baixo, pela reflexão crítica e pela racionalidade. Logo, ao que parece, em matéria eleitoral, só haveria falar em abuso no pavimento de cima, pois no pavimento de baixo são todos entendidos e inteligentes o suficiente para rejeitar o discurso eleitoreiro, por mais coativo que seja.
Diante desse cenário, é preciso aprofundar para rejeitar essa perspectiva equivocada acerca da religião, especialmente da religião cristã. Em A Vitória da Razão o sociólogo da religião, Rodney Stark, destaca como o Cristianismo gerou a liberdade, os direitos do homem, o capitalismo e o milagre econômico no Ocidente. Stark explora como a razão ganhou importantes batalhas e moldou de forma única a cultura e as instituições ocidentais. “A vitória mais importante foi a do Cristianismo. As outras religiões mundiais sublinham o mistério e a intuição, mas o Cristianismo vê a razão e a lógica como ferramentas fundamentais para a descoberta da verdade religiosa”.[25] Desse modo, a religião evangélica – dentro do nosso objeto de estudo – não é um emaranhado de misticismo e intuição subjetivista. De modo geral, ainda que possam existir divergências doutrinais e confissões variadas dentro desse espectro, o evangelicalismo considera a razão como elemento importante na vida religiosa, primando pela autonomia e liberdade do indivíduo.[26]
É bem verdade que excessos e abusos são cometidos em nome da religião, entretanto é preciso ter o devido cuidado para não tomar a parte pelo todo, julgando todo movimento do cristianismo evangélico como possuidor de mesma característica e comportamento eleitoral. Nesse sentido, é válido destacar o que escreveu Paul Freston:
É claro que políticos evangélicos que dizem “vote em mim porque sou líder na igreja, sou bom evangelista ou cantor etc.”, o que é uma tentativa descabida de converter capital religioso em cacife político, não seriam aceitos. Também não seriam aqueles que dizem “votem em mim porque uso um discurso acentuadamente religioso”, o que coloca a busca da afinidade entre candidato e eleitor no nível da forma do discurso e não no nível do conteúdo. De fato, existem maneiras de ligar religião e política eleitoral que são péssimas: o objetivo de favorecer seu grupo religioso, ou de impor a moral e social de sua religião sobre a população. Mas e existe também uma maneira boa: a das propostas no mercado das ideias, na esperança de que elas venham a ser influentes na sociedade, independentemente de a maioria ser a nossa religião ou não, na base (muito firme na teologia bíblica) de que os valores cristãos não são arbitrários mas correspondem à realidade do ser humano e do universo.[27]
Portanto, é preciso distinguir a forma como cada grupo religioso-evangélico se relaciona com o processo eleitoral, a depender da sua visão ética aplicada à relação entre igreja e estado. Mas, até mesmo aqueles grupos e líderes que se valem de um discurso carregado do conotação religiosa, seja pelo “fundamentalismo”, “teologia do domínio” ou pelo “messianismo evangélico” para influir no processo eleitoral, também possuem legitimidade na dinâmica da disputa política. Em um ambiente de pluralidade e de tolerância, as forças ideológicas que compõem o tecido social devem ter direito ao mesmo espaço para definir a formatação política do estado.
Por esse motivo, dentro de uma visão eminentemente jurídica, à luz dos princípios e regras que regulam o processo eleitoral, a expressão “abuso de poder religioso” se mostra imperfeita e até mesmo discriminatória, na medida em que categoriza um tipo de violação legal para um grupo específico de pessoas na sociedade: os religiosos. Mesmo que algumas organizações religiosas possam exercer influência indevida sobre os seus adeptos a fim de que votem em candidatos ou partidos específicos, por meio de pressão psicológica, a ilegalidade deve ser avaliada não como um fenômeno exclusivamente religioso, mas antropológico, que pode ser materializada sob outros fundamentos ideológicos e em outros grupos sociais.
Portanto, não existe “abuso de poder religioso” como uma espécie autônoma de ilicitude eleitoral, afinal, o arcabouço jurídico-eleitoral não se preocupa em qualificar o motivo fomentador do abuso, seja religioso, ideológico ou não, cumprindo-lhe verificar o excesso do poder capaz de influenciar a legitimidade das eleições. Assim, os limites da influência da religião evangélica no processo político-eleitoral são aqueles estabelecidos pela legislação em vigência, que vedam o uso excessivo do poder político, econômico e dos meios de comunicação. Caso se aceitasse a categorização de “abuso de poder religioso” como ilicitude eleitoral, dever-se-ia cogitar também, dentro de uma visão isonômica, ao “abuso de poder ideológico”, “abuso de poder marxista”, “abuso de poder homossexual”, “abuso de poder irreligioso” ou “abuso de poder empresarial”.