Segundo o art. 144, da Constituição Federal, a segurança pública é “dever do estado, direito e responsabilidade de todos”. Na medida em que temos direito à segurança como garantia constitucional indisponível[1], surge nossa parcela de responsabilidade à manutenção de uma sociedade na qual prevaleça a tranquilidade. Em tempos de ativismo judicial[2], começa a população a perceber o importante papel exercido pelo Poder Judiciário, verdadeiro fiel da balança em um estado democrático de direito.
Não há dúvidas de que estamos atravessando um período obscuro, no qual os escândalos sobre corrupção e desvio de recursos públicos dominam o noticiário. Em boa medida, o descrédito das instituições, as dificuldades econômicas e a falta de perspectivas laborais acabam, ainda que de modo indireto, por contribuir com o aumento dos índices de criminalidade. Mas não é só o negativo ambiente socioeconômico que incita a prática criminosa. A ausência de rigor de algumas decisões judiciais também acaba por ampliar a sensação de impunidade.
Alcançar a imparcialidade absoluta é tarefa impossível. Temos nossas convicções, nossas experiências, e elas fazem a diferença no momento em que precisamos efetuar uma escolha. Isso não quer dizer que os juízes não devam buscar a imparcialidade formal, aquela dos autos, mas mesmo em relação a essa, serão as decisões marcadas por suas crenças. Existem, ainda, as influências advindas da sociedade, que da mesma forma, poderão conduzir a decisão para uma ou outra direção.
Há muito se discute sobre a figura do julgador e o reflexo de suas decisões junto à sociedade. Enquanto alguns defendem que o juiz deve se manter distante do clamor social, decidindo nos termos da lei e com base naquilo que foi discutido nos autos, há aqueles a professar que devem os juízes encontrar o equilíbrio entre os anseios da população e o formalismo do processo.
No passado, associava-se a figura do juiz àquele sujeito sisudo, cerimonioso, usuário de uma linguagem rebuscada. Mas o tempo está a anunciar boas novas. Ainda que tratado com o respeito que a liturgia do cargo merece, é o juiz antes de tudo um servidor público, cujo salário, como tantos outros, também resultam do esforço do contribuinte. E assim precisamos compreendê-lo: como um de nós.
Sem dúvidas, são as decisões criminais aquelas que causam as discussões mais fervorosas. Desde sempre, o embate entre defesa e acusação vai além dos autos, na tentativa de direcionar a opinião pública. Em regra, é na necessidade ou não da prisão que residem as maiores divergências. Ora tratada como solução, ora como problema, é quando da decretação da prisão (ou concessão de liberdade) que os juízes ficam mais expostos.
Considerando que sempre há vários caminhos possíveis, certo é que a escolha de um deles não será definida exclusivamente pela mera análise da norma. Os anseios pessoais do magistrado, e mesmo os da população, consciente ou inconscientemente, terão seu peso. E desse modo, o que teremos a seguir será uma decisão em muito baseada na personalidade do julgador e na (auto) percepção de seu papel na sociedade.
As Lei nº 12.403/11 e 9.296/06
Há alguns anos, sobreveio ao nosso ordenamento a Lei nº 12.403/11, que profundas alterações causou aos institutos da prisão preventiva, da liberdade provisória e da fiança. Em virtude da amplitude das mudanças, ficaremos tão somente com a análise da possibilidade (ou não) de o juiz decretar, de ofício e no curso do inquérito, a prisão preventiva.
Segundo o art. 310, do Código de Processo Penal[3], o juiz, ao receber o auto de prisão em flagrante, poderá relaxá-la, convertê-la em preventiva, decretar outras medidas cautelares diferentes da prisão, ou conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. Enquanto os Tribunais entendem plenamente possível essa conversão[4] – o que equivale a dizer que há uma decretação de ofício no curso do inquérito policial – diverge a doutrina, alegando, no caso de não-aceitação da conversão, uma pretensa inconstitucionalidade do inciso II, do art. 310[5].
São claros os comandos do art. 310. As possibilidades elencadas ao longo dos seus três incisos não deixam incertezas sobre a faculdade de decretação da preventiva, desde que, de modo fundamentado, reconheça o magistrado a existência de alguma(s) das situações dos expostas nos arts. 312 e 313. Desse modo, deve o juiz escolher um dos caminhos que lhe são apresentados, a partir da análise inicial sobre a legalidade (ou não) da ação flagrancial. Em sendo ilegal, impõe-se a liberdade ao conduzido. Em sendo correta, decreta-se a preventiva ou concede-se a liberdade provisória, com ou sem fiança.
Um dos argumentos usados à defesa da inconstitucionalidade do inciso II, do art. 310, estaria relacionado à imparcialidade do juiz, então maculada pela manifestação de ofício. Diante disso, cabe indagar (e aqui voltamos à discussão central) acerca do peso que os valores e a formação cultural do magistrado teriam ao reconhecimento (ou não) dessa inconstitucionalidade.
Argumentar que o magistrado somente pode decretar a preventiva a partir de requerimento do órgão ministerial ou de representação do delegado de polícia é, em última análise, apequenar-lhe o poder geral de cautela, e quiçá, a própria reserva de jurisdição. Necessário destacar que não há, no art. 310, qualquer menção à necessidade de provocação, devendo o juiz atuar espontaneamente. Se pode o juiz determinar a aplicação de outra medida cautelar diferente da prisão, por que não a própria prisão, se entender presentes os requisitos ensejadores da preventiva? E mais, se pode ele conceder a liberdade provisória (reconhecida a regularidade do auto de prisão), não se permitir a decretação da preventiva resultaria em uma teratológica postergação da prisão em flagrante, situação que o legislador procurou extinguir com as alterações promovidas pela Lei nº 12.403/11.
Outro exemplo que podemos trazer ao debate está contido na Lei nº 9.296/96, que trata da interceptação telefônica. Segundo se depreende do normativo, nos casos em que o pedido partir da autoridade policial, não é uma exigência legal a manifestação prévia do órgão ministerial. Esse posicionamento, pacífico nos Tribunais, é interpretado de forma diversa por alguns magistrados, que entendem como necessária a abertura de “vistas” ao parquet[6].
Em que pese ser o Ministério Público o titular da ação penal, é preciso lembrar que o momento é o da investigação policial, na qual a condução dos trabalhos cabe à Polícia Judiciária. O pedido de utilização da ferramenta especial deverá ser submetido ao Judiciário – e somente a ele – já que a avaliação quanto à legalidade e utilidade da medida prescinde de qualquer análise que não seja aquela a ser exercida pelo juiz.
Essa opção pelo parecer prévio tem, de certa forma, condicionado algumas das decisões judiciais, como se a lei houvesse atribuído ao órgão ministerial, e não ao Poder Judiciário, decidir sobre o cabimento da medida. Não se questiona o relevantíssimo papel do Ministério Público como fiscal da lei, mas definitivamente, não é esse o espírito da norma, ainda mais quando se prevê a possibilidade de formulação verbal do pedido. E por falar em oralidade, aqui cabe uma observação: se a lei estipulasse como obrigatória a manifestação prévia do parquet, deveria ela ser observada inclusive nos pedidos verbais, situação não prevista pelo regramento especial.
Por óbvio, não há ilegalidade na escolha pela manifestação antecipada do Ministério Público. Tem o julgador autonomia para entende-la como necessária, ainda que isso atrase a entrega da prestação jurisdicional. Em todo caso, da mesma forma que não há qualquer nulidade no ato de “vistas” ao parquet, também não há caso decida o juiz pelo deferimento da medida, dando-se ciência ao Ministério Público para que, caso queira, acompanhe a execução da medida.
Conclusão
Não se está a defender que o juiz seja conduzido exclusivamente pelos seus humores ou pelo coro das ruas. Não é esse o ponto. O indesejável, nesse caso, é o exercício do seu ofício sob o jugo do medo ou pela necessidade de agradar a "A" ou "B". O que se busca, na verdade, é que o magistrado atue de forma livre, sem o receio de seguir suas convicções, de seguir os apelos da população – ou mesmo contrariá-los – em prol do que for justo achar mais correto.
A facilidade para julgar nesse ou naquele sentido, causada pela existência de um parecer, não pode ser motivo para a coleta de manifestação prévia. Não é o magistrado um mero homologador de pareceres ministeriais. É dele a nobre função de resolver a lide, prolatando a decisão a partir dos argumentos que lhe foram apresentados ou não, já que possui o poder geral de cautela. O juiz, sobretudo aquele que atua em sede criminal, assume a enorme reponsabilidade de, com o produto do seu “sacerdócio”, restaurar o equilíbrio em determinadas relações sociais, absolvendo ou apenando, conforme o caso.
A independência do Estado-juiz é essencial ao desenvolvimento da própria democracia. Não há que se falar em juízes vinculados a partidos políticos, ainda que tenham eles afeição por determinada corrente ideológica. O exercício da judicatura deve objetivar, acima de tudo, a concretização daquilo que se entende como justiça, ainda que se trate de uma decisão contra a vontade majoritária ou mesmo extralegal. Fundamental é que o magistrado seja técnico, imparcial, sem deixar de ser destemido, que tente entender as aflições dos (seus) jurisdicionados, as peculiaridades geográficas e os costumes desse ou daquele ajuntamento de pessoas.
A coexistência em sociedade demanda a atuação de todos, cada um fazendo o que lhe cabe. Do juiz, o que se espera é o pleno exercício da autoridade que lhe conferiu a lei, livre das pressões de quem quer que seja. Nesse sentido, ganha o povo, que vê na figura do magistrado o garantidor da justiça. Ganha o próprio magistrado, que se convence da importância da sua atuação e dos reflexos de suas decisões à consolidação de um Estado seguro e democrático.
Notas
[1]RE 559.646-AgR, rel. min. Ellen Gracie, julgamento em 7-6-2011, Segunda Turma, DJE de 24-6-2011.
[2]Postura proativa do Poder Judiciário, que segundo alguns, acaba por interferir na rotina dos outros poderes.
[3] Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente:
I - relaxar a prisão ilegal; ou
II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou
III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
Parágrafo único. Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do art. 23 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação.
[4]STJ - RHC 59.430/BA, Rel. Ministro LEOPOLDO DE ARRUDA RAPOSO, DJe 25/06/2015; STJ - HC 308.295/MT, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, DJe 04/02/2015; TRF1 - HC 0029559-12.2015.4.01.0000/RR, Rel. Desembargador Federal FEDERAL MÁRIO CÉSAR RIBEIRO, e-DJF1 p.3270 de 04/09/2015.
[5]Contra:http://www.emerj.tjrj.jus.br/serieaperfeicoamentodemagistrados/paginas/series/4/medidas_cautelares_38.pdf. Acesso em 20 de outubro de 2015. A favor: FREITAS, Jayme Walmer de. PRISÃO CAUTELAR NO DIREITO BRASILEIRO, Saraiva, 2013; http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10100. Acesso em 20 de outubro de 2015.
[6]Art. 3° A interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo juiz, de ofício ou a requerimento:
I - da autoridade policial, na investigação criminal;
II - do representante do Ministério Público, na investigação criminal e na instrução processual penal.
Art. 4° O pedido de interceptação de comunicação telefônica conterá a demonstração de que a sua realização é necessária à apuração de infração penal, com indicação dos meios a serem empregados.
§ 1° Excepcionalmente, o juiz poderá admitir que o pedido seja formulado verbalmente, desde que estejam presentes os pressupostos que autorizem a interceptação, caso em que a concessão será condicionada à sua redução a termo.
§ 2° O juiz, no prazo máximo de vinte e quatro horas, decidirá sobre o pedido.
Art. 5° A decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova.
Art. 6° Deferido o pedido, a autoridade policial conduzirá os procedimentos de interceptação, dando ciência ao Ministério Público, que poderá acompanhar a sua realização.