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O Poder Legislativo municipal:

entre a democracia e a demagogia

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09/12/2015 às 10:22
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Por mais que as propostas de redução do número de vereadores e do valor de seus subsídios pareçam bem intencionadas, quando submetidas à crítica sob as luzes do texto constitucional, mostram-se discursos demagógicos e perniciosos à cultura democrática.

INTRODUÇÃO.

O Brasil assiste, atualmente, uma época das mais diversas efervescências de opinião.

Neste cenário, têm se multiplicado, por todo o País, apelos supostamente populares pela redução do número de vereadores e, também, de seus respectivos subsídios – com o intuito, inclusive, de equipará-los ao salário mínimo nacional.

O breve e modesto estudo que ora se apresenta tem o escopo de – partindo de uma reflexão sobre o conceito e as ambivalências da democracia, e sobre o risco de degenerescência do discurso democrático em práticas demagógicas – fazer uma breve análise de tais propostas, levando em conta, também, as atribuições próprias do Poder Legislativo Municipal.

O tema, evidentemente, é caracterizado pela polemicidade, de forma que não se tem, neste resumido estudo, inclusive em virtude de seus estreitíssimos limites, quaisquer pretensões exaustivas. O intuito, antes, é de chamar a atenção para a necessidade de reflexão sobre questões cuja complexidade tem sido, ao que parece, salvo melhor juízo, negligenciada.

1 DEMOCRACIA.

Como os discursos que defendem, hodiernamente, a redução do número de vereadores e do valor de seus respectivos subsídios não têm encontrado, em geral, um contraponto, nem têm sido submetidos, no mais das vezes, a uma análise crítica, tem sido fabricada uma impressão de que o atendimento a tais pleitos seria, supostamente, a única saída “democrática” para a questão.

Isto ocorre, ao que parece, inclusive porque a complexidade do conceito de democracia, suas ambivalências e os riscos de degenerescência do exercício democrático em exercício demagógico têm sido, sistematicamente, ignorados.

Assim, parece premente, para que se possa analisar a questão de forma mais abrangente, que neste primeiro tópico tais questões sejam tratadas, ainda que de forma bastante panorâmica.[1]

De acordo com Bobbio, há critérios formais de configuração de um determinado sistema como democrático, dentro os quais estariam as seguintes características:

1) o órgão político máximo, a quem é assinalada a função legislativa, deve ser composto de membros direta ou indiretamente eleitos pelo povo, em eleições de primeiro ou de segundo grau;[2] 2) junto do supremo órgão legislativo deverá haver outras instituições com dirigentes eleitos, como os órgãos da administração local ou o chefe de Estado (tal como acontece nas repúblicas); 3) todos os cidadãos que tenham atingido a maioridade, sem distinção de raça, de religião, de censo e possivelmente de sexo, devem ser eleitores; 4) todos os eleitores devem ter voto igual; 5) todos os eleitores devem ser livres em votar segundo a própria opinião formada o mais livremente possível, isto é, numa disputa livre de partidos políticos que lutam pela formação de uma representação nacional; 6) devem ser livres também no sentido em que devem ser postos em condição de ter reais alternativas (o que exclui como democrática qualquer eleição de lista única ou bloqueada);[3] 7) tanto para as eleições dos representantes como para as decisões do órgão político supremo vale o princípio da maioria numérica, se bem que podem ser estabelecidas várias formas de maioria segundo critérios de oportunidade não definidos de uma vez para sempre;[4] 8) nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, de um modo especial o direito de tornar-se maioria, em paridade de condições; 9) o órgão do Governo deve gozar de confiança do Parlamento ou do chefe do poder executivo, por sua vez, eleito pelo povo (1998, p. 327).[5]

Goyard-Fabre destaca, também, que o ideal democrático se desenvolveu, ao longo da história, fundado sobre três eixos institucionais, “os procedimentos da representação; as estruturas contratualistas de um poder que não pode nem existir nem se exprimir sem o consentimento do povo; a arquitetura de uma Constituição que, ao organizar os poderes do Estado, garante o respeito da legalidade” (2003, p. 127).[6]

Segundo a autora, “o regime da democracia repousa hoje sobre uma organização constitucional na qual as autoridades e as instâncias políticas estão, elas mesmas, submetidas ao direito: dessa concepção da democracia o estado de direito é a forma jurídica acabada” (GOYARD-FABRE, 2003, p. 277).

Esse quadro tem como resultado, segundo Guimarães e Amorim, que “[…] uma vez que a democracia, em sua polissemia de sentidos, tornou-se um valor de referência universal na contemporaneidade, ela pode ser definida como o tipo de regime que permite o exercício da liberdade de indivíduos” (2013, p. 19).

No panorama contemporâneo, segundo Barroso,

[...] no tocante à democracia, é possível considera-la em uma dimensão predominantemente formal, que inclui a ideia de governo da maioria e de respeito aos direitos individuais, frequentemente referidos como liberdades públicas – como as liberdades de expressão, de associação e de locomoção –, realizáveis mediante abstenção ou cumprimento de deveres negativos pelo Estado. A democracia em sentido material, contudo, que dá alma ao Estado constitucional de direito, é, mais do que governo da maioria, o governo para todos. Isso inclui não apenas as minorias – raciais, religiosas, culturais –, mas também os grupos de menor expressão política,[7] ainda que não minoritários, como as mulheres e, em muitos países, os pobres em geral (2009, p. 41).

A celebração das virtudes da democracia é, atualmente, ponto comum dos mais variados discursos; contudo, é necessário observar que, enquanto projeto cultural em evolução ao longo da história, suas ambivalências têm sido, desde há muito, salientadas.

Assim, Goyard-Fabre, ao falar sobre as características dos regimes democráticos que se mostraram constantes ao longo dos séculos, salienta que

Por um lado, ela [a democracia] define a forma de um regime que, fundando a autoridade do governo do povo, garante “a presença dos governados no exercício do poder”. Por outro lado, transporta e transpõe para a esfera política o caráter conflituoso das paixões humanas, de forma tal que, no mesmo movimento que suscita a esperança da liberdade e da igualdade, faz pesar sobre a Cidade as ameaças da desrazão que o desejo insaciável do povo introduz na razão (2003, p. 13).[8]

A autora observa que,

[...] a questão da legitimidade democrática faz surgir, hoje mais que nunca, um dilema doloroso: abriu-se uma brecha entre o princípio que funda racionalmente a democracia na vontade geral legisladora do povo soberano e o processo de legitimação das instâncias de decisão por uma opinião pública tão versátil quanto ruidosa (GOYARD-FABRE, 2003, p. 285).[9]

Ainda na Grécia antiga, Eurípedes falava sobre os riscos de as instituições democráticas serem degradadas em demagogia.

Embora, por exemplo, em As suplicantes, ele oponha a democracia à tirania que lhe causa horror, diz também que ela está solapada pelo pulular dos aduladores que inebriam o povo com palavras tão enganadoras quanto sedutoras. Deplora o julgamento pouco confiável das assembleias populares que se deixam levar pelo melhor perorador ou pelo orador mais violento (GOYARD-FABRE, 2003, p. 64).

Nesse mesmo contexto, Aristófanes, também, expõe em suas obras teatrais, uma visão que “[...] é sobretudo impiedosa tanto em relação à baixeza dos demagogos que, sem vergonha, adulam o povo, como em relação às próprias massas populares que, frágeis e inconstantes, carecem de lucidez e se deixam facilmente enganar” (GOYARD-FABRE, 2003, p. 65).[10]

Certamente influenciado por esses pensadores, posteriormente Aristóteles consagraria que a “democracia pode se corromper e então fazer despontar uma demagogia” (CICCO e GONZAGA, 2012, p. 79).[11]

Assim também, muito tempo depois, Tocqueville afirma que “a opinião geralmente aceita pela massa pode ser defendida por uma opinião delirante; pode proceder do arbítrio ou da adulação, obedecer a qualquer pequeno especialista em demagogia [...]” (GOYARD-FABRE, 2003, p. 217).[12]

Neste contexto, o caráter ambivalente da democracia, enquanto projeto histórico, pode parecer um problema invencível.

Nino, contudo, lembra que

Por certo, o procedimento democrático é extremamente falível e é tanto mais falível quanto mais se distancie de exigências de participação, ampla discussão e justificação, mas ainda assim é menos falível que outros métodos de decisão coletiva, como a reflexão isolada de uma única pessoa ou de um grupo de pessoas (2014, p. 186).

Assim também, Goyard-Fabre afirma que:

É precisamente disso que a sociedade democrática precisa: se é verdade que ela deve dar atenção à opinião pública, nem por isso deve submeter-se a ela; o importante é que ela reconheça, junto com os direitos de cidadãos maiores e livres, as exigências de princípio da ordem pública; sobre essa base, cabe a suas instituições efetuar a síntese entre ordem e liberdade (2003, p. 336).

Estlund, por sua vez, propõe que a autoridade democrática seja avaliada sob o crivo de um “requisito de admissibilidade qualificada”,[13] segundo o qual “[...] todas as justificações de uma autoridade política devem passar primeiro pelo crivo de todos os pontos de vista qualificados, e que essas justificações fracassam se são rechaçadas nesse processo” (2011, p. 68, tradução nossa).[14]

Pode-se afirmar, assim, que, para que não degenere para a pura demagogia, o ambiente democrático depende uma prática política comprometida não apenas com o mais absoluto respeito aos direitos das minorias, mas também com o cultivo de um discurso público esclarecido e logicamente organizado.

2 PODER LEGISLATIVO MUNICIPAL.

Referidas, ainda que de forma bastante panorâmica, os aspectos que mais importam para este resumido estudo relativos ao conceito de democracia, suas ambivalências e os riscos de degenerescência em demagogia, cabe passar a um breve tratamento das questões inicialmente propostas sobre as pretensões da redução do número de vereadores e de seus respectivos subsídios.

Antes, porém, referir-se-á, de forma também tangencial, algo a respeito das principais atribuições do Poder Legislativo Municipal.

2.1 As Atribuições do Poder Legislativo Municipal.

Para os fins deste resumido estudo, antes de tratar especificamente das questões relacionadas ao número de vereadores e aos seus respectivos subsídios, é necessário rememorar, de forma breve e panorâmica, quais as principais funções do Poder Legislativo Municipal.

É, assim, a partir da própria Constituição Federal, mais especificamente em seus artigos 30 e 31, que se toma conhecimento das atribuições dos vereadores.

Desta forma, segundo o artigo 30, I, da Constituição Federal, compete ao Município legislar sobre assuntos de interesse local, quando não houver exclusividade de tratamento da matéria por parte do Poder Legislativo Federal e/ou Estadual, competindo-lhe, também, suplementar a legislação federal e estadual naquilo que couber – ainda mais especialmente em toda a matéria relacionada no art. 23, da própria Constituição Federal, e que inclui, por exemplo, o cuidado com a saúde e a assistência; a proteção de pessoas com deficiência; o acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação; a proteção do ambiente e o combate à poluição; o fomento à produção agropecuária e a organização do abastecimento alimentar; a promoção de programas habitacionais e de saneamento básico; o combate à pobreza e à marginalização.

Também é atribuição do Município, segundo o artigo 30, II, da Constituição Federal, instituir os tributos de sua competência.

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Cabe, também, ao Município, por força do disposto no artigo 30, VIII, da Constituição Federal, promover, no que couber, o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, além de, nos termos do artigo 30, IX, da Carta Magna, promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local.

Ainda cabe ao Poder Legislativo Municipal, segundo o determinado no artigo 31, caput, da Constituição Federal, promover a fiscalização do Município – o que fará, nos termos do art. 31, § 1º, com o auxílio do Tribunal de Contas do Estado, ou do Conselho ou Tribunal de Contas do próprio Município, onde houver.

Assim, segundo a síntese de Kawasaki,

O Poder Legislativo possui então duas funções típicas: a função legislativa e a função fiscalizadora. A primeira consiste em elaborar, apreciar, alterar ou revogar as leis de interesse do município, sendo que essas leis podem ter origem na própria Câmara ou resultar de projetos de iniciativa do Prefeito, ou da própria sociedade, através da iniciativa popular. A segunda função, consiste na atividade que o Poder Legislativo exerce para fiscalizar o Executivo e a burocracia, ou seja, é o acompanhamento da implementação das decisões tomadas no âmbito do governo e da administração.

Além disso, deve-se lembrar também que o Poder Legislativo possui duas funções atípicas: a função administrativa, pois gerencia o seu próprio orçamento, seu patrimônio e seu pessoal, além de organizar suas atividades; e a função judiciária, pois cabe a ele processar e julgar o Prefeito por crime de responsabilidade, além de julgar os próprios vereadores, inclusive o Presidente da Câmara, em caso de irregularidades, desvios éticos ou falta de decoro parlamentar (2015).

Vale lembrar, também, que, “o parlamento municipal, [...] de forma inegável, é o que está mais afeto ao cotidiano do cidadão, dada a sua proximidade” (PAULA, 2006, p. 34).

Evidencia-se, assim, ainda que de forma bastante resumida, que sobre os ombros dos vereadores e do Poder Legislativo Municipal encontram-se uma série de importantíssimas atribuições, que devem ser desempenhadas com a mais alta eficiência, a fim de que o Município, enquanto ente federativo,[15] alcance também suas próprias finalidades, sob as luzes do texto constitucional.

É de suma importância que não se perca de vista todas essas atribuições, quando se pretender analisar questões relativas ao funcionamento das Câmaras Municipais, no que se procurará avançar, modestamente, a seguir.

2.2 O Número de Vereadores.

No Brasil, o Poder Legislativo (na esfera municipal, tanto quanto na estadual e na federal) é organizado segundo as diretrizes da Constituição Federal, e formado por meio de eleições periódicas, segundo a sistemática da representação proporcional com lista aberta.[16]

Vale dizer que o eleitor vota no candidato de sua preferência, mas o voto é computado para o partido ou coligação ao qual o referido candidato encontra-se ligado. Na fase de apuração, são contados os votos válidos, o que permite chegar ao quociente eleitoral e ao quociente partidário[17] – após o que é possível saber quantas cadeiras foram conquistadas por cada partido ou coligação, conforme os votos obtidos, e, por fim, quais os candidatos mais votados de tal partido ou coligação, que assumirão as cadeiras em questão.

De  acordo  com  as  regras  atuais,  os  partidos  políticos  podem  competir sozinhos ou formar coalizões. Eles apresentam uma lista aberta de candidatos, ou seja, um elenco de candidatos sem definir uma ordem de preferência. Cada eleitor tem a opção de dar seu voto a um candidato ou a um partido.

Após a eleição, o Tribunal Superior Eleitoral calcula o coeficiente eleitoral por Quota Hare, excluindo da contagem os votos em branco. Após o cálculo, todos dos candidatos de um mesmo partido/coalizão são somados para determinar o número de  assentos  a  que  eles  têm  direito.  A  cada  vez  que  o  partido/coalizão  alcança  o coeficiente necessário, ele obtém uma cadeira.

Em um segundo momento, é feita a contagem dos votos individuais de cada candidato.  Os  assentos  obtidos  pelos  seus  respectivos  partidos/coalizões  são distribuídos àqueles com maior votação individual. Na verdade, os votos destinados a  cada  partido/coalizão  servem  apenas  para  distribuir  as  cadeiras,  não  afetam  a identificação  dos  candidatos  que  ocuparão  tais  cadeiras.  Os  assentos  ocupados  através  deste  processo  são  distribuídos segundo a fórmula D'Hondt (GIUDICE, 2010, p. 23 e 24).

É válido destacar, assim, que o sistema de representação proporcional funciona segundo uma sistemática pela qual é, em primeiro lugar, o partido ou coligação quem recebe os votos,[18] e que essa sistemática está fundada sobre a ideia de que os partidos[19] ou coligações representam tendências ideológicas e anseios diversos da sociedade.[20]

Ao final do processo eleitoral, o que se espera é que as ideologias e prioridades do povo estejam representadas no Poder Legislativo[21] – onde acontecem, por meio dos representantes eleitos, os debates democráticos relevantes para a construção de políticas públicas, por exemplo – em proporção semelhante à que se encontra na sociedade.

Segundo a síntese perspicaz de Teodoro,

Com o surgimento do governo democrático e a idéia de que o poder emana do povo, nasceu a idéia de que a representação popular deveria ser estendida a tantas quantas fossem as classes de cidadãos apresentadas em determinada região. Ou seja, se antes predominava o conceito de que somente os grandes partidos deveriam governar, a partir de então, surgiu a necessidade de que os pequenos partidos também se fizessem representados, e assim, tivessem espaço político para defender os interesses das minorias (2008).[22]

A ideia de que a representação proporcional é democraticamente mais adequada é relativamente recente na história humana.[23] Contudo, é de se ressaltar que, ainda em 1860, na obra Considerations on Representative Government, Stuart Mill já afirmava que o “referido sistema dá origem a um parlamento mais representativo das opiniões políticas dos eleitores, levam a formação de governos multipartidários que, precisamente pela sua composição, representam a maioria dos eleitores” (apud TEODORO, 2008).[24]

A efetiva possibilidade participação das minorias, portanto, é de crucial importância para que se caminhe no sentido de um ideal democrático.

A este respeito, vale lembrar a lição lapidar de Kelsen:

A discussão livre entre maioria e minoria é essencial à democracia porque esse é o modo de criar uma atmosfera favorável a um compromisso entre maioria e minoria, e o compromisso é parte da própria natureza da democracia. [...] Na medida em que, numa democracia, os conteúdos da ordem jurídica não são determinados exclusivamente pelo interesse da maioria, mas são o resultado de um compromisso entre os dois grupos, a sujeição voluntária de todos os indivíduos à ordem jurídica é mais facilmente possível que em qualquer outra organização política. Precisamente por causa dessa tendência rumo ao compromisso, a democracia é uma aproximação do ideal de autodeterminação completa (2000, p. 412).[25]

O artigo 29, IV, da Constituição Federal de 1988, estabelece os limites máximos de vereadores, levando em conta os números oficiais de habitantes[26] dos respectivos municípios. O número varia de no máximo nove vereadores, nos municípios com até 15 mil habitantes, até no máximo 55 vereadores, nos municípios com mais de oito milhões de habitantes.

É certo, por um lado, que os limites máximos fixados pela Constituição Federal devem ser respeitados, mas parece igualmente certo, por outro lado, que, dentro desses limites, não se deve esperar que a redução do número de vereadores possa proporcionar uma melhoria na qualidade de representação popular –mormente em um sistema de representação proporcional, adotado no Brasil, como visto.[27]

Muito pelo contrário, aliás; a redução do número de vereadores implica, também, inevitável e inescapavalmente, a redução das possibilidades de as minorias conseguirem se fazer representadas perante o Poder Legislativo Municipal – isto é, reduz a sua capacidade de participação ativa no debate democrático institucionalizado para a definição de políticas públicas.

Assim, salvo engano, o discurso, pretensamente democrático, que pretende defender a necessidade de redução do número de parlamentares municipais, mostra-se, na realidade, mesmo que de forma não intencional, tendente a diminuir a participação efetiva das minorias – e, desta forma, revela-se puramente demagógico e essencialmente antidemocrático.

2.3 A Remuneração dos Vereadores.

A Constituição Federal determina, no artigo 39, § 4º, que os detentores de mandato eletivo[28] serão remunerados pela sistemática de subsídio – fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória.[29]

É, também, a própria Constituição Federal, no artigo 29, VI, quem estabelece as balizas para a fixação do valor subsídio dos vereadores – em índices que variam de no máximo 20% do subsídio dos Deputados Estaduais, em Municípios de até 10 mil habitantes, até no máximo 75% do subsídio dos Deputados Estaduais, em Municípios de mais de 500 mil habitantes.

O texto constitucional prevê, ainda, no artigo 29, VII, que o total da despesa com a remuneração dos vereadores não poderá ultrapassar o equivalente a 5% da receita do Município, e, no artigo 29-A, que o total da despesa do Poder Legislativo Municipal,[30] não poderá ultrapassar o equivalente a percentuais que variam de no máximo 7% da receita total,[31] nos Municípios com até 100 mil habitantes, até no máximo 3,5% de tal receita, nos Municípios com mais de oito milhões de habitantes.

Verifica-se, assim, que a Constituição Federal – o pacto político fundamental do País – foi cuidadosa e detalhada, ao estabelecer os limites da remuneração dos vereadores e dos respectivos possíveis impactos no orçamento municipal.

Além do mais, a própria Constituição Federal sinalizou, no artigo 7º, V, que a remuneração correspondente a qualquer espécie de trabalho deve ser fixada em valores que levem em conta sua extensão e complexidade.

Multiplicam-se, contudo, por todo o País, discursos inflamados pela redução dos subsídios dos vereadores, muitas vezes para o valor estabelecido para o salário mínimo nacional.

Essa pretensão parece impossível, na vigência do atual texto constitucional, porque o artigo 29, VI, prevê que o subsídio será fixado, sempre, para a legislatura subsequente – que não pode adivinhar o valor do salário mínimo nos anos subsequentes, por um lado, nem estabelecer uma remuneração inferior ao próprio salário mínimo nacional, por outro –, e também porque os artigos 7º, IV e 37, XIII, salvo engano, vedam tal vinculação.

Além do mais, salvo melhor juízo, é possível enxergar em tais discursos – mesmo que isto não ocorra de forma intencional – o mais flagrante exercício de demagogia – o que ocorre, invariavelmente, em prejuízo do espírito democrático.

Ora, tendo conhecimento da extensão e da complexidade das atividades desenvolvidas pelos vereadores, [32] é imperativo que se trabalhe para que sejam eles remunerados de forma proporcional – isto, inclusive em observância ao disposto no já aludido artigo 7º, V, da Constituição Federal.

Neste panorama, parece possível afirmar que, além de formalmente inadequado, é, também, no mérito, completamente absurdo pretender limitar o subsídio de vereadores ao equivalente ao salário mínimo nacional – tanto quanto seria absurda a pretensão de levar tal limitação aos subsídios de magistrados, ou à remuneração de médicos, policiais ou professores, por exemplo.

Além do mais, é de se destacar que, conforme salientado no primeiro tópico deste resumido estudo, para que um determinado regime possa ser considerado democrático, é necessário que os cidadãos, em geral, tenham condições de acesso aos cargos representativos – independentemente de sua condição ou classe social.

É evidente, contudo, que, se o próprio subsídio não tiver um valor correspondente à extensão e complexidade das atribuições de vereador, estar-se-á afastando, por via reflexa, a possibilidade de cidadãos de baixa renda aspirarem ao cargo[33] – já que precisam dedicar tempo considerável à consecução de suas funções, por um lado, mas também precisam fazer frente às despesas inerentes à própria subsistência e ao sustento da família, por outro.[34]

É necessário levar em conta, ainda, que um subsídio de baixo valor provavelmente afastará também os candidatos mais bem preparados para o exercício das funções inerentes ao cargo de vereador.

Não se pretende aqui fazer uma apologia do discurso segundo o qual subsídios baixos, supostamente, conduziriam à corrupção. A experiência nacional tem mostrado que as pessoas com tendências à corrupção estão distribuídas pelas mais diversas esferas do poder e por todos os escalões imagináveis de remuneração. A corrupção, assim, parece estar ligada mais exatamente a uma falha de caráter, e não propriamente de remuneração.

Contudo, há que se levar em conta que os cidadãos bem preparados têm consciência do valor de seu próprio tempo, e provavelmente não estarão dispostos a sacrificá-lo, para desempenhar as funções do cargo de vereador de forma criteriosa, se a retribuição pecuniária não levar em conta a extensão e complexidade do trabalho.

É bem verdade que, atualmente, é bastante disseminada a ideia de que “os políticos”, em geral, têm a atuação marcada, na melhor das hipóteses, pela insignificância e, muitas vezes, mesmo, pela profunda corrupção.[35]

Contudo, é de se lembrar que o perfeito funcionamento das instituições passa, também, pelo bom desempenho das funções dos agentes políticos – que, aliás, estão sempre sujeitos ao controle popular, inclusive por meio da expressão da vontade nos sufrágios periódicos.[36]

Se, eventualmente, os atuais legisladores municipais são incompetentes, ou mesmo corruptos, resta sempre a possibilidade de escolha de candidatos mais bem preparados e mais honestos, nas próximas eleições; e se o cidadão entende que não há, absolutamente, candidatos com tais características, tem ele mesmo a possibilidade de, segundo suas próprias convicções ideológicas, procurar filiar-se a um partido e se colocar a disposição da população, como possibilidade de escolha.

Enfim, é de se questionar a quem pode interessar o discurso generalista de completo aviltamento do exercício político, que passa, atualmente, pela multiplicação de propostas flagrantemente demagógicas – e, até por isso, com aparências de boas intenções –, como tal, inevitavelmente perniciosas ao espírito democrático.

CONCLUSÃO.

No decorrer do resumido artigo que ora se apresenta, procurou-se demonstrar que a democracia, enquanto projeto histórico, deve estar comprometida com todos os cidadãos – inclusive com o absoluto respeito aos direitos das minorias, o que inclui a possibilidade de se fazerem representar nas mais diversas esferas do poder constituído.

Neste panorama, e pelas diversas razões expostas ao longo deste estudo, por mais que as propostas de redução do número de vereadores e do valor de seus respectivos subsídios possam parecer bem intencionadas (ou, mesmo que, em muitos casos, efetivamente o sejam), quando submetidas ao crivo da análise crítica e lógica, sob as luzes do texto constitucional, mostram-se discursos puramente demagógicos e, como tal, completamente perniciosos à cultura democrática.

Espera-se, assim, com este modesto artigo, contribuir para chamar a atenção para a alta complexidade dos temas em questão, e incentivar o aprofundamento do estudo e do debate sobre a matéria.

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Sobre o autor
Thiago Caversan Antunes

Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Especialista em Direito Civil e Processo Civil (UEL) e Mestre em Direito Negocial (UEL). Doutor em Direito pela Universidade de Marília (UNIMAR). Professor do curso de graduação em Direito da Universidade Positivo (UP Londrina), e de diversos cursos de pós-graduação. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE). Autor de livros e artigos científicos. Atua como advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANTUNES, Thiago Caversan. O Poder Legislativo municipal:: entre a democracia e a demagogia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4543, 9 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45034. Acesso em: 20 abr. 2024.

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Texto originalmente publicado na Revista Sensus: Direito.

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