Lei não pode estabelecer novos crimes inafiançáveis

05/12/2015 às 14:38
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Pretende-se apresentar novas ideias sobre a fiança e responder às seguintes perguntas: a) A lei pode tornar inafiançável outros crimes além dos já previstos na Constituição Federal? b) A vedação de fiança tem o mesmo efeito de crime inafiançável?

 

LEI NÃO PODE ESTABELECER NOVOS CRIMES INAFIANÇÁVEIS

Elaborado em 05/12/2015. Atualizado em 28/05/2016.

 

1 INTRODUÇÃO. 2 CRIMES INAFIANÇÁVEIS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL: inafiançabilidade constitucional ou absoluta. 3 CRIMES INAFIANÇÁVEIS NA LEI INFRACONSTITUCIONAL. 4 INAFIANÇABILIDADE LEGAL (RELATIVA): vedação ou impedimento a fiança. 5 DISPENSA DA FIANÇA POR MISERABILIDADE. 6 BREVE CRONOLOGIA DA LIBERDADE PROVISÓRIA E DA FIANÇA. 6.1 Lei n. 5.349/1967. 6.2 Lei n. 6.416/1977. 6.3 Lei 12.403/2011. 6.4 Constituição de 1988. 6.5 Lei n. 9.034/1995. 6.6 Lei n. 11.343/2006: tráfico de drogas. 6.6.1 Tráfico de drogas: liberdade provisória: Lei n. 11.464/2007. 6.6.2 Tráfico de drogas: afiançabilidade. 6.6.3 Tráfico de drogas: pena restritiva de direitos. 6.6.4 Trafico de drogas privilegiado: fiança e hediondez. 7 IMPRESCRITIBILIDADE: suspensão da prescrição por prazo indefinido (art. 366 do CPP). 8 INCOERÊNCIAS DA FIANÇA. 9 CONCLUSÃO: a) A lei pode tornar inafiançável outros crimes além dos já previstos na Constituição Federal? b) A vedação de fiança tem o mesmo efeito de crime inafiançável?

 

 

1 INTRODUÇÃO

 

Compartilhando as diversas alterações legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais, pretende-se apresentar novas ideias sobre a fiança e responder às seguintes perguntas:

 

a) A lei pode tornar inafiançável outros crimes além dos já previstos na Constituição Federal?

b) A vedação de fiança tem o mesmo efeito de crime inafiançável?

 

Conclui-se que a lei não pode tornar inafiançáveis outros crimes, salvo se transformá-los em hediondos; e que a vedação da fiança não tem o mesmo significado de crime inafiançável.

 

 

2 CRIMES INAFIANÇÁVEIS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL: inafiançabilidade constitucional ou absoluta:

 

Segundo o artigo 5º, incisos XLII, XLIII e XLIV, da Constituição Federal de 1988, repetidos pelo artigo 323 do Código de Processo Penal, são crimes inafiançáveis, ou seja, não cabe liberdade provisória mediante pagamento de fiança nos delitos de:

 

a) racismo (Lei n. 7.716/1989): a injúria por motivo de raça (art. 140, § 3º, do Código Penal) não equivale a racismo, embora recentemente (18/08/2015) tenha havido um precedente isolado da 6ª Turma do STJ reconhecendo esse crime contra a honra como inafiançável e imprescritível (AREsp 686.965/DF);

b) tortura (Lei n. 9.455/1997);

c) tráfico ilícito de entorpecentes (Lei n. 11.343/2006): mais abaixo segue um histórico sobre a inafiançabilidade em delitos dessa natureza (item 6.6.2.);

d) terrorismo (Lei n. 13.260/2016): essa lei decorre do Projeto de Lei da Câmara 101/2015; antes dela não havia tipicidade penal estrita de terrorismo no Brasil; alguns apontavam o art. 20 da Lei n. 7.170/1983 (Lei de Segurança Nacional); ainda há outro projeto de lei anterior no Congresso buscando a tipificação (Projeto de Lei do Senado 499/2013);

e) crimes hediondos definidos em lei (Lei n. 8.072/1990);

f) ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático: não há tipicidade penal estrita no Brasil; alguns apontam a Lei n. 7.170/1983 (Lei de Segurança Nacional).

 

 

3 CRIMES INAFIANÇÁVEIS NA LEI INFRACONSTITUCIONAL:

 

Nos crimes contra o sistema financeiro nacional punidos com pena de reclusão, previstos na Lei n. 7.492/1986, o réu não poderá prestar fiança, nem apelar antes de ser recolhido à prisão, se estiver configurada situação que autoriza a prisão preventiva, ainda que primário e de bons antecedentes (art. 31). Apesar de anterior à Constituição de 1988, essa vedação não destoa das atuais regras da prisão preventiva e liberdade provisória (art. 324, IV, do CPP).

 

A Lei n. 9.613/1998 tornou os crimes de lavagem de capitais insuscetíveis de fiança e liberdade provisória (art. 3º). Esse dispositivo foi revogado pela Lei n. 12.683/2012 e não foi reproduzido em outro diploma legal.

 

Os parágrafos únicos dos arts. 14 e 15 da Lei n. 10.826/2003 tornaram inafiançáveis o crime de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido (art. 14), salvo quando a arma de fogo estivesse registrada em nome do agente, e o crime de disparo de arma de fogo (art. 15). O art. 21 da mesma lei proibiu também a liberdade provisória aos crimes dos arts. 16, 17 e 18 do Estatuto do Desarmamento (respectivamente, posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito e equivalentes; comércio ilegal de arma de fogo e tráfico internacional de arma de fogo). Essas restrições foram declaradas inconstitucionais pelo Plenário do STF, no julgamento da ADIn 3112, em 02/05/2007, relator Min. Ricardo Lewandowski. Ao afastar a inconstitucionalidade do art. 21, reconheceu-se que “o texto magno não autoriza a prisão ex lege, em face dos princípios da presunção de inocência e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente”.

 

Quanto aos parágrafos únicos dos arts. 14 e 15, a maioria entendeu que o legislador pode definir novos crimes inafiançáveis além daqueles previstos na Constituição, vencido o Min. Cezar Peluso. Porém, também por maioria, decidiram que a vedação de fiança para os respectivos crimes eram desproporcionais e desarrazoados à sua gravidade. Mais à frente este tema será retomado.

 

 

4 INAFIANÇABILIDADE LEGAL (RELATIVA): vedação ou impedimento a fiança:

 

Legal porque prevista em lei infraconstitucional. Relativa porque vinculada a situação ou condições individuais. Não se trata de crime inafiançável, mas de situações em que se veda ou impede a concessão de fiança. A apresentação do rol em dois artigos do CPP (323 e 324) corrobora que há distinção entre suas hipóteses: o art. 323 cuida de crimes inafiançáveis, apenas reproduzindo a Constituição Federal; o art. 324 prescreve situações concretas em que se impede a fiança, sempre relacionadas a um delito praticado, não em abstrato.

 

Não cabe fiança, nos casos do art. 324 do CPP: a) quebra da fiança anterior concedida no mesmo processo (inciso I e art. 341 do CPP); b) descumprimento injustificado das obrigações dos arts. 327 e 328 do CPP (inciso I, parte final); c) prisão civil ou militar (inciso II); d) presença dos motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312) (inciso IV). Esta última situação exige fundamentação suportada em fatos concretos tal qual fosse decretar a prisão preventiva (artigo 93, IX, da Constituição Federal). Não basta a presunção de que o agressor vai ofender a ordem pública, obstar a instrução criminal ou furtar-se à aplicação da lei penal (art. 312), muito menos a indicação isolada de qualquer hipótese do art. 313 do CPP. Enfatize-se que o inciso IV do art. 324 refere-se exclusivamente aos fundamentos da preventiva (art. 312), não às hipóteses de cabimento (art. 313).

 

Vale dizer que a prisão civil do devedor de alimentos e a prisão militar estão previstas na Constituição Federal (art. 5º, LXVII e LXI) e na legislação (art. 733 do CPC e Lei n. 5.478/68; art. 18 do CPPM), e não são medidas cautelares, mas coercitivas, por isso a fiança é incompatível com elas. Houvesse fiança, não haveria coercibilidade e sentido na prisão civil por débito alimentar. Já a prisão militar tem sustentação na necessidade de se manter a hierarquia e disciplina castrense, sendo incoerente com a afiançabilidade. Não há mais prisão civil do depositário infiel (Súmula Vinculante 25 do STF: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito”).

 

Logo após a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) entrar em vigor, propagou-se que não caberia fiança aos crimes dos artigos 129, § 9º (lesão corporal), e 147 (ameaça) do Código Penal no âmbito da violência doméstica contra a mulher, por conta da vedação do então artigo 323, inciso V, do CPP. No entanto, esse inciso proibia a fiança para os crimes envolvidos nessas circunstâncias punidos com reclusão, enquanto que os mencionados delitos (lesão corporal leve e ameaça) prescreviam pena de detenção, permitindo-se, pois, a concessão da fiança. Atualmente, os crimes relacionados à Lei Maria da Penha seguem as regras gerais sobre liberdade provisória e fiança, destacando-se que há uma hipótese específica de prisão preventiva (art. 313, III, do CPP, combinada com art. 20 da Lei n. 11.340/2006) e que não se aplica a Lei dos Juizados Especiais Criminais, o que permite a prisão em flagrante mesmo nas infrações penais cujas penas máximas sejam inferiores a dois anos) e afasta as medidas dos artigos 74, 76, 88 e 89 da Lei n. 9.099/95.

 

Não se olvide que, com exceção da violência doméstica e familiar contra a mulher, há outras situações em que não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança, configurando um favor legal ao réu: Lei dos Juizados Especiais Criminais (art. 69, parágrafo único, da Lei n. 9.099/1995) e Código de Trânsito Brasileiro (art. 301 da Lei n. 9.503/1997). Poder-se-ia chamar de inafiançabilidade (proibição de fiança), mas neste caso é para evitar a oneração do preso em flagrante. No caso do porte de drogas para consumo pessoal (art. 28 da Lei n. 11.343/2006), é vedada a detenção do agente, devendo ser liberado após os procedimentos próprios (art. 48, §§ 3º e 4º, da mesma lei), aplicando-se, mutatis mutandis, a Lei n. 9.099/1995 (art. 48, §§ 1º, 2º e 5º, da Lei de Drogas).

 

 

5 DISPENSA DA FIANÇA POR MISERABILIDADE:

 

Constatada a precária situação econômica do preso, o juiz pode arbitrar a fiança mas dispensar o pagamento, concedendo a liberdade provisória mediante as obrigações dos arts. 327 e 328 do CPP (art. 350 do CPP) e outras medidas cautelares, que entender necessárias e adequadas ao caso (art. 282 do CPP).

 

 

6 BREVE CRONOLOGIA DA LIBERDADE PROVISÓRIA E DA FIANÇA:

 

Vedação da liberdade provisória, inafiançabilidade e imprescritibilidade são temas semelhantes, que limitam o direito à liberdade. Por isso, devem ser estudados conjuntamente e suas peculiaridades podem ser compartilhadas, no que couberem.

 

Saliente-se que o Código de Processo Penal é de 1941, época em que, na prática, a presunção era de periculosidade e o réu permanecia detido durante todo o processo, situações que sofreram mudanças legislativas e constitucionais em favor de garantias individuais.

 

6.1 Lei n. 5.349/1967:

 

Para iniciar, convém lembrar que a redação original do art. 312 do CPP dispunha sobre prisão preventiva compulsória (“Art. 312. A prisão preventiva será decretada nos crimes a que for cominada pena de reclusão por tempo, no máximo, igual ou superior a dez anos.”).

 

Segundo o STF, a pena igual ou superior a dez anos devia ser verificada isoladamente a cada caso (HC 44.672, 2ª Turma, rel. Min. Evandro Lins), desde que houvesse prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria (HC 43.369, 1ª Turma do STF, rel. Min. Evandro Lins). Porém, mesmo quando compulsória, exigia fundamentação (art. 315 do CPP) e devia ser baseada na sua necessidade, conforme RHC 44.565 (STF, 2ª Turma, rel. Min. Adaucto Cardoso (vencido), rel. p/ Acórdão  Min. Adalício Nogueira).

 

A Lei n. 5.349/1967 extinguiu a prisão preventiva obrigatória, mas ao juiz era dado manter preso o denunciado, mediante nova decisão, com arrimo nos então artigos 313 e 315 do Código de Processo Penal (RHC 46.132, 1ª Turma do STF, rel. Min. Djaci Falcão). Era um dos primeiros sinais legislativos – mesmo no regime militar - de que o ordenamento jurídico brasileiro não se adaptava a prisões automáticas, com exceção do flagrante delito. Até nos crimes inafiançáveis, a prisão preventiva era facultativa (art. 313, I, do CPP) e carecia de fundamentação idônea (art. 315).

 

6.2 Lei n. 6.416/1977:

 

O artigo 322 do Código de Processo Penal, com redação anterior à Lei n. 6.416/1977, também dispunha que “Ninguém será levado à prisão ou nesta conservado, se prestar fiança, nos casos em que a lei não a proibir”.

 

Até meados de 1977, não sendo o caso de livrar-se solto sem fiança, o investigado:

 

a) ficava detido até o julgamento por força da prisão em flagrante, se não fosse arbitrada fiança.

b) ficava detido até o julgamento por força da prisão preventiva, decretada nos termos dos artigos 311, 312 e 313 do CPP.

c) era colocado em liberdade se coubesse fiança, a qual seria dispensada em caso de miserabilidade.

 

Ou seja, cabendo fiança, respondia solto se a pagasse. Não cabendo fiança, ficava preso. O sentido da inafiançabilidade era vedar a liberdade a infrações ou circunstâncias consideradas mais graves pela legislação.

 

Esse panorama começou a mudar com a Lei n. 6.416/1977, que acrescentou o parágrafo único ao então art. 310 do CPP, permitindo-se a liberdade provisória vinculada, sem fiança, mesmo para crimes inafiançáveis, se não ocorressem as hipóteses que autorizam a prisão preventiva. Para Guilherme de Souza Nucci, a fiança perdeu sua importância, tornando-se um instituto morto, desprezível e ignorado (Prisão e liberdade: as reformas processuais e penais introduzidas pela Lei 12.403, de 4 de maio de 2011. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. 3.tir. p. 19). Uma das exceções foi acrescentada pela Lei n. 8.035/1990, referente aos crimes contra a economia popular ou de crime de sonegação fiscal (então art. 325, § 2º do CPP).

 

6.3 Lei 12.403/2011:

 

Saindo da cronologia, mas mantendo a coesão do assunto, a Lei n. 12.403/2011 não alterou muito esse quadro, pois os artigos 310 e 321 do CPP continuaram a determinar que, ao receber o auto de prisão em flagrante ou em qualquer fase do processo, se não for o caso de relaxamento da prisão ilegal, o juiz deverá conceder a liberdade provisória, com ou sem fiança, se não estiverem presentes os requisitos da prisão preventiva (artigo 312 do mesmo código). O arbitramento da fiança, nas circunstâncias do inciso II do art. 310, não é obrigatório, mas permitido a depender da adequação, suficiência e graduação das demais medidas cautelares (arts. 282 e 319 do CPP). Anote-se que a fiança assemelha-se a uma condição suspensiva, pois a liberdade provisória fica suspensa até o recolhimento do valor. As demais medidas cautelares aproximam-se mais a encargos do Direito Civil, pois seu descumprimento pode causar a destituição da liberdade provisória.

 

No entanto, para Renato Brasileiro de Lima (Nova prisão cautelar. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 385), a Lei n. 12.403/2011 valorizou a fiança e encerrou a contradição de o indiciado por crime menos grave ser posto em liberdade mediante pagamento de fiança, enquanto que o acusado de crime mais grave era solto sem fiança, quando ausentes os requisitos da prisão preventiva, com intenção de fazer prevalecer da liberdade provisória. Está correto em afirmar que reforçou a liberdade provisória como regra, mas não quanto à preponderância da fiança, pois seu arbitramento não é obrigatório, podendo ser aplicadas somente outras medidas cautelares. Ademais, ainda ocorre a contradição de soltar acusado de crime inafiançável (mais graves) sem fiança, mas exigi-la se presos por delitos menos graves.

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6.4 Constituição de 1988:

 

Voltando à ordem cronológica, em 1988, a Constituição Federal previu a liberdade provisória como regra, com ou sem fiança (art. 5º, inciso LXVI: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”), estabeleceu crimes inafiançáveis (supramencionados) e recepcionou o então parágrafo único do art. 310 do CPP.

 

Mas não proibiu expressamente a liberdade provisória para crimes inafiançáveis, apenas vedou a concessão de fiança. A discussão sobre liberdade provisória no crime de tráfico de drogas será examinada a seguir.

 

Tudo isso era reflexo do princípio da presunção de inocência (não-culpabilidade), disposto no inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”), que, entretanto, foi relativizado pelo STF, em sessão do Pleno em 17 de fevereiro de 2016 (HC 126.292):

 

CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. 1. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado.” (STF, Pleno, HC 126.292, rel. Min. Teori Zavascki, maioria, j. 17/02/2016, DJe 16/05/2016, publ, 17/05/2016).

 

Mudando o entendimento fixado em 2009, no julgamento do HC 84.078, que condicionava a execução da pena ao trânsito em julgado da condenação, ressalvada a possibilidade de prisão preventiva, o STF passa a admitir que a execução provisória de acórdão condenatório proferido em apelação, mesmo antes do trânsito em julgado, não viola a presunção constitucional de inocência do art. 5º, LVII da Constituição Federal.

 

6.5 Lei n. 9.034/1995:

 

Em 1995, o art. 7º da Lei n. 9.034 passou a vedar a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, aos agentes que tivessem intensa e efetiva participação em organização criminosa. Essa lei foi revogada pela Lei n. 12.850/2013, que disciplinou o combate às organizações criminosas, mas não repetiu dispositivos restritivos da liberdade provisória. Certamente, o legislador estava atento às mudanças doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema.

 

6.6 Lei n. 11.343/2006: tráfico de drogas

 

O art. 44 da Lei n. 11.343/2006 tornou inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, os crimes previstos nos arts. 33, caput (tráfico de drogas) e § 1º, e 34 a 37 da mesma lei, e ainda, vedou a conversão de suas penas em restritivas de direitos.

 

O tráfico de drogas merece subcapítulos à parte, pois é praticado com mais frequência e enfrentado pela doutrina e jurisprudência com mais dinamismo. Vários assuntos correlatos ao tráfico de drogas servem de estudo da coerência interpretativa.

 

6.6.1 Tráfico de drogas: liberdade provisória: Lei n. 11.464/2007

 

Em 2007, a Lei n. 11.464 exclui a proibição da liberdade provisória para crimes hediondos (art. 2º, II, da Lei n. 8.072/1990). No caso de tráfico de entorpecentes – equiparado a hediondo -, o STF autorizava a manutenção da prisão, decidindo que a vedação da liberdade provisória decorria diretamente da inafiançabilidade constitucional e legal (art. 44), não se aplicando a excepcionalidade da Lei n. 11.464/2007. Ainda que limitado ao tráfico de entorpecentes, revigorava-se, assim, o entendimento anterior a 1977, de que não cabia liberdade nos crimes inafiançáveis. Como exemplo, o julgamento do HC 97883, Primeira Turma do STF, rel. Min. Cármen Lúcia, em 23/06/2009, DJe 152, de 14/08/2009, cujo trecho da ementa é o seguinte:

 

1. A proibição de liberdade provisória, nos casos de crimes hediondos e equiparados, decorre da própria inafiançabilidade imposta pela Constituição da República à legislação ordinária (Constituição da República, art. 5º, inc. XLIII). (…) Mera alteração textual, sem modificação da norma proibitiva de concessão da liberdade provisória aos crimes hediondos e equiparados, que continua vedada aos presos em flagrante por quaisquer daqueles delitos. 2. A Lei n. 11.464/07 não poderia alcançar o delito de tráfico de drogas, cuja disciplina já constava de lei especial (Lei n. 11.343/06, art. 44, caput), aplicável ao caso vertente. 3. Irrelevância da existência, ou não, de fundamentação cautelar para a prisão em flagrante por crimes hediondos ou equiparados: Precedentes. (...)

 

O tema era tão relevante e perturbador que, em 10/09/2009, foi admitida a repercussão geral no julgamento do RE 601.384, rel. Min. Marco Aurélio, concluso ao relator desde 31/05/2010:

 

PRISÃO PREVENTIVA - FLAGRANTE - TRÁFICO DE DROGAS - FIANÇA VERSUS LIBERDADE PROVISÓRIA, ADMISSÃO DESTA ÚLTIMA - Possui repercussão geral a controvérsia sobre a possibilidade de ser concedida liberdade provisória a preso em flagrante pela prática de tráfico de drogas, considerada a cláusula constitucional vedadora da fiança nos crimes hediondos e equiparados.

 

Mesmo sem definição da repercussão geral do RE 601.384, em 10/05/2012 o Plenário do STF, ao apreciar o HC 104.339, por maioria e “incidenter tantum”, reconheceu a inconstitucionalidade da vedação da liberdade provisória no art. 44 da Lei n. 11.343/2006. Embora reconhecida a inconstitucionalidade incidentalmente, o debate foi tão amplo que o Tribunal deliberou por autorizar os Senhores Ministros a decidirem monocraticamente os habeas corpus quando o único fundamento da impetração fosse a contrariedade o artigo 44 da mencionada lei, vencido o Ministro Marco Aurélio.

 

Habeas corpus. 2. Paciente preso em flagrante por infração ao art. 33, caput, c/c 40, III, da Lei 11.343/2006. 3. Liberdade provisória. Vedação expressa (Lei n. 11.343/2006, art. 44). 4. Constrição cautelar mantida somente com base na proibição legal. 5. Necessidade de análise dos requisitos do art. 312 do CPP. Fundamentação inidônea. 6. Ordem concedida, parcialmente, nos termos da liminar anteriormente deferida.

'Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, declarou, incidenter tantum, a inconstitucionalidade da expressão “e liberdade provisória”, constante do caput do artigo 44 da Lei nº 11.343/2006, vencidos os Senhores Ministros Luiz Fux, Joaquim Barbosa e Marco Aurélio. (…) O Tribunal deliberou autorizar os Senhores Ministros a decidirem monocraticamente os habeas corpus quando o único fundamento da impetração for o artigo 44 da mencionada lei, vencido o Senhor Ministro Marco Aurélio.” (HC 104.339, rel. Gilmar Mendes, j. 10/05/2012, DJE 05/12/2012)

 

Apesar de determinar aplicação obrigatória, o entendimento do HC 104.339 praticamente uniformizou a possibilidade de liberdade provisória ao tráfico de drogas. Sobre o tema, acrescenta Renato Brasileiro de Lima (op. cit., p. 409) que “não é dado ao legislador ordinário legitimidade constitucional para vedar, de forma absoluta, a liberdade provisória”.

 

6.6.2 Tráfico de drogas: afiançabilidade

 

Em recente julgamento da 1ª Turma (HC 129.474, rel. Min. Rosa Weber, j. 22/09/2015), o STF concedeu habeas corpus – contra decisão do STJ que indeferiu a liminar no HC 329.639/PR - acolhendo a tese de miserabilidade do paciente e afastando o pagamento da fiança, a qual foi arbitrada em crime de tráfico de entorpecentes. O Juiz de primeiro grau expressamente havia relativizado a inafiançabilidade, para evitar aplicar apenas outras medidas cautelares “frente à gravidade e consequências do delito”, preferindo a fiança como contracautela.

 

6.6.3 Tráfico de drogas: pena restritiva de direitos

 

No julgamento do HC 97.256 (rel. Min. Ayres Britto), em 01/09/2010, o Pleno do STF declarou incidentalmente a “inconstitucionalidade, com efeito ex nunc, da proibição de substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos”, prevista no art. 33, § 4º, e no art. 44 da Lei n. 11.343/2006. No entanto, o Senado suspendeu a eficácia apenas do trecho referente ao art. 33, § 4º, da lei (Resolução n. 5/20012, de 15/02/2012). Independente de ser incidental e da omissão do Senado, tem-se entendido que não se aplica a vedação do art. 44, devendo o juiz aferir a possibilidade de substituição da pena privativa por restritivas de direitos para o tráfico de drogas, observando-se as regras do art. 44 do Código Penal.

 

6.6.4 Trafico de drogas privilegiado: fiança e hediondez

 

O tráfico de drogas pode ter a pena reduzida se o agente for primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa (art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006). Trata-se de uma causa de diminuição de pena que tem sido chamada de tráfico de drogas privilegiado.

 

Nos termos do art. 5º, XLIII, da Constituição Federal e art. 2º da Lei n. 8.072/1990, qualquer tipo de tráfico de drogas é insuscetível de fiança. No entanto, há uma séria e inconclusa discussão se o tráfico privilegiado está sujeito às limitações impostas aos crimes hediondos e equiparados, como as relativas ao indulto e aos benefícios da execução penal e, talvez, à inafiançabilidade.

 

O STJ adiantou-se e sua Terceira Seção aprovou a Súmula 512 (“A aplicação da causa de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006 não afasta a hediondez do crime de tráfico de drogas”). Mas, tratando-se de privilégio, em que o legislador abstratamente prevê a atenuação da pena, discute-se na doutrina e no STF o afastamento da hediondez e das restrições constitucionais nessa modalidade de tráfico de entorpecentes.

 

No STF, o assunto havia sido afetado ao Pleno, em decisão proferida no HC 110.884/MS, 2ª Turma, rel. Min. Ricardo Lewandowski, em que se discutia a concessão de indulto. Porém, em 04/08/2015, o relator julgou prejudicado o habeas corpus, arquivando-se o feito, pois o paciente já havia sido condenado pela prática de novos delitos, cujas penas estavam previstas para terminar somente em 13/07/2021, além do que o juiz da execução informou que pena estava em cumprimento regular. Saliente-se que o Subprocurador-geral da República Edson Oliveira de Almeida, atuante no feito, já havia manifestado por não considerar hediondo o tráfico privilegiado:

 

5. Nos termos do art. 44 da Lei nº 11.343/2006, os crimes dos arts. 33, caput e §1º, e 34 a 37, dessa mesma lei, são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos. Mas essa proibição, que deve ser interpretada restritivamente, não abrange a conduta definida pelo §4º do art. 33, de menor grau de reprovabilidade, que não deve ser incluída no rol dos crimes equiparados a hediondos. Dessa forma, não se aplicam ao chamado tráfico privilegiado as vedações previstas no art. 44 da Lei nº 11.343/2006.

 

O Supremo Tribunal Federal ainda pode definir o assunto, no julgamento do HC 118.533, também afetado ao Plenário em 24/03/2014, em que discute a concessão de livramento condicional e a progressão de regime nos moldes da Lei n. 7.210/1984 (LEP) (noticiado no Informativo STF n. 791 - 22 a 26 de junho de 2015). A Procuradoria-Geral da República, por seu Subprocurador-geral da República Edson Oliveira de Almeida, reiterou o parecer dado no HC 110.884, manifestando pela não hediondez do tráfico privilegiado.

 

Por enquanto, a relatora, Min. Cármen Lúcia votou pelo afastamento da hediondez, acompanhado do Min. Luis Roberto Barroso. Para ambos, um crime cuja pena pode ser reduzida a menos de dois anos não pode receber o tratamento de um delito hediondo. Lembrou-se, ainda, que os Decretos 6.706/2008 e 7.049/2009 autorizaram a concessão de indulto a condenados por tráfico de entorpecentes privilegiado, a demonstrar inclinação no sentido de que esse delito não seria hediondo. Além da previsão de diminuição da pena, considerou-se que o § 4º do art. 33 não é indicado no art. 44 da Lei n. 11.343/2006, o qual buscou reproduzir as restrições de fiança, sursis, graça, indulto e anistia, típicas dos crimes hediondos. Pode-se entender que o tráfico de drogas privilegiado não deve receber o mesmo rigor dos tipos penais dos artigos 33, caput e § 1º, e 34 a 37 da mesma lei. Ressalte-se que os impedimentos à liberdade provisória e à conversão de suas penas em restritivas de direitos foram declaradas inconstitucionais.

 

Outro argumento que pode ser acrescentado é o consagrado entendimento de que o homicídio qualificado-privilegiado não é crime hediondo (STJ, HC 153.728/SP e HC 43.043/MG.

 

Os Ministros Luiz Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber e Luiz Fux divergiram da relatora. Em 24/06/2015, o ministro Gilmar Mendes pediu vista, tendo devolvido os autos em 04/05/2016, porém sem data da continuação do julgamento. Enquanto não se julga o writ, mantém-se no STF o entendimento pela hediondez do tráfico privilegiado (HC 121255 / SP, 1ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, julg. 03/06/2014, publ. DJe-148 31/07/2014).

 

 

7 IMPRESCRITIBILIDADE: suspensão da prescrição por prazo indefinido (art. 366 do CPP)

 

Após reiterados julgamentos, em 2009 a Terceira Seção do STJ editou a Súmula 415: “O período de suspensão do prazo prescricional é regulado pelo máximo da pena cominada”.

 

O enunciado diz menos que pretendeu. Pelo conteúdo dos acórdãos, o prazo da prescrição deve ser regulado pelo máximo da pena cominada, aplicando-se o critério do art. 109 do Código Penal. Fixou-se entendimento de que, no caso de citação por edital (art. 366 do CPP), a suspensão do curso do prazo prescricional por prazo indeterminado tornaria imprescritível a infração penal apurada, o que seria vedado pelo ordenamento:

 

1. Consoante orientação pacificada nesta Corte, o prazo máximo de suspensão do prazo prescricional, na hipótese do art. 366 do CPP, não pode ultrapassar aquele previsto no art. 109 do Código Penal, considerada a pena máxima cominada ao delito denunciado, sob pena de ter-se como permanente o sobrestamento, tornando imprescritível a infração penal apurada.” (HC 84.982, 5ª Turma, rel. Min. Jorge Mussi, j. 21/02/2008, DJe 10/03/2008).

 

Entretanto, no STF (RE 460.971, 1ª Turma, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 13/02/2007, DJ 30/03/2007) permanece o entendimento de que:

 

a Constituição Federal não proíbe a suspensão da prescrição, por prazo indeterminado, na hipótese do art. 366 do C.Pr.Penal. 2. A indeterminação do prazo da suspensão não constitui, a rigor, hipótese de imprescritibilidade: não impede a retomada do curso da prescrição, apenas a condiciona a um evento futuro e incerto, situação substancialmente diversa da imprescritibilidade. 3. Ademais, a Constituição Federal se limita, no art. 5º, XLII e XLIV, a excluir os crimes que enumera da incidência material das regras da prescrição, sem proibir, em tese, que a legislação ordinária criasse outras hipóteses.”

 

Em 16/06/2011, o assunto também foi submetido ao sistema de repercussão geral, ainda não julgado, cujos autos estão conclusos com o relator Min. Ricardo Lewandowski desde 03/02/2016, com pedido de prioridade da tramitação (RE 600.851 RG).

 

Para Luiz Flávio Gomes e Silvio Maciel, o rol constitucional de crimes imprescritíveis é taxativo (Contagem da prescrição durante a suspensão do processo: súmula 415 do STJ. 4 de março de 2010, acessado em 03/12/2015. http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI103015,101048-Contagem+da+prescricao+durante+a+suspensao+do+processo+sumula+415+do):

 

Por outro lado, é certo que a Constituição estabeleceu, taxativamente, as hipóteses de imprescritibilidade - nos crimes de racismo e na ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático – exatamente para proibir a imprescritibilidade em qualquer outro delito, ressalvada a dos delitos contra a humanidade, nos termos do direito universal emanado da ONU. Trata-se de "silêncio eloqüente" da Constituição brasileira. Não tem sentido afirmar que o legislador ordinário pode tornar imprescritível um delito de desacato ou de furto.

'Na clássica lição de Carlos Maximiliano, normas restritivas de direitos fundamentais devem ser interpretadas restritivamente, para restringir ao mínimo o direito posto. É assim que deve ser interpretado o nuclear artigo 5º da Constituição. Se o dispositivo permitiu a imprescritibilidade apenas em duas hipóteses é porque a proibiu em qualquer outra.

 

Nesse aspecto, talvez seja a hora de repensar também eventual limite para a suspensão do curso do prazo prescricional em outras situações, como as do art. 116 do CP e art. 368 do CPP (rogatória citatória).

 

 

8 INCOERÊNCIAS DA FIANÇA:

 

É oportuno rever algumas inconsistências sobre a fiança e inafiançabilidade, resultantes dessas alterações legislativas e o desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial.

 

Como visto, a inafiançabilidade já foi sinônimo de prisão obrigatória. Aliás, já dito acima, na década de 1940 a presunção era de periculosidade e a regra era o réu ficar detido até a sentença. A fiança era um verdadeiro benefício para se obter a liberdade provisória. Atualmente, em que vige a presunção de não-culpabilidade, é possível a liberdade provisória inclusive para crimes inafiançáveis. A Lei n. 6.416/1977 incluiu parágrafo único ao art. 310 do CPP, permitindo a liberdade provisória sem fiança a qualquer crime, inclusive graves, como os inafiançáveis. Em 2007, a Lei 11.464 exclui a vedação de liberdade provisória para os crimes hediondos, tráfico de drogas, tortura e terrorismo. Consolidou-se a possibilidade de se soltar acusados desses delitos, sem fiança, pois são constitucionalmente inafiançáveis, desde que ausentes os pressupostos da prisão preventiva.

 

Então, em igualdade de condições (ausência de motivos para a preventiva), acusados de infrações graves podem ser soltos sem pagar fiança (por serem crimes inafiançáveis) e, incoerentemente, presos por crimes menos graves podem ser submetidos ao recolhimento da fiança para serem liberados (porque permitida a fiança, ainda que não obrigatória). A fiança, para crimes afiançáveis, assim, torna-se um obstáculo para a liberdade (equivalente a um encargo com feição de condição suspensiva do Direito Civil (art. 136 do Código Civil), enquanto que, nos crimes inafiançáveis, o indivíduo pode ser liberado imediatamente à decisão do juiz, sem qualquer ônus financeiro.

 

Outro ponto inconsistente é o impedimento de fiança do art. 324, IV, do CPP: a presença de motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312). Ressalte-se que essa vedação não configura um crime inafiançável, mas apenas uma situação pessoal e individual que impede a concessão de fiança, conforme distinção apresentada acima (item 4).

 

Essa vedação tem pouca – ou nenhuma – utilidade. Se houver pressupostos do art. 312 do CPP, a prisão preventiva será decretada e nem se examinará a aplicação da fiança. E, se não houver pressupostos, será concedida a liberdade provisória com ou sem fiança, ficando prejudicada a incidência ou não do art. 324, IV, do CPP (já se constatou a inexistência dos pressupostos da cautelar prisional). E se presentes os fundamentos do art. 312, mas não for hipótese do art. 313 do CPP? Será concedida a liberdade sem fiança? Se a resposta for positiva, incidirá na mesma incoerência acima: a situação mais grave (presença de motivos do art. 312) terá soltura sem fiança, enquanto que o quadro mais leve (ausência de fundamentos do art. 312) poderá ter liberdade com fiança. A manutenção do inciso IV do art. 324, portanto, só causa antinomia.

 

9 CONCLUSÃO

 

Não parece ser obra do acaso que as leis e os tribunais superiores estão reconhecendo a inconstitucionalidade da vedação da liberdade provisória (STF: ADIn 3112, relator Min. Ricardo Lewandowski, j. 02/05/2007; HC 104.339, rel. Gilmar Mendes, j. 10/05/2012, Lei n. 11.464/2007) e da imprescritibilidade (Súmula 415 do STJ) atribuída abstratamente a determinados crimes. Pelo estudo jurisprudencial, os tribunais estão alinhando esses entendimentos, para manter uma coesão sistêmica, a fim de efetivar princípios como a presunção de inocência, motivação das decisões e isonomia. Passemos a tentar responder às perguntas inicialmente propostas.

 

a) A lei pode tornar inafiançável outros crimes além dos já previstos na Constituição Federal?

 

Não há dúvida de que a regra derivada da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF) é a liberdade e a prescrição. A própria Constituição Federal prevê as exceções. E exceções que restringem a liberdade não podem ser ampliadas. Um intenso debate ocorreu no julgamento da ADIn 3112, em que se declarou a inconstitucionalidade da inafiançabilidade e vedação de liberdade provisória no Estatuto do Desarmamento. Assim votou o Ministro Cezar Peluso, vencido:

 

Depois, parece-me que a Constituição estabeleceu os casos que considerou insusceptíveis de fiança, de graça e a de anistia, mediante juízo de valor a respeito da gravidade dos delitos que prevê. E, quando, a meu ver, com o devido respeito, se remete à lei para definição dos crimes hediondo, apenas abre uma exceção. Noutras palavras, a interpretação do inciso XLIII implica dizer que, além dos casos que a própria Constituição estabelece, como os do inciso anterior e dos subsequentes, por exemplo, a lei só pode prever inafiançabilidade e insusceptibilidade de graça e anistia àqueles crimes considerados por ela, lei, como hediondos. A alternativa estava posta para o legislador.

 

O Ministro Sepúlveda Pertence, acompanhado do Ministro Marco Aurélio, contra-argumentou que o inciso XLIII somente antecipou-se ao legislador, tendo o Ministro Peluso respondido: “Como exceção. Por isso mesmo é de interpretação restritiva.

 

Em sequência, o Ministro Pertence alegou que “No seu âmbito, proibiu a fiança a própria Constituição. Mas, a meu ver, não tornou obrigatoriamente afiançáveis os demais delitos. Quer dizer, não revogou o artigo 323 do Código de Processo Penal, que diz que o delito apenado com pena mínima superior a dois anos não admite fiança.

 

Para finalizar, o Ministro Peluso enfatizou que a exceção à liberdade é norma restritiva: “Se é exceção, a interpretação é restritiva, não apenas porque é exceção, mas porque é exceção gravosa à liberdade individual.

 

Resumindo: o STF entendeu possível a lei estabelecer novos crimes inafiançáveis, mas declarou inconstitucional a inafiançabilidade de alguns crimes por serem desproporcionais e desarrazoado. E entendeu que a Constituição não autoriza a vedação abstrata de liberdade provisória.

 

Como visto anteriormente, o STF decidiu que a lei não pode vedar a liberdade provisória abstratamente a determinado crime (HC 97883 e ADIn 3112). O STJ reconheceu que o legislador não pode criar situações que causem imprescritibilidade (Súmula 415).

 

Admitindo-se que vedação de liberdade provisória e imprescritibilidade são fenômenos semelhantes, que se referem à exceção ao direito de liberdade e à presunção de inocência, tais precedentes jurisprudenciais podem ser estendidos à inafiançabilidade. O voto do Min. Cezar Peluso na ADIn 3112, ainda que isolado e vencido, revela excelente conteúdo jurídico-constitucional em matéria de liberdade individual. Os três assuntos – liberdade, prescrição e fiança – são regras do Direito Constitucional Penal e somente a própria Constituição Federal pode excepcioná-la. Não há mera antecipação ao legislador. Há verdadeiro rol taxativo de crimes inafiançáveis e imprescritíveis. Saliente-se que a lei pode prever situações individualizadas – não crimes – em que se restringe a liberdade provisória (por exemplo, a prisão preventiva), mas não se admite a vedação genérica a determinada infração penal.

 

Tanto que a inafiançabilidade destinada a crimes específicos foram afastados da legislação, por motivos diversos (pela lei ou pelo STF), e não foram reproduzidos posteriormente: art. 3º da Lei n. 9.613/98, arts. 14 e 15, parágrafos únicos, da Lei n. 10.826/2003 e art. 323 na redação anterior à Lei n. 12.403/2011.

 

Comentando sobre a vedação peremptória de liberdade provisória, Renato Brasileiro de Lima (op. cit., p. 409) fortalece essa tormentosa discussão, com convincentes argumentos, em resumo:

 

Em outras palavras, ao se restringir a liberdade provisória em relação a determinado delito, estar-se-ia estabelecendo hipóteses de prisão cautelar obrigatória, em clara e evidente afronta ao princípio de não culpabilidade. De mais a mais, ao se vedar de maneira absoluta a concessão de liberdade provisória, tais dispositivos legais estariam privando o magistrado da análise da necessidade da manutenção da prisão cautelar do agente, impondo verdadeira prisão 'ex lege'. Criar-se-ia, então, um juízo prévio e abstrato de periculosidade, feito pelo Legislador, retirando do Poder Judiciário o poder de tutela cautelar do processo e da jurisdição penal, que só pode ser realizado pelo magistrado a partir dos dados concretos de cada situação fática”.

 

Complementa que “ao se admitir que a lei vede peremptoriamente a liberdade provisória (…) restaurar-se-á, de maneira transversa a famigerada prisão preventiva obrigatória, revogada do Código de Processo Penal com a edição da Lei nº 5.349/67” (op. cit., p. 410; item 6.1 supra). Não se olvide que a vedação de liberdade provisória e a inafiançabilidade dialogam-se entre si, pois ambas limitam a presunção de inocência. E nada justifica a lei criar um novo delito inafiançável sem intenção de manter o indivíduo detido (ainda que tenha perdido essa qualificação), mas apenas para autorizar a prisão em flagrante de alguns sujeitos específicos (como Parlamentares, Magistrados, membros do Ministério Público e Advogados).

 

O legislador ordinário pode, contudo, definir novos crimes hediondos e, consequentemente, surgirá novo crime inafiançável, conforme autorizado pela Constituição Federal. Nesse caso, o novo delito hediondo será alcançado por um conjunto de restrições além da inafiançabilidade (insuscetíveis de anistia, graça e indulto; regime inicial fechado, progressão de regime e livramento condicional com prazos diferenciados, prisão temporária de 30 dias).

 

Nem se alegue que anistia, graça e indulto permitem modulação quanto aos crimes abrangidos. Esses institutos são, por natureza, seletivos, autorizando os entes competentes a delimitar os requisitos para sua concessão, com certa discricionariedade, limitados à vedação prevista no inciso XLIII do art. 5º da Carta da República (ADIn 2.795-MC, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 8/05/2003). Diferente do instituto da fiança, que, em regra, alcança todos os crimes e pessoas.

 

Também não pode ser sustentada, como parâmetro, a ampliação do rol de crimes sujeitos ao Tribunal do Júri, admitida pela doutrina, pois esse procedimento – ao contrário da inafiançabilidade e imprescritibilidade - é tido como benéfico ao réu, tendo em vista a dilação probatória e plenitude da defesa (art. 5º, XXXVIII, da CF).

 

Desse modo, é possível concluir que o legislador ordinário não pode impor a inafiançabilidade a um crime, cuja matéria é reservada à Constituição Federal. Mas poderá acrescentar um novo delito ao rol da Lei n. 8.072/1990, atribuindo-lhe, além da inafiançabilidade, um conjunto de limitações próprias dos crimes hediondos.

 

b) A vedação de fiança tem o mesmo efeito de crime inafiançável?

 

Pouco explorada na doutrina, é preciso estar atento à distinção entre crime inafiançável e situação concreta em que se veda a fiança.

 

Crimes (fatos típicos, antijurídicos e culpáveis) inafiançáveis são aqueles previstos nos incisos XLII, XLIII e XLIV do art. 5º da Constituição Federal, meramente repetidos nos artigos 323 do CPP.

 

Situações concretas são fatos relacionados a determinados indivíduos que impedem o arbitramento de fiança. Evidente que essas situações devem estar atrelados a um crime, inafiançável ou não. Mas, como visto acima, não pode a lei estipular um novo crime por si inafiançável.

 

Parece que o legislador observou essa diferença em 2011. A Lei 12.403/2011 acabou com vedação de fiança a crimes e situações em abstrato (antigo art. 323 do CPP: crimes com pena mínima de reclusão acima de dois anos, contravenções penais de vadiagem e mendicância, violência ou grave ameaça à pessoa), mantendo apenas as hipóteses constitucionais (atual art. 323 do CPP) e as situações pessoais do caso concreto (art. 324, ver acima). Importante dizer que também não se veda mais a fiança por clamor público e vadiagem.

 

Sobre o clamor público, Renato Brasileiro de Lima (op. cit., p. 396) reforça a desarmonia na inafiançabilidade por situações abstratas pré-definidas:

 

Essa vedação em abstrato à concessão da fiança já era alvo de críticas pela doutrina mesmo antes do advento da Lei nº 12.403/11. Isso porque não se pode segregar cautelarmente a liberdade de locomoção de alguém tão somente em virtude da gravidade do delito, repercussão da infração ou clamor social provocado pelo crime.

 

Assim entendido, sempre que a legislação (Constituição e leis) referir-se a crime inafiançável, deve se considerar exclusivamente aqueles previstos nos incisos XLII, XLIII e XLIV do art. 5º da Constituição Federal, observando-se que o legislador ordinário pode fixar novos crimes hediondos, tornando-se automaticamente inafiançáveis. Porém, os simples impedimentos ou vedações previstos na lei infraconstitucional são apenas circunstâncias individuais que não caracterizam crimes inafiançáveis.

 

Portanto, Membros do Congresso Nacional e Assembleias Legislativas após a expedição do diploma (arts. 53, § 2º, e 27, § 1º, da CF), Magistrados (art. 33, II, da LOMAN – Lei Complementar n. 35/1979), membros do Ministério Público (art. 40, III, da LONMP – Lei n. 8.625/1993) e Advogados no exercício da profissão (art. 7º, § 3º, do Estatuto da Advocacia - Lei n. 8.906/1994) somente podem ser presos em flagrante por delitos classificados como inafiançáveis pela Constituição Federal, mas não por vedações pessoais à fiança previstas exclusivamente na lei infraconstitucional.

 

Nesse contexto, em regra os parlamentares não podem ter prisão preventiva decretada, ao contrário das demais pessoas retroindicadas. Em sentido oposto, porém, em 22/08/2006, a 1ª Turma do STF manteve a prisão preventiva de deputado estadual do Estado de Rondônia, antes decretada pelo STJ (HC 89.417, rel. Min. Cármen Lúcia), e, mais recentemente, em 25/11/2015, a 2ª Turma do STF referendou a prisão cautelar de um senador Delcídio do Amaral, decretada na véspera pelo relator Min. Teori Zavascki, que entendeu estarem presentes situação de flagrância e os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal (Ação cautelar 4039). Nos dois casos, afastou-se a interpretação literal do § 2º do art. 53 da CF, haja vista a gravidade e excepcionalidade da situação, a fim de buscar efetiva e eficaz aplicação do sistema constitucional como um todo. Como não poderia deixar de ser, foi uma decisão emblemática e muito debatida na comunidade jurídica.

 

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Sobre o autor
Augusto Yuzo Jouti

Juiz de Direito - TJBA

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Elaborado em 05/12/2015. Atualizado em 28/05/2016.

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