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O crédito tributário e sua extinção pela transação de interesses .

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04/01/2016 às 13:08
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3) A TRANSAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA E O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Montesquieu, em “O Espírito das Leis”, brilhantemente lapidou que “a liberdade é o direito de fazer aquilo que as leis permitem” [36]. Com esse primado em mãos, e após a averiguação da compatibilidade entre a transação do direito privado e a indisponibilidade do direito público, estabelecemos o objetivo desse item, qual seja a investigação sobre como o princípio da legalidade afeta e restringe a adoção da prática transacional nos ditames tributários.

O princípio da legalidade é fundamental à manutenção do Estado de Direito, tendo surgido a partir das atividades relacionadas à tributação. No passado, constituiu defesa dos súditos contra a voracidade arrecadatória dos impérios. Dessa forma, a exigência de se cobrar impostos apenas com supedâneo em lei atravessou os tempos, e, nos dias atuais, insurge como regra a limitar as ações governamentais e a proteger os aspectos mais intrínsecos à cidadania. “A par do princípio da igualdade, o da legalidade assume papel de absoluto destaque em sociedades organizadas, influindo em todos os ramos do direito positivo” [37].

O inciso I, do artigo 150, da Constituição Federal, estabelece a “legalidade estrita”, onde se determina que “é vedado à União, aos Estado, ao Distrito Federal e aos Municípios, exigir ou aumentar tributos sem lei que o estabeleça”. É este verdadeiro “princípio de reserva absoluta da lei”, impondo-se que a norma oriunda de qualquer uma das pessoas políticas dotadas do poder de tributar deve trazer os elementos para a identificação do fato imponível, “o que veda o emprego da analogia, pelo Poder Judiciário e da discricionariedade, pela Administração Pública, na solução de conflitos” [38]. Com isso, se exige que os atos e procedimentos tributários, adotados e seguidos pelo Fisco e pelo Judiciário, devem ser previstos, regulados e consentidos pela lei. “Em razão desse princípio da indisponibilidade o Supremo Tribunal Federal já assentou que o poder de transigir ou de renunciar não se configura se a lei não o prevê (RDA, 128:178) [...]” [39].

A Fazenda Pública deve velar pela arrecadação do Estado. Aplica, diante de um caso concreto, o que resta legalmente prescrito. Ruy Barbosa Nogueira nos ensina que “assim como vige o princípio nullum tributum sine lege scripta para proteção do crédito tributário, na extinção continua vigendo o correspondente princípio de que não há extinção sem previsão legal” [40]. Nesse paradigma, para ganhar o mundo real, a transação tributária deverá ter base legal específica, com plena delimitação da materialidade e do procedimento a ser empregado, afora a discriminação da abrangência de suas implicações, apresentando uma ritualização compatível com os processos tributários vigentes, quer administrativo ou judicial, apenas se admitindo sua aplicação nos casos em que esteja realmente uma discórdia instalada, afastando-se a versão preventiva.

No Recurso Especial 85.984-5-RJ, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, ainda no longínquo ano de 1977, o Relator do processo, Ministro Cordeiro Guerra, assim entendeu:

“Acresce a isso, que o perdão da dívida é de setembro de 1974, f.114, e a ação fiscal de 1972, e, assim, para que pudesse por termo ao litígio seria necessário celebrar transação de litígio e, consequentemente, em extinção do crédito tributário, como dispõe o art. 171 do CTN. Não tendo havido transação, a remissão da dívida, simplesmente administrativa, ainda que válida, não importou em transação capaz de pôr fim ao litígio. Nada impede, porém, que face ao acórdão, a autoridade administrativa competente autorize a transação que ponha fim à execução – art. 171 do CTN, e art. 1025 do Código Civil” [41].

De fato, não se modifica o instituto da transação na natureza, na sua definição, mas sim nas exigências extraordinárias feitas para que sua aplicação, na arena tributária, logre êxito. Afinal, essa é uma solicitação do próprio texto do artigo 171, que, literalmente, para permiti-la, ordena: “a lei pode facultar” (caput) e “a lei indicará a autoridade competente” (parágrafo único).

Os artigos 141 e 142 do Código Tributário Nacional sublinham a exigência de observância aos ditames da lei:

“Art. 141. O crédito tributário regularmente constituído somente se modifica ou extingue, ou tem sua exigibilidade suspensa ou excluída, nos casos previstos nesta Lei, fora dos quais não podem ser dispensadas, sob pena de responsabilidade funcional na forma da lei, a sua efetivação ou as respectivas garantias. Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível. Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional” [42].

Em suma, como o tributo acha-se preso à legalidade estrita, diante da indisponibilidade dos bens públicos, não se vislumbrando margem discricionária que permissione ao Fisco a discussão de valores, inadmissível será, portanto, falar-se em transação, uma vez que ao Estado não é facultado escolher forma de tutela diferente da determinada em lei.

É o que parte da doutrina alega, desaprovando a prática transacional, deixando-a a deriva no grande mar tributário, e “condenando o instituto a um triste exílio” [43]. “Com efeito, o instituto há de corresponder a alguma finalidade pública, em direção à realização de algum valor consagrado pelas normas do sistema, sob pena de ser considerado inócuo, sequer havendo de se cogitar do mais acerca dele” [44].

Não obstante, o princípio da legalidade, limitador da transação no âmbito tributário, falece em outra vertente, e por uma simples constatação: a edição de uma lei, que venha a permitir essa prática nas matérias tributárias, resolveria tudo, pois a indisponibilidade dos bens da Fazenda Pública não necessariamente importa em total exclusão da viabilidade jurídica de negociar sobre eles, desde que haja autorização legal para a Administração assim proceder.

Na conceituação de Aurélio Pitanga Seixas Filho, “a vinculação legal da função fiscal não impede, entretanto, que o legislador deixe à autoridade fiscal, em algumas fases do procedimento administrativo fiscal, a liberdade de escolher, entre algumas alternativas legítimas, qual a ação que deve ser adotada no momento oportuno e conveniente” [45]. Até porque, “o princípio da legalidade no Direito Processual Civil adquire tamanha relevância que tem motivado a alteração de pensamentos sobre a natureza jurídica do direito processual, que não vem sendo entendido como instrumento técnico, porém, fundamentalmente, ético [...]” [46].

“Ora, a transação não é instituto que não tenha sido enxertado no Código décadas depois de sua elaboração; é sim disposição originária do CTN, que veio à luz juntamente com todos os outros dispositivos que nele se inserem, e com um propósito específico. Se o legislador originário o admitiu é porque pretendeu excepcionar o princípio da indisponibilidade. Parece ser um pouco forte pretender simplesmente ignorá-lo, como um filho espúrio, com base em dispositivos que se positivaram juntamente com ele, e que ostentam a mesma hierarquia” [47].

Sobrepujado mais esse obstáculo, cogente se faz perquirir sobre os motivos determinantes da inserção da transação no projeto inicial do Código Tributário Nacional, além do modo como devem ser interpretados os dispositivos tributários abrangidos, de maneira que a configuração ideal seja alcançada.


4) AS RAZÕES DA PRESENÇA DA TRANSAÇÃO NO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL

Na aplicação da lei à realidade, o operador do direito pode, diante da dificuldade interpretativa, buscar os fins sociais e os valores que lastrearam a edificação da norma em questão. O ato de interpretar jamais deve abrir mão do estudo do momento histórico que ocasionou a mudança legislativa. É de Miguel de Cervantes a belíssima frase a pontuar que “a história é a mãe da verdade, êmula do tempo, depositária das ações, testemunha do passado, exemplo e anúncio do presente, advertência para o futuro” [48]. Vejamos o que há para se falar.

Ives Gandra da Silva Martins, em parecer de sua autoria, relatou o seguinte:

“Quando os pais do direito tributário – juristas de escol, todos eles – elaboraram, a partir do anteprojeto de Rubens Gomes de Sousa e das discussões no Instituto Brasileiro de Direito Financeiro – hoje ABDF – a minuta do projeto levado ao Congresso Nacional, relatado por Aliomar Baleeiro, entenderam que, para dar agilidade à cobrança dos créditos tributários nas hipóteses de inadimplemento do devedor por falta de liquidez ou outro motivo relevante, a transação seria caminho. Tal instituto facilitaria, de um lado, o rápido recebimento dos pretendidos créditos e, de outro lado, a não inviabilização da atividade do pagador de tributos, que não teria suas atividades ou profissão atingidas por uma imediata despatrimonialização ou interferência no seu dia-a-dia funcional” [49].

Houve a preocupação governamental, em idos de 1960, em rever os métodos e os meios de cobrança do passivo fiscal federal, de maneira que as “reformas de base”, impulsionadas pelos militares, tiveram origem na alteração da estrutura arrecadatória do Estado. Prevalecia o entendimento de que o Fisco Federal não funcionava conforme as necessidades do país. “O próprio Ministro da Fazenda na época estimava que seria possível, apenas com a melhoria da administração fazendária, sem qualquer mudança nos tributos, arrecadar adicionalmente, no mínimo, valor equivalente a 2/3 da receita estimada para 1963” [50]. Precisava-se inflar as receitas disponíveis para a União, e a maneira encontrada foi a edição de um Código Tributário que modernizasse a estrutura de todo o sistema, tornando-o expressão maior dessa vontade.

Tendo ensejado a edição do Código Tributário Nacional, a supramencionada reforma encontrou no jurista Rubens Gomes de Souza seu maior expoente. A fundamentação que ele utilizou para implantar a transação no direito tributário brasileiro adveio na justificativa de que a prática já era autorizada, há mais de uma década, em sede de execução fiscal federal, consoante o artigo 23, da Lei nº 1.341/1951. “Sobre esta lei, disse o professor [Rubens Gomes de Souza]: ‘é uma medida necessária quando se verifique que a Fazenda poderá perder parcialmente o processo, a fim de evitar a demora, pagamento de custas etc.’” [51].

“Art. 23. Salvo quando autorizados pelo Procurador Geral, os órgãos do Ministério Público da União não podem transigir, comprometer-se, confessar, desistir ou fazer composições. Parágrafo único. Sempre que julgarem conveniente, deverão representar confidencialmente ao Procurador Geral para que êste [sic], opinando a respeito, obtenha do poder competente a necessária autorização para transigir, confessar, desistir ou fazer composições” [52].

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Porém, não se tem como negar que houve, inicialmente, certa resistência à adoção da transação em matize tributário. As mudanças, facilitadas pelo período de exceção democrática, eram grandes, contudo não admitiam tamanha liberalidade com o direito público. As coisas tinham um limite. Posição que o próprio autor do Anteprojeto do Código Tributário Nacional manteve enfaticamente, até que, em 1967, quando veio a integrar a comissão responsável pela relatoria do “Modelo de Código Tributário para América Latina”, proposto pela OEA, Organização dos Estados Americanos, e pelo BID, Banco Interamericano de Desenvolvimento, mudou o entendimento e assinalou esse instituto como uma das formas ideais de extinção do crédito tributário.

Anna Carla Duarte Chrispim pontua: “Neste sentido, vale reconhecer que o argumento de que a noção de transação em si é antitética ao conceito de tributo foi derrubado pelo Rubens Gomes” [53]. Negociar para arrecadar mais e melhor pareceu, naquele momento histórico, ser uma proposta interessante. Daí que a inserção da possibilidade da prática transacional não se deu por acaso, mas visou, sim, o desenvolvimento posterior de um meio alternativo ao judicial, predisposto ao Estado, na execução dos créditos fiscais.

Portanto, a presença do inciso III, do artigo 156, e do caput artigo 171, na Lei n. 5.072/1966, a instituir o Código Tributário pátrio, atendeu a esses imperativos de fomento à arrecadação da Fazenda Nacional, na medida em que se fez crer que:

“[...] o instituto da transação traz inequívocos benefícios à administração pública, sobre não inviabilizar o pagador de tributos, sendo o principal deles a imediatez na recuperação de recursos, o que, de outra forma, seria de difícil obtenção, em razão do exercício do direito de defesa pelo contribuinte, na esfera administrativa e judicial” [54].

Com a moldura estabelecida, sob os auspícios de expressões como “a lei pode facultar”, o legislador, propositalmente, inseriu a transação no rol dos métodos extintivos do crédito tributário. O artigo 171 fez a ponte entre a vontade da lei e a realidade, ao deixar para que uma lei específica, a versar sobre o tema, e exauriente quanto a tudo que lhe dissesse respeito, viesse a permitir a plena aplicação das “concessões mútuas” ao cotidiano da Administração Fazendária. Segundo esse raciocínio, o que vetaria a transação na área fiscal seria, exclusivamente, a ausência de legislação autorizativa competente a discipliná-la. E, sem que tenhamos percebido, avançamos mais ainda.

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Sobre o autor
Thiago Nóbrega Tavares

Advogado, Especialista em Direito Tributário, Mestre em Ciências Jurídicas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TAVARES, Thiago Nóbrega. O crédito tributário e sua extinção pela transação de interesses .. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4569, 4 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45578. Acesso em: 25 abr. 2024.

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