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O crédito tributário e sua extinção pela transação de interesses .

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04/01/2016 às 13:08
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5) REGULAMENTAÇÃO DA PRÁTICA TRANSACIONAL EM DIREITO TRIBUTÁRIO: LEI COMPLEMENTAR GERAL E LEI ORDINÁRIA ESPECÍFICA

Permitindo-se abrir mais uma janela argumentativa, paira uma dúvida sempre que se menciona qualquer proposta de transação tributária, dado o reconhecimento da precisão de uma norma a autorizar o procedimento extintivo do crédito fiscal, indagando-se: a competência seria de lei complementar ou ordinária?

Cassone[55] é quem nos socorre, interpretando o problema a partir do que sucedeu com o Código Tributário Nacional, que editado na década de 1960, como lei ordinária, fora recepcionado pela Constituição de 1988, como se lei complementar o fosse, ocorrência que, no entendimento desse autor, permitiria a convivência de leis ordinárias, de cada uma das pessoas de direito público interno, com um regramento maior e genérico, a abranger todo o território nacional. Essas legislações infraconstitucionais, e independentes entre si, não poderiam ultrapassar os ditames de uma lei complementar geral a operar em nível federal. Com isso, a transação, prevista no Código Tributário Nacional, há 47 anos, estaria devidamente regulamentada e apta a ser aplicada e gerar efeitos. E essa lei complementar não destinaria competências materiais, verificado que essa é uma atribuição exclusivamente constitucional, motivo pelo qual não seria o Código Tributário Nacional o maior empecilho à transação tributária, mas sim a Carta Magna.

O artigo 146, inciso III, alínea “b”, da Constituição Federal, é expresso ao determinar que “cabe à lei complementar [...] estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária sobre [...] obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência [...]”. O que leva ao raciocínio de que seria preciso um dispositivo que trouxesse as diretrizes gerais, os princípios basilares, aptos a conferir máxima eficácia, algo que venha a adequar e normatizar a transação ao sistema tributário constitucional vigente, permissionando aos entes federados legislar e manejar o instrumento jurídico inovador predisposto, dentro de suas respectivas atribuições, com objetivos previamente traçados, a atenuar a discricionariedade, em face de situações peculiares de cada caso em concreto, o que evitaria questionamentos judiciais futuros sobre a transação realizada. “Assim, entre as interpretações possíveis, parece-me ser essa a que melhor se coaduna com a natureza jurídico-tributária que a Carta da República outorgou à norma geral tributária” [56].

Para correta compreensão do que tratamos acima, Heleno Taveira Tôrres, em brilhante artigo, recorda que a função de um código tributário é a “sistematização de todo o esquema dos procedimentos de tributação, a coordenação dos distintos tributos e a regulação dos direitos dos contribuintes”. As “normas gerais”, nesse campo, ao abranger determinados assuntos e conceitos, para além do que um código desse tipo contempla, visa atender à judicialização de certos temas e às escolhas políticas realizadas em dado momento evolutivo. O legislador, então, ao julgar como válida a construção de um novo estatuto, fica preso a esse arranjo legal, onde o “produtor” de regras inovadoras deve obediência não somente à Constituição Federal, mas também às normas gerais dessa área. Fala ele sobre a expansão concêntrica da legislação, a propiciar segurança para os partícipes da relação jurídica tributária, garantindo à Fazenda Pública “certeza, celeridade e eficiência na percepção dos créditos tributários, e aos particulares, os meios necessários para que estes possam fazer valer os seus direitos”. Abreviando, uma “norma geral” exerce a atribuição de “baliza da natureza do código”, agindo rumo à compreensão da sua ação em relação às demais leis e atos tributários[57].

E não é tarefa impossível se alcançar os raciocínios de Cassone e de Tôrres. Para tanto, temos que visualizar que, se pode a Administração conceder o “mais”, em casos envolvendo remissão, que é o “perdão do valor devido pelo contribuinte, de forma total ou parcial, sendo uma das formas de extinção do crédito tributário, já constituído por meio de lançamento” [58], porque seria vedado ao legislador, com a edição de uma lei, conceder o “menos”, o qual seria a autorização ao Fisco para negociar e abrir mão de relativa parcela do direito estatal ao crédito de que é titular, com a vantagem de receber, de imediato, o montante que restasse. O problema, nesse caso, não seria outro senão de sopesar se vale ou não a pena efetivar isso.

Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho[59], em respeitável posicionamento, externa atitude contrária à ideia. Adverte ele que se trata de hipótese absolutamente excepcional em direito público, pois não existe autonomia de vontade da parte de nenhum ente da federação para extinguir obrigação tributária sem supedâneo em lei que autorize especificamente a prática da transação. A discussão em torno da precisão ou não de lei complementar geral, para esse autor, é coisa menor, haja vista que é inadmissível que qualquer autoridade administrativa possa se utilizar de critérios gerais, abertos e, portanto, essencialmente discricionários, para acertar o término de um litígio executório fiscal, extinguindo, dispensando ou diminuindo crédito, conforme alto grau de liberdade que um texto legal por demais genérico, e, por que não dizer, irresponsável, pode vir a conferir, mesmo que em favor do Estado.

Ainda consoante ele, caso fosse possível que a Fazenda Pública tivesse poderes maciçamente gerais para transacionar, princípios administrativos importantes ao contencioso tributário, restariam irremediavelmente abalados e diminuídos. Subsistiriam notórios prejuízos à legalidade e à indisponibilidade dos bens públicos, sem falar na contrariedade a outros, como a impessoalidade, isonomia de tratamento, moralidade etc.. Por conta disso, a opinião de Cassone sobre uma lei complementar federal, e a delegação legislativa para que estados, distrito federal e municípios, disciplinassem as condutas de suas procuradorias com essa finalidade, seria arriscado, uma vez que poderia conduzir o Fisco a uma atuação com excesso de discricionarismo e consequentes perdas econômicas.

Respeitamos cada uma das opiniões acima colacionadas, quais sejam as de Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho, adverso ao conceito de uma lei geral, e de Vittorio Cassone, favorável, mas é a posição assumida por Hugo de Brito Machado[60] que “reluz na noite escura”. É esta, a nosso ver, a ideia mais acertada, à medida que chama o feito à ordem, pois, com a inteligência que lhe é peculiar, esse autor consegue encerrar a discórdia. Nas suas palavras, o caráter plenamente vinculado do agir da Administração tributária somente seria contrariado se a eventual lei ordinária atribuísse ao agente público, ou às autoridades que representam a Fazenda em juízo, competência para fazer transações. “Mas, neste caso, o defeito será da lei ordinária, e não do art. 171 do Código Tributário Nacional” [61].

Compreende Machado[62] que à uma lei complementar federal genérica não pode ser atribuída a responsabilidade pela transação tributária mal efetivada pelos demais entes federados. É em obediência a essa reflexão, que as leis ordinárias de estados, distrito federal e municípios não podem fugir aos preceitos da norma transacional geral, devendo estabelecer, em minúcia de detalhes, tudo o que possa regular a prática, no campo de seus poderes e competências, afastando o fantasma da livre autonomia funcional do Fisco e das Advocacias públicas, respeitando a legalidade no agir dos servidores estatais e a indisponibilidade do crédito tributário, de maneira que, se alguma discricionariedade restar, seja mais fácil o controle do ato que haverá de ser praticado, sempre no interesse da sociedade, diminuindo a litigiosidade, aumentando a arrecadação, pacificando as situações conflituosas, com economia de tempo e de recursos.


6) CONSIDERAÇÕES FINAIS

É preciso compreender que a transação, para vingar em matéria tributária, há de ter um regime geral em nível federal, criador das diretrizes básicas acerca do que pode ou não ser realizado, efetivando o instituto, em primeiro lugar, para a União. Posteriormente é que, por via transversa, estados, municípios e distrito federal poderiam edificar suas próprias legislações ordinárias, presas às restrições e garantias da lei complementar maior e prevalecente sobre todas as demais, disciplinando apenas o que lhes dissesse respeito, constitucionalmente falando. Só depois disso tudo é que as respectivas autoridades fazendárias poderiam atuar. Nesse estratagema legal, a discricionariedade restaria, conforme se decrescesse nos patamares legislativos, devidamente tolhida, por leis cada vez mais específicas, reduzindo a possibilidade de desvios na finalidade maior da prática transacional, edificando o procedimento na segurança jurídica e no direito adquirido, e propiciando sensível ganho arrecadatório.


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Sobre o autor
Thiago Nóbrega Tavares

Advogado, Especialista em Direito Tributário, Mestre em Ciências Jurídicas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TAVARES, Thiago Nóbrega. O crédito tributário e sua extinção pela transação de interesses .. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4569, 4 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45578. Acesso em: 26 abr. 2024.

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