1.Introdução
O presente trabalho objetiva a apresentação da “Magistratura de Influência” ─ meio alternativo aplicado mundialmente na prevenção e solução dos conflitos administrativos ─ e sua concretização como o meio extrajudicial mais adequado para a resolução dos conflitos administrativos brasileiros e concretização do acesso à justiça social no nosso Estado Democrático de Direito.
Conforme esse desiderato, destaca-se a importância geral da aplicação dos “meios alternativos de resolução dos conflitos” na ampliação do acesso à justiça; contextualiza-se o Estado Democrático Brasileiro sobre o aspecto dessa justiça social e da aplicação dos meios alternativos; evidencia-se o principal problema da aplicação da conciliação, mediação e arbitragem no Brasil e demonstram-se as peculiaridades dos conflitos administrativos brasileiros, que ensejam a busca por um meio alternativo mais completo e adequado.
Por fim, apresenta-se a Magistratura de influência – principalmente o seu modelo francês – estabelecendo suas características e diferenciais que a fazem superar as possíveis críticas e tornar-se o meio alternativo mais completo para resolver os conflitos administrativos brasileiros.
2. A importância dos meios alternativos de resolução dos conflitos na ampliação do acesso à justiça.
A expressão “acesso à justiça” é classicamente compreendida de forma limitada. A doutrina tradicional-liberal dos séculos XVIII e XIX restringe seu sentido a uma garantia formal de acesso ao Poder Judiciário, é dizer, à mera possibilidade de propositura de uma ação judicial. Esse conceito clássico, nesse sentido, confunde “acesso à justiça” com “acesso ao Judiciário”, como se o Poder Judiciário fosse o único meio hábil de garantir a paz e a justiça social.[1]
A partir do século XX, todavia, com a consolidação do Welfare State, surgiram os movimentos de ampliação do acesso à justiça, reclamando-se, a partir de então, a atuação positiva do Estado para assegurar materialmente o acesso aos direitos individuais e sociais proclamados a todos os indivíduos. Tem-se, assim, a formação de um contexto para se garantir a igualdade material e uma noção de “acesso à justiça” vinculado à efetividade dos direitos dos cidadãos.[2]
Além disso, diversas barreiras de acesso ao Poder Judiciário começam a ser evidenciadas, como a longa duração dos processos; o valor elevado das custas processuais, a desconfiança de parte da população com relação aos operadores do direito e a falta de informações, sobretudo, dos mais humildes que, em regra, não conhecem os seus direitos e nem o que fazer para protegê-los frente às possíveis violações. Tudo isso onera o cidadão e dificulta seu acesso ao Judiciário.[3]
A remoção dessas barreiras e também a nova demanda pela efetividade dos direitos sociais reclamam a revisão desse conceito clássico de acesso à justiça.
Gradativamente, esse conceito clássico começou a mudar de sentido. Deixou de ser considerado como um mero direito dos cidadãos à porta de entrada dos tribunais, para ser também o direito a uma porta de saída, ou seja, o Estado juiz deve garantir um devido processo legal, um julgamento equitativo em tempo razoável e eficaz. O acesso efetivo à justiça tornou-se, antes de mais nada, o direito fundamental a uma “decisão judicial razoavelmente justa, em tempo razoável e eficaz”[4].
A mudança semântica da expressão, todavia, não parou por aí. Era preciso que o acesso à justiça “mudasse de cor”, que não mais se confundisse a “justiça” - um dos conceitos mais complexos da filosofia política[5] - com simples papéis acinzentados chamados juridicamente de “petição inicial” ou de “sentença” (análise meramente literal/formal da justiça). A justiça vai muito mais além do que as paredes dos fóruns e tribunais. Faz-se mister, assim, o estudo dos meios alternativos de resolução de litígios como instrumentos de ampliação do acesso à justiça, pois como afirma CAPPELLETTI e GARTH “as cortes não são a única forma de solução de conflitos a ser considerada”.[6] .
Constrói-se, destarte, um “novo enfoque de acesso à justiça”[7] (muito mais amplo e realista), onde o Estado e a Sociedade, em parceria, comprometem-se a resolver os conflitos por meio de diversos mecanismos de resolução e não exclusivamente pela via dos tribunais. O acesso à justiça passa a ser entendido como um conjunto de meios colocados à disposição da sociedade para a solução de litígios, que devem ser escolhidos por critérios de adequação, reservando-se a jurisdição à condição de última ratio desse sistema.[8]
Ademais, os meios alternativos de solução de conflitos (chamados pela sigla MARC[9]) permitem a construção de uma justiça social distributiva, inclusiva, participativa e realista. Por isso, com relação ao Estado brasileiro, a aplicação dos MARC é de vital importância para garantia de uma vida digna a todos os cidadãos e para a efetivação da democracia material, justificando, assim, nosso título constitucional de “Estado Democrático de Direito”. Título, este, que passaremos a contextualizar sobre o aspecto dessa justiça social e dos MARC.
3.A contextualização do nosso “Estado Democrático de Direito”
O Brasil possui diversas mazelas sociais, que potencializam uma imensa formação de conflitos sociais entre seus cidadãos e corroboram com a crise do Poder Judiciário. Diante desses problemas e na medida em que o Estado brasileiro veda, em regra, a autotutela (realização unilateral do direito por mão própria) e é intitulado constitucionalmente como “Democrático e de Direito”, ele deve disponibilizar meios alternativos eficazes de resolução dos conflitos sociais e promoção da justiça social.
Desenvolvendo esse raciocínio, percebe-se que, a nossa “Constituição Cidadã” de 1988 nos dá um título que, infelizmente, ainda não é merecido por completo: o de “Estado Democrático de Direito”[10]. Basta perceber que um país com tanta desigualdade socioeconômica[11] e baixa efetividade dos direitos sociais constitucionais[12] como o nosso não pode sequer ser qualificado como substancialmente democrático. A democracia, pois, não envolve apenas o plano político (democracia formal), mas também o plano econômico e social (democracia material), é dizer, uma democracia em que o foco seja a efetivação dos direitos sociais, redução das desigualdades e a garantia de uma vida digna a todos os cidadãos. Isso significa que quem não vive com dignidade, quem não tem a mesma oportunidade que os privilegiados de sempre, na prática não participa do processo democrático, apesar de iludido pelo simples direito de votar. A atuação do Estado, assim, deve ser política, econômica e social. Os direitos sociais não são cartas de intenções, eles estão na Constituição para serem concretizados.[13]
Ademais, os nossos hiatos sociais potencializam a formação e manutenção de diversos conflitos sociais, pois, em regra, quanto mais economicamente desigual, quanto menos educada e informada uma sociedade, maior a existência de conflitos entre seus componentes[14]. Isso enseja maior sobrecarga de processos para o Poder Judiciário brasileiro ― considerando que ele é o meio estatal tradicional de resolução dos conflitos sociais e que o Estado brasileiro pouco investe em meios alternativos em comparação com outros países do mundo[15] ― e favorece a crise do sistema judicial.
Essa crise é representada por um relativo paradoxo: enquanto as demandas processuais só fazem aumentar a cada ano no Brasil[16], existem diversos obstáculos de acesso ao Judiciário Brasileiro, a saber: a) educacionais, pois o Brasil possui uma massa de 13,2 milhões de analfabetos[17] e um cidadão sem educação, em regra, não conhece seus direitos e nem o quê fazer para protegê-los frente às possíveis violações. b) socioeconômicos, já que essa falta de informação está estritamente ligada à condição socioeconômica das pessoas. Quanto maior o nível de pobreza, há uma tendência a um menor nível de informação, a exemplo dos 16 milhões de brasileiros em nível de pobreza extrema, excluídos da sociedade, pobres economica e “juridicamente”[18].c)culturais, representado pela desconfiança de parte da população brasileira com relação à honestidade dos advogados, juízes e promotores; e ainda pelas formalidades desnecessárias que intimidam os cidadãos mais humildes, a exemplo do uso de vestes talares pelos magistrados; d) econômicos- custas processuais, despesa com advogado, perito, assistente técnico, depósito recursal etc. Tudo isso onera o cidadão e dificulta seu acesso; e) a longa duração dos processos- a morosidade processual no julgamento das causas é uma constante do Judiciário brasileiro que torna inefetivos os direitos fundamentais dos cidadãos e retira a credibilidade do Judiciário perante toda a sociedade.[19]
O paradoxo, nesse diapasão, é relativo, primeiro porque existe pouca aplicação dos MARC no Brasil, deixando a jurisdição como o principal (e muitas vezes o único) meio para a solução do litígio; e segundo por conta da seletividade dos tribunais que obstaculizam a justiça para alguns e privilegia a outros na medida em que enquanto expressivos setores da população acham-se marginalizados dos serviços judiciais, utilizando-se, cada vez mais, da justiça paralela, governada pela lei do mais forte; outros usufruem em excesso da justiça oficial[20], gozando das vantagens de uma máquina lenta, atravancada e burocratizada.[21] Todos esses obstáculos geram um enorme descrédito da população no judiciário brasileiro[22].
Nesse sentido, embora não possamos tornar o Poder Judiciário Brasileiro o “bode expiatório” ou a “bucha de canhão” de todos os nossos problemas sociais ― já que o Estado Brasileiro como um todo é responsável por esse caos social[23] ― a crise do sistema judicial é evidente, o que reclama pela aplicação concreta dos MARC na sociedade brasileira. E isso não significa exclusão do Judiciário ou afastabilidade da jurisdição, mas sim a existência de “filtros” que permitam tornar o Judiciário a ultima ratio, reservando-o às matérias mais complexas ou que exijam o seu crivo, desafogando-o e tornando-o mais eficiente. O meio é “alternativo” no sentido de ser complementar ao Judiciário, pois deve ser fixado um prazo razoável para a solução do litígio pelo MARC e ficar garantido o controle jurisdicional para medidas urgentes.[24]
Os MARC, nesse diapasão, representam grandes vantagens a um Estado Democrático de Direito, a saber: a informalidade, o menor custo, a consideração dos interesses e dos sentimentos das partes, a procura de uma solução consensual, a redução dos processos e, consequentemente, dos custos públicos e da morosidade judicial, a facilitação do acesso à justiça promovendo a inclusão social, igualdade material e aproximação do sistema de justiça dos que não tinham oportunidade social de ingressar no Judiciário. Não é a toa que eles são um fenômeno mundial[25], embora ainda sejam criticados por parte da doutrina.[26]
Ademais, os MARC favorecem a uma democracia material, na medida em que facilitam o acesso e a efetivação de uma justiça social distributiva, inclusiva, participativa e realista, é dizer, 1) uma justiça mais equitativa[27] que promova a igualdade de oportunidade para todos e uma distribuição dos benefícios que deverá ser feita em prol dos menos privilegiados[28]; 2) uma justiça mais participativa que estimule um espaço público de deliberação, em que os cidadãos poderão decidir qual o melhor rumo para suas vidas e que princípios e normas regerão a sociedade em que vivem.[29] 3) uma justiça mais próxima do cidadão e mais realista, que leve em conta a posição real dos brasileiros, seus padrões de comportamento e circunstâncias socioeconômicas concretas em que vivem.[30]
4. O problema da aplicação dos MARC no Brasil, as peculiaridades dos conflitos administrativos brasileiros e a necessidade de um meio alternativo mais completo.
As principais espécies de MARC utilizadas pelo Brasil são: a Conciliação, Mediação e Arbitragem. A conciliação brasileira consiste num MARC em que um terceiro, alheio ao conflito e imparcial (conciliador), direciona as partes a um consenso propondo uma solução ao conflito em que haja concessões e satisfações de ambas. Na nossa mediação, por sua vez, um terceiro imparcial (mediador) é, em regra, um mero facilitador, pois apenas auxilia as partes a chegarem, elas próprias, a um acordo entre si, através de um processo estruturado[31]. Por fim, na arbitragem brasileira as partes escolhem livremente, por meio do compromisso arbitral, um terceiro que decidirá o conflito (árbitro); sua decisão tem natureza jurisdicional e faz coisa julgada, exclui-se, assim, apenas o juiz como autoridade capaz de dizer o direito.[32]
A aplicação desses MARC no Brasil, todavia, possui um grande problema: eles visam à solução individual e imediata do conflito, sem serem capazes de provocar a reestruturação de políticas públicas com o intuito de inibir/dificultar a geração de novos conflitos. Isso significa que eles não resolvem a origem conflitos, e, por serem procedimentos mais leves, ágeis e eficazes (que o processo judicial, em regra) no deslinde dos litígios, em muito pouco tempo, atrairiam uma massa de litígios, inclusive de uma demanda represada (não disponível ao judiciário), comparável ou até superior àquela que abarrota o sistema Judiciário atualmente. Isso os inviabilizaria e não corresponderia ao escopo maior de toda essa discussão que é ampliação do acesso à justiça com a manutenção e concretização da paz e da justiça social.[33]
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Com relação a uma ampla concepção de acesso à justiça, portanto, de pouco adiantaria termos a aplicação mais concreta da conciliação, mediação e arbitragem no Brasil, se esses meios não forem aperfeiçoados de modo a resolverem a fonte dos conflitos. Ilustra essa situação o seguinte exemplo: um conciliador que frequentemente concilie conflitos semelhantes de cidadãos contra o mesmo Hospital Público, sendo que todos esses conflitos são originados de um mesmo problema do hospital (falta de fornecimento de remédios do SUS, por exemplo). Nesse sentido, caso esse problema-matriz não seja resolvido, vários outros conflitos surgirão e de nada adiantará para a paz social, o conciliador resolver os conflitos individualmente, pois a fonte geradora dos conflitos não foi resolvida.
Não estamos, assim, sendo contraditórios, pois não negamos que os meios alternativos, em geral, sejam fundamentais para a ampliação do acesso à justiça (como afirmamos durante todo o artigo), mas esclarecemos aqui, que o meio alternativo deve ser aquele mais adequado para a resolução do conflito e efetivação da pacificação social. Por isso, faz-se mister a busca por um meio alternativo mais completo que permita também uma atuação mais ampla, capaz de detectar a fonte dos conflitos sociais e inibir/dificultar a geração de novos conflitos.
Ademais, os conflitos administrativos brasileiros (aqueles possuem o Estado como uma das partes) possuem peculiaridades que potencializam ainda mais a necessidade de um novo meio alternativo de resolução dos conflitos. A Administração Pública é, sem dúvida, a litigante mais frequente do Brasil.[34] Nesse contexto, conflitos administrativos são os que mais sobrecarregam o Poder Judiciário Brasileiro e nos afastam de uma efetivação do acesso à justiça social tão desejada. Por essa razão, o presente trabalho é direcionado a buscar um meio alternativo mais adequado para a resolução desses conflitos em específico.
A utilização dos meios alternativos nos conflitos envolvendo o Estado deriva do paradigma do consensualismo administrativo.[35] Todavia, malgrado essa tendência consensual de um Estado Democrático de Direito, a utilização dos MARC nos conflitos administrativos encontra uma série de obstáculos naturais, a saber: a) uma parte desses meios (como a conciliação e a mediação) pertencem tipicamente ao direito privado e apenas recentemente foram incorporados ao Direito administrativo o que exige uma grande adaptação com relação às peculiaridades do sistema jurídico-administrativo; b) a vontade administrativa não é da mesma natureza que a vontade humana, ela é externa e institucionalizada, enquanto que a vontade dos cidadãos é interna e pessoal. Assim, a construção do consenso que depende, nesses casos, de uma conciliação das vontades de natureza diversas, vai enfrentar dificuldades anormais, não encontradas no direito privado[36]. c) a desigualdade existente no conflito entre o Estado e os cidadãos diante de uma evidente disparidade de armas. O Estado é a parte mais forte da relação, ante todo o aparato e poderes de que dispõe fora e antes do processo.[37] d) diversos direitos envolvendo o sistema jurídico-administrativo, por serem de interesse público, são indisponíveis, não se admitindo as transações comuns aos meios alternativos.
Diante desses obstáculos aos meios consensuais, prega-se, assim, o paradigma da persuasão/indução, é dizer, a utilização de um consenso induzido por uma autoridade administrativa (independente e que persegue o interesse público). Experiências internacionais comprovam que o consenso induzido é o meio mais adaptado às peculiaridades do contencioso administrativo.[38] A Magistratura de influência encaixa-se exatamente nesse paradigma da persuasão e é nesse sentido que estamos convencidos de que seria o meio alternativo mais adequado para solução dos conflitos administrativos brasileiros e para a ampliação do acesso a uma justiça social que nos concretize como Estado democrático de Direito.[39]
5. Por uma alternativa às alternativas: a Magistratura de influência.
A magistratura de influência, em seu modelo francês, é um meio alternativo que surgiu na década de 70 diante de uma insatisfação da população francesa quanto ao funcionamento da jurisdição administrativa.
Esse meio alternativo é conceituado como aquele desempenhado por uma Autoridade Administrativa Independente (“Defensor de direitos”) que possui uma credibilidade (“autoridade moral”) dentro sociedade que lhe permite, além de influenciar na resolução dos conflitos individuais, detectar a origem dos conflitos e propor recomendações (“poder de recomendação”) de reformas para solucioná-los, melhorar o funcionamento da Administração Pública e impedir o surgimento de novos conflitos sociais.
O grande diferencial da Magistratura de Influência é o poder de recomendação, é dizer, a formulação de propostas gerais e impessoais visando reformas que evitarão novos conflitos e buscarão eliminar o problema em sua origem. Consiste em um poder político, ou seja, desempenha duas missões políticas básicas: a de intervenção nos conflitos e a de provocação de reformas; e um poder não-coercitivo, é dizer, não apresenta qualquer força executória e, por isso, não se confunde com o poder de decisão do juiz e nem almeja qualquer semelhança. A magistratura de influência é a capacidade de convencer sem constranger[40].
O exercício desse poder é feito por instituições públicas autônomas e independentes (na França chamadas de Autoridades Administrativas Independentes – AAI) que possuem uma autoridade moral (credibilidade) dentro da sociedade que lhes permitem intervir no litígio, não como um conciliador para simplesmente propor uma solução, mas sim para influenciar/persuadir na resolução de um conflito. Na prática, essas recomendações, embora desprovidas da força jurídica da coisa julgada, guardam um valor infra regulamentar que decorre da credibilidade política de seus agentes e da publicidade negativa dos relatórios elaborados, que denunciam as praticas de má-administração.[41] As recomendações efetuadas, assim, denunciam o problema e detalham o mais minuciosamente possível a solução, ou soluções que se mostram mais viáveis para o caso. Busca-se uma melhoria da atividade administrativa, o que ultrapassa em muito os limites de um conflito entre o Cidadão e o Estado, para realizar reformas de abrangência coletiva.[42]
Em resumo, o procedimento da magistratura de influência francesa é o seguinte: 1) diante de um conflito administrativo, a pessoa física ou jurídica parte do conflito pede a intervenção do Défenseur des Droits (Defensor de direitos), típica Autoridade Administrativa Independente, que também pode agir de ofício; 2) ele ouvirá as partes em audiência (poder de audiência) e sugerirá a solução que repute mais adequada ou incentivará o acordo 3) ele tem os poderes de obter informações e documentos dos entes públicos; de investigar in loco a fonte geradora dos conflitos (poder de investigação) e, uma vez detectada essa fonte, fará recomendações para reformas administrativas que visem facilitar a aplicação normativa ao público e melhorar o funcionamento da máquina pública (poder de recomendação) 4) Caso a recomendação feita pelo Defensor não seja cumprida, a única sanção prevista é a publicação de um relatório especial para o Presidente da República e para o Parlamento, publicado no Jornal Oficial (fato que diante da autoridade moral do defensor significa a publicação do problema daquela instituição pública para toda a sociedade, uma publicidade negativa, pois.). Toda essa intervenção do Defensor será gratuita. [43]
Assim, o Defensor de Direitos que frequentemente mediou conflitos semelhantes de cidadãos contra o mesmo Hospital Público (mesmo exemplo que utilizamos para criticar a conciliação brasileira), pode investigar in loco e, descobrir o problema gerador desses conflitos (não fornecimento de remédios do SUS). Ele irá, então, notificar o ente público e influenciá-lo a adotar recomendações para resolução desse problema-matriz. Isso significa que a magistratura de influência não visa apenas a solução individual e imediata do conflito (como ocorre com a conciliação, mediação e arbitragem), mas também visa provocar a reestruturação de políticas públicas com o intuito de inibir/dificultar a geração de novos conflitos e melhorar o funcionamento da Administração Pública. Ela é uma excelente ferramenta no diagnóstico dos problemas da administração pública, que ensejam revisão de procedimentos.
Vimos até então, a magistratura de influência na França. Surge, assim, a indagação: ela pode ser aplicada no Brasil? A resposta é simples, a magistratura de influência não só é aplicável ao Brasil, como ela já é aplicada (de forma adaptada), sem que, entretanto, intitulemos com essa expressão. Servem de exemplo (embora não sejam os únicos) o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e o Ouvidor Geral da União.
O acusado de violar direitos coletivos assina o TAC, pois é convencido/influenciado por uma instituição independente (Ministério Público, v.g) dos benefícios da assinatura desse termo em relação a uma ação judicial. Por isso o TAC não é uma transação (pois os direitos são indisponíveis) e nem um ato jurídico bilateral (pois as condições do TAC são impostas pelo órgão estatal legitimado) como afirma parte da doutrina nacional, mas, é uma magistratura de influência. Também exerce esse meio alternativo, o Ouvidor-Geral da União que atua de forma muito semelhante ao Defensor de direitos, tendo o papel de ser um mediador de conflitos, iniciador de reformas e desencadeador de acusações.
Com base nesses exemplos brasileiros de magistratura de influência, percebe-se que é plenamente possível a aplicação desse meio alternativo no nosso país. Nesse contexto, destaca-se a atividade pioneira no Brasil de aplicação direta da Magistratura de Influência (utilizando essa nomenclatura, inclusive) em um ente público. Trata-se de um termo de cooperação celebrado entre o grupo de pesquisa da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (FDUFBA), “Fundamentos para uma nova teoria de Direito Administrativo”[44] e a Procuradoria Geral do Estado da Bahia (PGE-BA) objetivando a construção de um sistema preventivo à judicialização do conflitos administrativos baseada na Magistratura de Influência, que possibilitará a redução da litigiosidade do Estado da Bahia. O projeto está em processo de implantação.[45]
A magistratura de influência é um fenômeno mundial, sendo aplicada, de modo eficaz, em diversos países do globo para solucionar os conflitos sociais.[46]. Temos, assim, a comprovação mundial de que ele é o meio mais adequado para os conflitos administrativos, resta apenas a vontade política para sua ampliação e efetivação no Brasil.
6.Críticas possíveis à Magistratura de Influência
Malgrado suas vantagens, por óbvio, a magistratura de influência é passível de críticas, a saber: 1) A possível parcialidade axiológica, é dizer, que a mediação do conflito entre o Estado e o particular, por exemplo, será feita pelo próprio Estado, pois o Defensor de Direitos pertence à Administração Pública. 2) O poder de recomendação não tem cunho coercitivo, fato que pode levar aos órgãos e entes públicos envolvidos no conflito não seguirem a recomendação do mediador e a fonte nascente dos conflitos não seria solucionada. 3) A desconfiança por parte dos cidadãos (que em geral, não guardam boa imagem da administração) poderia gerar uma redução do acesso popular a esse meio alternativo, sobretudo no Brasil em que grande parte das entidades públicas possuem casos de corrupção, nepotismo e ineficiência na prestação do serviço público.
Essas críticas, todavia, extrapolam a própria magistratura de influência, pois se num país nenhuma instituição tem a “autoridade moral” necessária para induzir (recomendar) a solução de um conflito, sem despertar a desconfiança popular da parcialidade do mediador, o problema é muito mais social, político e institucional do que com o MARC apresentado.
É evidente que a magistratura de influencia não é a “salvadora da pátria” que extinguirá todos os nossos conflitos administrativos e substituirá a falta de reformas políticas e sociais no nosso país. Todavia, ela pode ser, se bem aplicada, um meio fundamental de acesso à Justiça Social e de concretização de um Estado Democrático de Direito.
7. Considerações finais
Diante de tudo que foi exposto sobre a Magistratura de Influência torna-se evidente que ela é: 1) O meio alternativo mais adequado para a resolução dos conflitos administrativos brasileiros, pois diferentemente das nossas conciliações, mediações e arbitragens, ele visa à identificação e resolução do problema gerador dos conflitos; 2) Consolida verdadeiramente uma ampliação do acesso a uma justiça social distributiva, inclusiva, participativa e realista, na medida em que desafoga o Judiciário Brasileiro do seu principal litígio (conflitos administrativos), incluindo e aproximando do sistema de justiça os que não tinham oportunidade social de ingressar no Judiciário; 3) Corrobora para a concretização de nosso Estado Democrático de Direito, pois simboliza a efetivação de uma democracia material e dos direitos sociais, redução das desigualdades e garantia de uma vida digna a todos os cidadãos.
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