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Água, direito humano fundamental e sua proteção penal no ordenamento jurídico brasileiro:

das ordenações medievais do reino às normas de controle dos crimes ambientais

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10/01/2016 às 10:23
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6.Lei de Política Nacional do Meio Ambiente - Lei 6.938/1981

O advento da Lei 6.938/1981 representou um marco para a implantação de uma Política Ambiental brasileira, pois consagrou o princípio da responsabilidade civil objetiva pelo dano ao meio ambiente e, o que é mais importante, criou o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) como registra Guilherme José Purvin de Figueiredo. Para este autor, foi nesse contexto histórico que surgiu o movimento ambientalista no Brasil, fundamental para a posterior positivação do ambiente como valor insculpido na Constituição de 1988.[57]

A grande importância da Lei 6.938/1981, para o surgimento e consolidação do Direito Ambiental brasileiro obriga a fazer o devido registro histórico da norma contida no seu art. 15, com a função incriminadora de condutas poluidoras das águas de outros elementos do ambiente.[58]

A doutrina saudou com ênfase a aprovação desse tipo penal, promulgado para preencher as lacunas existentes na legislação então em vigor no que se refere às várias formas de poluição, pretendendo-se que fosse mais eficiente para a defesa do meio ambiente do que as poucas normas que podiam ser aplicadas a essas situações.[59]

No entanto, a referida norma punitiva de ações poluidoras de recursos hídricos, encontra-se revogada pelo artigo 54, caput, da Lei 9.605/98. Esta é a posição praticamente unânime da doutrina consultada: Ivette Senise Ferreira[60], Luiz Regis Prado[61], Luís Paulo Sirvinskas[62], Carlos Ernani Constantino,[63] Vladimir e Gilberto Passos de Freitas,[64] Nelson Bugalho[65] entre outros.

No próximo tópico examina-se a proteção penal da água na lei de crimes ambientais.


7. Lei dos Crimes Ambientais - Lei 9.605/98

7.1 Introdução - Enfim, a Proteção Penal do Ambiente em Norma Unificada

A entrada em vigor da Lei 9.605/98 - mesmo com suas inevitáveis deficiências – de uma forma geral, representou um avanço significativo no processo históricojurídico brasileiro relativo ao controle penal ambiental. O texto legal sistematizou um importante ramo do Direito Penal e Ambiental e estabeleceu um modelo jurídico-organizacional que, seguramente, aperfeiçoou o subsistema de controle penal das condutas típicas contra o ambiente.

Com esta lei penal, buscou-se a reunificação - num só diploma normativo - dos crimes ambientais e respectivas sanções destinadas à prevenção e à repressão penal dos responsáveis por danos e atentados ao ambiente. Assim, pode-se dizer que a LCA foi promulgada para cumprir a árdua e relevante função de proteção penal do ambiente, este há muito reconhecido como bem jurídico de valor inestimável.

Na doutrina, conforme acabamos de examinar, ainda permanece alguma divergência doutrinária sobre a revogação de outras normas incriminadoras de condutas que atingem a água pela Lei 9.605/98.  De qualquer modo, mesmo que algum tipo penal ambiental tenha ficado à sua margem, parece indiscutível a importância da função reunificadora e uniformizadora desta Lei. A partir de sua vigência, pode-se dizer que o sistema jurídico brasileiro passou a contar com um verdadeiro codex especial dos crimes ambientais, para enfrentar o gravíssimo e urgente problema da degradação ambiental, que é também o problema da própria sobrevivência da Humanidade.

7.2 A Poluição como um Grave Problema Ambiental

Como veremos adiante, a Lei 9.605/98 não criou um tipo penal específico para punir o poluidor dos recursos hídricos, mas sim todo aquele - pessoa física ou jurídica - que causar qualquer forma de poluição, um dos mais graves problemas que a humanidade enfrenta, neste começo de século XXI. É um dos grandes desafios que deve ser enfrentado para a continuidade da vida no planeta. A poluição vem sendo cometida de diversas formas em descompromisso com o princípio constitucional do ambiente ecologicamente equilibrado.

Numa sociedade de consumo, infelizmente, empresas e indivíduos contribuem para intensificar o já perigoso processo de degradação ambiental, poluindo as águas, o solo e o ar que respiramos. La polución causa daños a la salud pública que van desde la agravación de enfermedades hasta la muerte.[66]

A industrialização, o sistema de produção de bens e serviços, a tecnologia e outros elementos integrantes da sociedade atual têm tornado a poluição uma constante na vida de todos. Como resultado do avanço tecnológico e da mudança dos padrões culturais relacionados ao consumo, a poluição adquiriu caráter multifatorial, ou seja, há um crescente número de fatores que ocasionam a degradação ambiental, atuando de forma cumulativa e muitas vezes sinergética.[67]

Quanto às águas especificamente, estudo feito entre 2004 e 2008 mostra que 70% de rios, lagos e lagoas no Brasil estavam poluídos.[68] Em 2011, o Brasil ainda não possuía informações em relação à quantidade e ao grau de contaminação de suas águas subterrâneas. Presume-se que grandes indústrias e a falta de saneamento básico pode ter contaminado muita água de profundidade de até 1000 metros no Brasil.[69] Apenas 37,5% do esgoto gerado no Brasil é tratado, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. A coleta é realizada para 48,1% da população.[70]

7.3 A Leis dos Crimes Ambientais e a Incriminação Genérica das Condutas Poluidoras do Ambiente

É preciso ressaltar que a Lei 9.605/98, infelizmente, não criou um tipo penal próprio para prevenir e reprimir as condutas poluidoras dos recursos hídricos. Limitou-se a estabelecer um crime genérico de poluição, previsto no art. 54, com a seguinte descrição legal: "Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora". Esta é a forma típica básica ou fundamental, descrita no caput do artigo e que descreve a modalidade típica mais simples e geral, cuja pena é de reclusão de um a quatro anos e multa. No § 1º, está escrita a modalidade dolosa e, no § 2º, estão prescritas as formas qualificadas desta infração penal contra o ambiente.[71]

A lei não se limita à incriminação básica e destina o parágrafo 2º para indicar uma série de situações especiais, que qualificam o crime e, em consequência, aumentam-lhe a pena.[72]

Não é somente a conduta ativa que fica sob a sanção da lei penal. O tipo penal conhece, também, a forma omissiva, prescrita para punir a pessoa física ou jurídica que se furtar ao dever jurídico de evitar qualquer forma de poluição, quando dela tomar conhecimento e estiver em condições de evitar o dano ambiental. Para cumprir essa função de proteção ao ambiente, o parágrafo terceiro do art. 54 em estudo, comina a mesma pena elencada no parágrafo 2º para “quem deixar de adotar, quando assim o exigir a autoridade competente, medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível”.

Trata-se de um super-tipo incriminador, que procura identificar todos os possíveis casos de poluição, a fim de estender o braço repressivo da norma penal aos infratores que causam a degradação dos mananciais de águas e das condições atmosféricas e atentam contra o ambiente ecologicamente equilibrado e a própria vida humana sobre a Terra. Na verdade, a dicção legal descreve a matéria de proibição de forma extremamente minuciosa e detalhista, abrangendo um extenso rol de comportamentos e das consequências nocivas que podem causar para a saúde humana, para a vida dos animais e da flora em geral e, ainda, para a integridade dos recursos hídricos.

A doutrina tem lembrado que o delito em exame tem função, primordialmente, preventiva, que “não pressupõe sequer a ocorrência do resultado poluição”. Nesse sentido, Nicolao Dino de Castro Costa Neto e Ney de Barros Bello Filho lembram que “O sentido de qualquer disciplina ambiental é de evitar a ocorrência do dano, pois neste ramo do Direito não se satisfazem as partes e a Justiça com reparações posteriores. O Direito Ambiental é, por natureza, essencialmente preventivo”.[73]

Não se pode esquecer que o Direito Penal Ambiental, para cumprir sua função de estender a proteção ao bem jurídico ambiental, não pode se afastar dos princípios básicos do Direito Ambiental e um destes é o princípio da precaução que “se resume na busca do afastamento, no tempo e no espaço, do perigo; na busca também da proteção contra o próprio risco e na análise do potencial danoso oriundo do conjunto de atividades”.[74]

A conduta incriminada no caput do artigo 54 da LCA consiste em “causar poluição”, que quer dizer “motivar, originar ou produzir” e, isto se aplica a qualquer forma poluidora.[75] Para Luiz Regis Prado, a expressão de qualquer natureza revela um objeto indeterminado e “abrange sejam quais forem as espécies e a forma de poluição independentemente de seus elementos constitutivos (atmosférica, hídrica, sonora, térmica, por resíduos sólidos etc.)”. Este autor afirma, ainda, que não é qualquer volume de poluição que sujeita o autor à sanção da lei penal. Esclarece, por isso, que é preciso “um certo quantum – suficiente -, elevado o bastante para resultar ou poder resultar em lesão à saúde humana”.[76]

“Por destruição significativa da flora deve ser entendida aquela realizada de maneira expressiva, de gravidade considerável. Tratam-se de corretivos típicos, excluindo-se do âmbito do injusto típico as condutas escassamente lesivas ou de pouca relevância para o bem jurídico tutelado (caráter fragmentário e subsidiário da intervenção penal)”.[77] 

Estudo por nós realizado, demonstrou que o crime de poluição hídrica foi o mais comum entre os casos julgados pelos tribunais, envolvendo a pessoa jurídica com o lançamento de dejetos em córregos, ribeirões e rios. Em seguida predominaram os crimes contra a flora que, de um modo ou de outro, acabam por atingir também a água, como é o caso do desmatamento que seca as nascentes, gera o assoreamento de rios, afeta o ciclo de chuvas e causa outros tantos danos ambientais. Embora a poluição hídrica apareça como o crime mais recorrente entre a jurisprudência pesquisada, não se pode deixar de registrar aqui que ainda são poucos os casos que chegam à justiça e aos tribunais, demonstrando que a proteção penal da água e do ambiente ainda é falha e seletiva, não se dando à água a devida relevância de direito fundamental que cada vez mais ostenta.[78]

Finalmente e, diante dessa constatação, reiteramos que a Lei dos Crimes Ambientais representou um avanço como proposta legislativa de controle penal unificado e sistematizado dos atentados potencialmente ofensivos ao ambiente ecologicamente equilibrado. Porém, no tocante à prevenção e repressão penal das condutas poluidoras da água potável e dos recursos hídricos em geral, é lamentável que a referida lei tenha criado apenas um tipo penal genérico para punir o agente causador "de poluição de qualquer natureza". A nosso ver, a criação de um tipo penal próprio para o controle das ações poluidoras dos recursos hídricos, com a descrição das formas diferenciadas de realização da conduta, para o fim de se estabelecer sanções também diferenciadas segundo a gravidade do resultado, poderia contribuir de forma mais adequada e efetiva para a proteção penal desse bem jurídico de inestimável valor para a vida humana e a preservação do ambiente ecologicamente equilibrado. 


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A água - recurso natural renovável, mas limitado – é um bem essencial à preservação do ambiente ecologicamente equilibrado e à existência da própria vida humana. Por seu inestimável valor, necessita da devida proteção por meio de um eficiente sistema de normas jurídicas.

O reconhecimento do ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental da pessoa humana, não poderia excluir o direito à água, que é um dos seus elementos naturais, assim como o ar, a fauna, o solo e a flora.

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A primeira iniciativa em nível mundial, para o reconhecimento do direito à água como direito fundamental, ocorreu durante a Conferência sobre a Água, em Mar del Plata, na Argentina, em 1977. Outros congressos e reuniões internacionais aconteceram com o objetivo de buscar o reconhecimento desse princípio pelos sistemas jurídicos nacionais.

Como resultado do movimento ecológico das últimas décadas, a Assembleia Nacional da ONU, em 28 de julho de 2010, proclamou o acesso à água potável como um direito humano fundamental.

Nossa Constituição Federal, apesar de ser chamada de Carta Verde, não elevou a água à categoria normativa de direito fundamental, pois seu art. 5º, com inúmeros incisos e parágrafos, é omisso a esse respeito. No entanto, como elemento integrante e essencial ao ambiente ecologicamente equilibrado, a doutrina brasileira tem defendido que a água é um direito garantido pelo princípio consagrado no art. 225 caput da CF/88.

Razões de ordem éticopolítica e econômico-social que elevam a água à categoria de bem jurídico, justificam a intervenção do Direito Penal Ambiental - com suas normas de caráter preventivo e repressivo - como sistema de controle e proteção de última instância.

No tocante à proteção penal dos recursos hídricos pelo sistema jurídico brasileiro, encontramos nas Ordenações Filipinas a primeira previsão de proteção penal da água na história do nosso Direito Penal. A referida norma penal sancionava quem viesse a lançar "nos rios e lagoas" qualquer substância capaz de causar a morte de peixes.

O Código Criminal do Império, promulgado em 1830, abandonou o sistema punitivo medieval positivado nas Ordenações Filipinas. Mas, no que se refere à proteção jurídica das águas, o texto codificado foi completamente omisso, deixando de prescrever norma penal destinada a reprimir a prática de eventual conduta poluidora ou corruptora das águas.

Já o primeiro Código Penal republicano (1890), demonstrou clara preocupação com a poluição da água e destacou dois tipos penais para punir condutas com potencial de comprometer a qualidade do líquido destinado ao consumo público ou particular. O primeiro incriminava a conduta de “envenenar fontes públicas ou particulares, tanques ou viveiros de peixe, e víveres” destinados ao consumo da coletividade. O segundo tipo penal reprimia a conduta dolosa de "corromper, ou conspurcar, a água potável de uso comum ou particular, tornando-a impossível de beber ou nociva à saúde".

O atual Código Penal, promulgado em 1940, não destinou capítulo próprio para punir os atentados graves ao ambiente e, de forma específica, as condutas lesivas ao uso da água. Àquela época, não se poderia pretender que nosso Código Penal fosse um instrumento capaz de antecipar mecanismos de controle penal ambiental, que só ganhariam viabilidade política e jurídica três décadas mais tarde.  

No entanto, o Código incriminou as condutas de envenenamento (art. 270) e a de poluição da água potável (art. 271), classificando-os como tipos penais contra a saúde pública.

 Apesar da divergência ainda presente no campo da doutrina, entendemos que o crime de envenenamento de água potável descrito no art. 270, do CP, continua com sua vigência preservada, desde que entendido como uma espécie qualificada do tipo penal genérico previsto no art. 54, da Lei dos Crimes Ambientais. E, se o caput do art. 270 do CP não foi revogado, da mesma forma, os dois parágrafos que se referem ao tipo equivalente e à modalidade culposa, permanecem em vigor.

No entanto, houve revogação do art. 271, do CP, pela disposição de norma posterior mais benéfica e de maior abrangência contida no art. 54, da Lei dos Crimes Ambientais. 

O advento da Lei 6.938/1981 representou um importante marco no processo de implantação de uma Política Ambiental brasileira. Além de ter criado o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) e de ter contribuído significativamente para o surgimento e consolidação do Direito Ambiental brasileiro, reforçou a proteção penal do ambiente incriminando condutas poluidoras das águas de outros elementos do ambiente. O tipo penal estava descrito no art. 15 da referida lei e se acha também revogado pela Lei dos Crimes Ambientais.

A entrada em vigor da Lei 9.605/98 - mesmo com suas inevitáveis deficiências – representou um avanço significativo no processo históricojurídico brasileiro no campo do controle penal ambiental. O texto legal sistematizou e unificou um importante ramo do Direito Penal e estabeleceu um modelo jurídico-organizacional que, seguramente, aperfeiçoou o subsistema de controle penal das condutas típicas contra o ambiente.

Quanto às ações lesivas ao bem jurídico objeto deste estudo, a Lei 9.605/98, infelizmente, deixou de instituir um tipo penal próprio com a função de prevenir e reprimir as condutas poluidoras dos recursos hídricos. Limitou-se a estabelecer um crime genérico de poluição, previsto no art. 54, para punir quem "causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana".

Trata-se de um super-tipo incriminador, que procura identificar todos os possíveis casos de poluição, a fim de estender o braço repressivo da norma penal aos infratores que causam a degradação dos mananciais de águas e das condições atmosféricas e atentam contra o ambiente ecologicamente equilibrado e a própria vida humana sobre a Terra.

A nosso ver, a criação de um tipo penal próprio para o controle das ações poluidoras dos recursos hídricos, com a descrição das formas diferenciadas de realização da conduta, para o fim de se estabelecer sanções também diferenciadas segundo a gravidade do resultado, poderia contribuir de forma mais adequada e efetiva para a proteção penal desse bem jurídico de inestimável valor para a vida humana e a preservação do ambiente ecologicamente equilibrado. 

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Sobre o autor
Rodrigo José Leal

Professor de Direito Penal da Universidade Regional de Blumenau - FURB e na Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Doutor em Direito pela Universidade de Alicante/Espanha. Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Fundação Universidade Regional de Blumenau - FURB. Graduado pela Furb.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEAL, Rodrigo José. Água, direito humano fundamental e sua proteção penal no ordenamento jurídico brasileiro:: das ordenações medievais do reino às normas de controle dos crimes ambientais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4575, 10 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45732. Acesso em: 24 abr. 2024.

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