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Água, direito humano fundamental e sua proteção penal no ordenamento jurídico brasileiro:

das ordenações medievais do reino às normas de controle dos crimes ambientais

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10/01/2016 às 10:23
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Razões de ordem ético-política e econômico-social, que elevam a água à categoria de bem jurídico, justificam a intervenção do Direito Penal Ambiental como sistema de controle e proteção.

Resumo: O objetivo deste artigo científico é o de investigar e analisar as normas promulgadas, no âmbito do sistema criminal brasileiro, com o fim de estabelecer a prevenção e repressão das condutas poluidoras da água potável e dos recursos hídricos, considerados como elementos naturais integrantes do ambiente ecologicamente equilibrado.O estudo inicia com um breve relato das normas prescritas pelo Direito Criminal da época colonial para terminar com a análise do ordenamento jurídicopenal em vigor.

Palavras- chave: Água. Direito penal. Crime ambiental.

INTRODUÇÃO – Escassez dos Recursos Hídricos e Necessidade de Uma Política Pública Racional para o Uso e Preservação da Água

A atual grave crise hídrica que atinge os reservatórios das grandes hidrelétricas e represas para abastecimento de água das regiões sudeste e nordeste do Brasil é a demonstração evidente da necessidade de tratarmos, com seriedade e responsabilidade ambiental, a questão da gestão e do consumo de água em nosso país.[1]

Sabe-se que a cultura do consumismo desenfreado e da exploração dos recursos naturais em larga escala tem dificultado a preservação e a qualidade da água.  Os danos causados pela atividade humana poluidora do ambiente refletem necessariamente nas reservas e qualidade da água. Essa contínua e veloz cadeia contaminante afeta todo o equilíbrio ecológico, pois não se pode falar em água de modo isolado.[2]

Segundo dados a ONU, 748 milhões de pessoas enfrentam a falta d´água no mundo, sendo 36 milhões na América Latina.[3] Esta advertência coincide com o pensamento de Gabriel Real Ferrer, que defende a necessidade imperiosa de proteger o ambiente por meio de todos os mecanismos de prevenção e de repressão, aí incluído o Direito como instrumento de controle das condutas individuais e coletivas: “La Humanidad, al menos de momento, tiene que conformarse con lo que tiene, porque no hay nada más allá. Esta noción es tan elemental como rigurosamente nueva en la historia del Hombre y le obliga a trascendentales cambios conceptuales”.[4]

Fica, assim, evidenciada a necessidade fundamental de se buscar a proteção jurídica da água, para que seu uso e consumo se faça de forma racional e de forma a manter o equilíbrio das condições essenciais à existência da vida humana e do próprio Planeta Terra.

No caso da intervenção penal, deve o Estado estabelecer, por meio de uma Política Criminal comprometida com o princípio constitucional do ambiente ecologicamente equilibrado, o elenco das normas indispensáveis ao efetivo controle das condutas potencialmente ofensivas ao bem jurídicopenal essencial à vida humana, que é a água em toda a sua dimensão de recurso natural renovável, mas finito.


1. ÁGUA COMO BEM JURÍDICO ELEVADO À CATEGORIA CONSTITUCIONAL

1.1 As Discussões e Diretivas Aprovadas em Nível Mundial 

O reconhecimento do meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, como um direito fundamental da pessoa humana, não poderia excluir a água como um dos elementos naturais integrantes desse direito fundamental, assim como o ar, a fauna, o solo e a flora. El Derecho Ambiental se singulariza cuando su objeto es la protección del Ecosistema Planetario.[5]

A água é o elemento mais importante da Terra, pois permitiu a aparição e a manutenção da vida no planeta e por isso é crucial à efetivação do equilíbrio ecológico em escala global. Por se tratar de um recurso limitado (há três bilhões de anos ela não aumenta e nem diminui de quantidade),[6] é preciso efetivar a sua proteção para que ela não falte aos seres vivos que dela dependam.[7] Riccardo Petrella alerta: água é direito à vida. Ao comentar esta citação em sua obra Paulo Affonso Leme Machado complementa que negar água ao ser humano é negar-lhe o direito à vida. O direito à vida é anterior aos outros direitos.[8]

Em razão dessa realidade contemporânea e de seu elevado valor éticopolíticojurídico e socioeconômico, a doutrina vem sustentando que a água é um direito humano fundamental. A primeira iniciativa em nível mundial, ocorreu no ano de 1977, quando foi realizada a Conferência sobre a Água, em Mar del Plata na Argentina. Anos depois, em 1992, aconteceu na Irlanda (Dublin), a Conferência Internacional sobre a Água e Meio Ambiente. Entre outras diretivas, reconheceu e chamou a atenção para a finitude da água, bem como a necessidade de sua preservação, com a recomendação para que os Estados adotassem gestões de recursos hídricos.

Nesse mesmo ano, realizou-se a ECO – 92. Sua Agenda 21, proclama que “A água é necessária em todos os aspectos da vida” e que, por isso, é indispensável assegurar “uma oferta adequada de água de boa qualidade para toda a população do planeta” (Capitulo 18).

Devem ser mencionados, também, os seguintes eventos mundiais organizados com a finalidade de tratar da preservação e do uso racional da água: I Fórum Mundial da I Fórum Mundial da Água, realizado em 1997, no Marrocos; II Fórum Mundial, em Haia, na Holanda, no ano de 2000 e o III Fórum Mundial, ocorrido no Japão, em 2003. Durante o IV Fórum Mundial da Água, na Cidade do México, em 2006, foi aprovada a proposta reconhecendo que “a água - essência da vida - constitui um direito humano básico”.

Finalmente, é preciso assinalar que Assembleia Nacional da ONU, em 28 de julho de 2010, proclamou “o acesso à água potável como um direito humano fundamental, como se observa no relatório da Assembleia: “Assembleia Geral reconhece o acesso à água como um direito humano.”[9]

Recentemente, a Igreja Católica, preocupada com a degradação ambiental e com a atual crise hídrica mundial, publicou a Encíclica Laudato Si, chamada de Carta Verde, na qual adverte que a cultura do desperdício, do descarte e do consumismo exagerado, praticada pelos países mais ricos, torna-se incompatível com o desenvolvimento sustentável e com o dever de preservação ambiental.

Depois de sustentar que a “água potável e limpa constitui uma questão de primordial importância, porque é indispensável para a vida humana e para sustentar os ecossistemas terrestres e aquáticos”, a Encíclica papal proclama que “o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos”.[10]

Vladimir Passos Freitas acredita que, pela importância da Igreja Católica e a liderança do Papa Francisco em todo o mundo, o texto da carta encíclica vai “gerar forte influência nas atividades ligadas à proteção do meio ambiente, inclusive no Direito”.[11]

1.2 Direito à Água na Constituição Brasileira

Nossa Carta Magna não elevou a água à categoria normativa de um direito fundamental, pois seu art. 5º, com inúmeros incisos e parágrafos, é omisso a esse respeito.[12] No entanto, como elemento integrante e essencial ao meio ambiente, a ela é aplicável o enunciado do art. 225 caput da CF/88.[13] Por sua vez, leciona Celso Fiorillo que a água, ao ser definida como exemplo didático de “bem essencial à sadia qualidade de vida”, passou a ser caracterizada juridicamente como bem ambiental (art. 225 da CF).[14] Da mesma forma, Manoel Gonçalves Ferreira Filho diz que  água deve ser entendida como direito humano fundamental de terceira geração, pois integra o meio ambiente que possui o mesmo status.[15]

O reconhecimento da água como direito fundamental atribui ao Estado, numa atuação conjunta com a sociedade, a tutela efetiva da água.[16] É preciso, portanto, preservar, gerenciar e racionalizar a água, fonte de vida do planeta, impedindo desta forma que o mundo caia num quadro sombrio de exploração, consumo e supervaloração econômica. (...) O acesso universal à água potável é um direito humano, fundamental de todos.[17]

Com base nessas reflexões que colocam a água como direito humano fundamental e essencial à qualidade de vida e ao equilíbrio ecológico passa-se a examinar os fundamentos da proteção jurídicopenal da água como elemento integrante do meio ambiente ecologicamente equilibrado. A questão é a de saber alguns fundamentos que justifiquem a intervenção criminal em condutas que poluam ou contaminem a água e prejudiquem diretamente o próprio equilíbrio ecológico.


2. fundamentos éticopolíticos e jurídicos para a proteção penal da água como DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL

Razões de ordem ético-política e econômico-social que elevam a água à categoria de bem jurídico justificam a intervenção do Direito Penal Ambiental - com suas normas de caráter preventivo e repressivo - como sistema de controle e proteção de última instância.[18]

Como assinalou Édis Milaré, reportando-se ao Relatório Planeta Vivo 2002, produzido pelo Fundo Mundial para a Natureza – WWF – “a humanidade está fazendo um saque a descoberto sobre os recursos naturais da Terra”. Para o autor, entre as várias terapias propostas para combater o que denomina de grave devastadora doença do ambiente e da própria Terra, ressalta o recurso “ao Direito como elemento essencial para coibir, com regras coercitivas, penalidades e imposições oficiais, a desordem e a prepotência dos poderosos (poluidores, no caso)”. Ao defender legitimação da intervenção do Direito como de extrema necessidade para que se estabeleça um mínimo de equilíbrio ecológico, termina citando palavras de Gofredo Telles Júnior: “onde há fortes  e fracos, a liberdade escraviza e a lei é que liberta”.[19]

São muitos os autores que opinam pela necessidade de intervenção do Direito Penal, como forma de garantir uma proteção mais efetiva do meio ambiente.[20] Há também os que não admitem a conveniência político-jurídica de tal intervenção. Entre outros argumentos, levantam esses autores o problema da insegurança jurídica decorrente da criação do grande número de normas penais em branco e da grande dependência do Direito Administrativo.[21] Além disso, não podem ser desconhecidos os graves dilemas filosóficos inerentes ao Direito Penal entre os quais o questionamento do papel da pena de prisão e suas perspectivas para o século XXI.[22]

Apesar da procedência desse conjunto de questionamentos, o que se percebe atualmente é que o Direito Penal Ambiental vem sendo incorporado e cada vez mais aperfeiçoado nos ordenamentos jurídicos de muitos países, a exemplo do Brasil.

A seguir, será examinado o histórico da proteção penal da água no Brasil.


3. A Proteção Penal da Água nas Ordenações do Reino e no Código Criminal do Império

Com o descobrimento do Brasil, o Estado português trouxe para colônia não somente o seu sistema socioeconômico e político como também o direito praticado na metrópole, com suas normas jurídicas de direito material e processual.  Quanto à proteção jurídica do ambiente, Ann Helen Wainer estudou a legislação portuguesa que vigorou no Brasil colonial, destacando dos referidos textos legais as normas que já revelavam certa preocupação com a preservação ambiental.[23]

No entanto, é no Livro V, Título LXXXVIII, §7º, das Ordenações Filipinas, que se encontra a primeira previsão de proteção penal da água na legislação brasileira. A referida norma penal sancionava quem viesse a lançar "nos rios e lagoas" qualquer substância capaz de causar a morte de peixes. Expressão do Direito Penal medieval, as penas cominadas eram seletivas: para o fidalgo, degredo e multa; para o condenado de "menor qualidade", açoites e baraço, além de outras infâmias.[24]

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O Código Criminal do Império, promulgado em 1830, abandonou sistema punitivo medieval positivado nas Ordenações Filipinas, para expressar as ideias liberais e humanistas, nascidas com o iluminismo.[25] Mas, no que se refere à proteção jurídica das águas, o texto codificado é completamente omisso, deixando de prescrever norma penal destinada a reprimir a prática de eventual conduta poluidora das águas.[26] Conforme assinalou Aldo Rebouças, observa-se nítida inércia política, em termos de proteção dos recursos hídricos, por parte do legislador que aprovou nosso Código Criminal do período imperial.[27]


4. O Código Penal Republicano de 1890 e a Incriminação das Condutas Poluidoras da Água

Já o primeiro Código Penal republicano (1890), demonstrou clara preocupação com a poluição da água. Em seu Título III, onde estão arrolados os "Crimes contra a Tranquilidade Pública", destinou o Capítulo III, para sancionar as ações humanas ofensivas à "Saúde Pública", dentre as quais destacou dois tipos penais para punir condutas com potencial de comprometer a qualidade do líquido destinado ao consumo público ou particular. O primeiro incriminava e punia com pena de prisão celular de dois a seis anos, o envenenamento "das fontes públicas ou particulares, tanques ou viveiros de peixe, e viveres" destinados ao consumo da coletividade (art. 161). A infração penal só conhecia a modalidade dolosa, sendo atípica a conduta de quem, por negligência ou imprudência, viesse a causar o envenenamento das águas.

O art. 161 descrevia, ainda, um tipo penal qualificado pelo resultado, portanto, de consequências muito mais graves, quando do envenenamento resultasse "a morte de alguma pessoa". Nesse caso, a pena prevista era de "prisão cellular por seis a quinze annos".

Além disso, o Código Penal de 1890 criou um segundo tipo penal para reprimir a conduta dolosa de "corromper, ou conspurcar, a água potável de uso comum ou particular, tornando-a impossível de beber ou nociva à saúde" (art. 162). A pena cominada para esse caso de poluição era de prisão celular de um a três anos.[28]

É preciso assinalar que estas duas infrações penais estavam catalogadas no rol "dos crimes contra a saúde pública" e não como infrações penais contra o ambiente.  Isto é compreensível. Àquela época, não se cogitava, ainda, da existência de uma legislação ambiental, muito menos de um Direito Penal Ambiental.

De qualquer forma, os dois tipos penais registram a preocupação do legislador penal brasileiro do início da fase republicana com um bem jurídico que seria considerado cada vez mais fundamental à coletividade: a água.[29]


5. Proteção Penal da Água no Atual Código Penal Brasileiro

5.1 Introdução - Envenenamento e Poluição das Águas como Infrações contra a Saúde Pública

Em 1940, ainda não havia chegado a época dos movimentos ecológicos em favor da proteção jurídica específica do ambiente, aí incluída a água como bem jurídico merecedor das normas mais severas e de última ratio próprias do controle penal. Por isso, não se pode censurar os autores do atual Código Penal por não terem destinado um título próprio para punir os responsáveis por atos atentatórios ao ambiente e, de forma específica, pelas condutas mais graves e lesivas ao uso e consumo da água. Se, conforme verificamos, o Direito Ambiental e seu braço de controle mais rígido, o Direito Penal Ambiental, são disciplinas gestadas durante a segunda metade do século passado, não se poderia pretender que nosso Código Penal, portador das ideias formuladas pela Escola Clássica, fosse um instrumento capaz de antecipar mecanismos de controle penal ambiental, que só ganhariam viabilidade política e jurídica três décadas mais tarde.  

Assim sendo, o atual Código Penal inseriu as condutas humanas mais graves contra o uso e consumo da água, no seu Título VIII, espaço normativo onde se encontram descritas as infrações penais que ofendem a "incolumidade pública".  Mantendo a nomenclatura do Código anterior, reservou o Capítulo III para punir as condutas especialmente lesivas à "Saúde Pública". Entre estas estão as ações de envenenamento e a de poluição da água potável.

5.2 Envenenamento de Água Potável

5.2.1 Tipo Penal e seus Elementos Jurídicos

O primeiro tipo penal está descrito no artigo 270, com a rubrica "nvenenar água potável, de uso comum ou particular ou substância alimentícia ou medicinal destinada a consumo". Como se verifica, a ação incriminada, sancionada com pena de reclusão, de dez a quinze anos,[30] não se restringe apenas ao envenenamento de água potável, mas também a toda e qualquer produto alimentício ou medicinal.[31]

Trata-se de crime de perigo abstrato ou presumido, consumando-se com o envenenamento da água potável, sendo desnecessário que alguém beba para consumar o crime.[32] Rogério Greco considera que estamos diante de crime de perigo concreto. Por isso, somente haverá crime consumado quando o agente criar "efetivamente, uma situação de perigo a um número determinado de pessoas, colocando em risco, portanto, a incolumidade pública".[33]

Quanto ao elemento subjetivo da infração, escreve Nelson Hungria que estamos diante de um tipo penal cujo elemento subjetivo é o dolo de perigo, pois o agente atua com a "consciência de criar uma extensiva situação de perigo de dano à vida ou saúde", mas sem se propor a consumar "um efetivo resultado letal ou lesivo" a qualquer pessoa. Ressalta o penalista que o dolo, na hipótese do art. 270, não pode ser classificado como "o animus occidendi", porque nesta hipótese estaríamos diante de um crime de homicídio qualificado. Complementa dizendo que, se o agente atua com a voluntas ad necem, teremos configurado o tipo penal de venefício, previsto no art. 121, § 2º, III, do CP, crime este que, segundo o autor, somente seria capaz de praticá-lo "indivíduo psiquicamente anormal".[34]

 Para elucidar sua lição, cita o exemplo do comerciante que envenena as águas do viveiro do concorrente, a fim de vender mais facilmente o seu estoque de peixes. Aqui, Hungria vê uma clara hipótese de crime de perigo comum, pois o agente tem consciência de que pessoas poderão ser envenenadas, mas não é esta a sua vontade dolosa, "esperando que a contaminação do viveiro seja descoberta a tempo de se evitar qualquer dano pessoal".[35]

5.2.2 Conceito de Água Potável

O art. 270 refere-se à "água potável". Diante da regra que manda dar interpretação restritiva às normas incriminadoras, é preciso buscar o exato sentido da expressão contida no referido dispositivo penal. Segundo leitura da nossa doutrina penal inspiradora do texto codificado, que tem em Nelson Hungria sua figura central, água potável seria a substância líquida "imune de elementos insalubres ou própria para beber". Para ele, não seria necessário o estado de absoluta pureza, bastando que se tratasse de água "ingerida habitualmente por indeterminado número de pessoas".[36]

Como se vê, a doutrina defende um conceito flexibilizado do objeto jurídico sob proteção penal, entendendo que a ideia de potabilidade pode ser admitida no caso de impurezas de menor gravidade e desde que a água seja consumida de forma coletiva ou particular, sem problemas de salubridade. São as águas encontradas nos rios, riachos, açudes e mananciais superficiais ou subterrâneos 

Esta posição doutrinária foi respaldada pelo TJSP, que decidiu considerar como água potável não apenas as águas de pureza e inocuidade bioquímica mas, também, aquelas que as populações ribeirinhas, os moradores das zonas rurais, se servem, pouco importando que sejam recolhidas em poços, rios, cisternas ou açudes, filtrada ou não, ou fornecida mediante distribuição, seja pública ou particular.[38]

Cabe assinalar que tanto a hermenêutica doutrinária quanto a jurisprudencial que acabamos de referir se afastam do conceito médicocientífico adotado pelo para consumo humano cujos parâmetros microbiológicos, físicos, químicos e radioativos atendam ao padrão de potabilidade e que não ofereça riscos à saúde.[39]

5.2.3 Revogação ou Vigência da 1ª Parte do Art. 270?

Na doutrina, há divergência quanto à revogação do caput, 1ª. parte, do art. 270 do CP. É que o art. 54, da Lei 9.605/98, passou a incriminar a conduta de causar "poluição de qualquer natureza".[40] Como se vê, esse tipo penal descrito na Lei dos Crimes Ambientais, descreve uma conduta genérica de poluição, mas é consenso que aí está inserida a poluição das águas. Por isso, parte da doutrina entende que o crime de envenenamento de água potável, previsto no CP, teria sido revogado pela norma penal posterior.

A discussão doutrinária se estabelece no campo terminológico (veneno e poluição). Quanto ao sentido semântico, veneno é uma substância natural ou preparada que por sua atuação química é capaz de destruir ou perturbar as funções vitais de um organismo.[41] Ao contrário do diploma penal anterior,[42] o atual Código deixou de formular um conceito jurídico de veneno. Para a Medicina Legal não há nada mais difícil de definir do que veneno, segundo opinião de Genival Veloso de França.[43]

Já o termo poluir significa infectar, manchar, sujar.[44] A Lei 6.938/81, que trata da Política Nacional do Meio Ambiente, define poluição em seu art. 3º, inc.III como a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população.[45] No campo doutrinário, a poluição hídrica tem sido definida como a alteração dos elementos constitutivos da água, tornando-a imprópria ao consumo ou à utilização para outros fins.[46]

Embora haja divergência conceitual, uma coisa é certa: tanto o envenenamento quanto à poluição de água potável, podem acarretar danos à saúde humana. Portanto, o envenenamento aparenta ser uma das tantas formas de poluição possíveis, como destaca Bruna Azevedo de Castro, em sua interpretação no sentido de que a conduta prevista no art. 270, 1ª. parte, foi revogada pelo tipo penal previsto art. 54 da Lei 9.605/98, pois se trata de lei posterior e mais benéfica ao infrator.[47]

É, também, a posição de Luiz Regis Prado que defende a derrogação implícita da 1ª. parte, do caput do art. 270 do CP. Sustenta que o art. 54 da Lei 9.605/98, por ter adotado expressões mais abrangentes como poluir em níveis tais, acabou por abranger, também, a ação de envenenar água potável, razão pela qual está revogado o dispositivo contido no art. 270 do CP

Apoiados em argumentos de doutrinadores internacionais, José Silva Júnior e Guilherme Madeira Dezem defendem a vigência do art. 270. Argumentam que envenenar é mais grave do que poluir, a ponto da conduta prevista no Código Penal (envenenar) ter sido considerada crime hediondo.[49] É a linha de interpretação de Guilherme de Souza Nucci e de Rogério Greco que ponderam que o perigo gerado pela conduta prevista no artigo 270 do CP é muito superior ao do art. 54 da Lei 9.605/98.[50]

A nosso ver, envenenar água potável é conduta eticamente mais censurável e, por isso, juridicamente mais reprovável do que a conduta genérica de causar "poluição de qualquer natureza". Na hipótese prevista no Código Penal, o crime pressupõe o uso de substância venenosa na água potável para colocar em risco a incolumidade e a saúde pública. No caso da Lei dos Crimes Ambientais, o dispositivo pune, de forma genérica, quem causar poluição das águas ou dos recursos hídricos. Além disso, é preciso ressaltar que a pena cominada no art. 270, do CP - reclusão, de 10 a 15 anos - é muito mais severa do que a sanção prescrita para o crime ambiental (reclusão, de um a quatro ou de um a cinco anos).

Assim sendo, entendemos que o crime de envenenamento de água potável descrito no art. 270, do CP, continua com sua vigência preservada e pode ser visto como uma espécie qualificada do tipo penal genérico previsto no art. 54, da Lei dos Crimes Ambientais. E, se o caput do art. 270 do CP não foi revogado, da mesma forma, os dois parágrafos que se referem ao tipo equivalente e à modalidade culposa permanecem em vigor.

5.3 Corrupção ou Poluição de Água Potável

Além do envenenamento, conduta criminosa considerada bem mais grave, entendeu o legislador de 1940 de proteger a água potável também da ação humana corruptora ou poluidora desse recurso hídrico tão fundamental para a qualidade de vida do ser humano, num ambiente ecologicamente equilibrado. Dessa forma, o artigo 271 do CP assim define o tipo penal em exame: “Corromper ou poluir água potável, de uso comum ou particular, tornando-a imprópria para consumo ou nociva à saúde:  Pena - reclusão, de dois a cinco anos”. No parágrafo único, está descrita a modalidade culposa, que prescreve pena de detenção, de dois meses a um ano.

A nova terminologia afasta-se daquela utilizada pelo Código de 1890, que se referia à "corrupção" ou "conspurcação" das águas. Sem dúvida, o termo "poluição" adotado pelo atual Código, para indicar o tipo de lesão ao bem jurídico penalmente protegido, representou um compromisso com a terminologia moderna.

A exemplo do crime que acabamos de analisar, trata-se de crime de perigo comum, que se consuma no momento da ação poluidora, independentemente da efetiva produção de qualquer resultado. Assim, vale aqui o que acima ficou registrado sobre o crime de envenenamento de água potável.

Embora a divergência ainda se mantenha, a doutrina predominante entende que este dispositivo encontra-se revogado pelo art. 54 da Lei 9.605/98. Primeiro, por ter criado um tipo penal mais abrangente e, segundo, porque tem a eficácia revocatória de lei posterior. Nesta posição, que defende a revogação do art. 271, do CP, estão perfilados Celeste Pereira Gomes[51], Bruna Azevedo de Castro[52], Paulo Affonso Leme Machado[53] e Ney Moura Teles.[54]

Posição contrária é assumida por Victor Rios Gonçalves. Para este autor, existem águas correntes que podem ser potáveis em parte e quem poluí-la ou corrompê-la, seja ela de uso comum ou particular, desde que apta ao consumo humano, incorre no crime do art. 271 do CP. Mas, se houver poluição de água não potável, aí sim é que haverá o crime previsto no art. 54, caput, da Lei 9.605/98.[55]

Quanto à jurisprudência, uma única decisão foi encontrada, na qual o STJ entendeu que o crime descrito no art. 54 da Lei 9.605/98 engloba completamente a conduta tipificada no art. 271, do Código Penal. Para aquela Corte superior, por tratar-se de lei posterior, específica e mais benéfica ao acusado, uma vez que fixa pena mais branda e define conduta mais restrita, consta-se a ab-rogação do delito de poluição do Código Penal.[56]

A nosso ver, houve revogação do art. 271, do CP, pela disposição de norma posterior mais benéfica e de maior abrangência contida no art. 54, da Lei dos Crimes Ambientais. 

A seguir estuda-se a proteção penal da água na lei de política nacional do meio ambiente.

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Sobre o autor
Rodrigo José Leal

Professor de Direito Penal da Universidade Regional de Blumenau - FURB e na Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Doutor em Direito pela Universidade de Alicante/Espanha. Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Fundação Universidade Regional de Blumenau - FURB. Graduado pela Furb.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEAL, Rodrigo José. Água, direito humano fundamental e sua proteção penal no ordenamento jurídico brasileiro:: das ordenações medievais do reino às normas de controle dos crimes ambientais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4575, 10 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45732. Acesso em: 21 dez. 2024.

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