1. INTRODUÇÃO
O presente estudo surgiu da necessidade premente de preencher uma lacuna no estudo da prova judicial especialmente quanto a sua qualidade (para fornecer certeza) e os sistemas de legitimização da prova judicial.
Para tanto utilizamos o recorte metodológico de apresentar uma obra cinematográfica chamada “A CAÇA” que demonstra o problema da ausência de um sistema de legitimização da prova judicial.
Para demonstrar que a problemática levantada no filme é corriqueira no foro criminal bandeirante, analisamos a título prático um estudo de campo, onde uma forte evidência, somada a ausência de um sistema de legitimização da prova judicial, por pouco não foi o suficiente para produzir um erro judiciário enorme que redundaria na condenação de uma pessoa absolutamente inocente.
Daí a importância de denunciar os perigos da transmutação de um juízo de valor (evidência) numa dita prova judicial (certeza de culpabilidade).
Apontamos o critério do confirmável como sistema objetivo para reduzir a fórmula matemática do processo penal do senso comum teórico (processo penal = fastfood, peça pelo número): acusação da vítima (inquérito) + repetição da acusação da vítima (juízo) = sentença penal condenatória.
Ora, se a palavra da vítima não puder ser confirmada ou contraditada, sua força probatória (condenatória) fica reduzida no mosaico do conjunto probatório, devendo, conduzir ao axioma do in dúbio pro reo.
Após analisar sistematicamente o filme, o estudo de campo e o critério do confirmável, concluímos o estudo postulando que esse seja o ponto de partida para o desenvolvimento de sistemas de legitimização da prova judicial penal (ausentes no Código de Processo Penal), exportando objetivamente a apreciação da prova (extrinsecamente) para fora da decisão judicial (intrinsecamente), evitando-se com isso, excesso de subjetivismos e decisionismos quando não se tem certeza absoluta de um determinado fato.
2. O FILME “A CAÇA” COMO ALERTA A INEXISTÊNCIA DE UM SISTEMA DE LEGITIMIZAÇÃO DA PROVA JUDICIAL
Claro, o tema provas é um pilar de ferro do Processo Penal, pois é o substrato recognitivo para a formação da convicção do Juiz.
É a prova que conta a micro-história do crime, e, a um só tempo informa o Magistrado (ignorante quanto aos fatos) e o persuade, impondo como resultado dessa equação uma decisão.
Claro que o Código de Processo Penal está permeado de juízos a posteriori, seguindo o raciocínio atire primeiro, pergunte depois. Ou, prenda primeiro, e apure depois; que em todo caso prejudica a gestão da prova (dentro do princípio da paridade de armas).
Aliás, em hardcases, como confirmar a veracidade e qualidade da prova produzida em juízo?
Seguindo a lógica do sistema, a prova produzida em sede inquisitiva deverá ser confirmada em Juízo (salvo as hipóteses legais).
E a prova produzida judicial, como confirmá-la?
Seria uma indagação infame? Provavelmente aqueles que aceitam as fórmulas prontas logo concluiriam: Ora, a legitimação da prova fica a cargo da livre convencimento motivado do Magistrado, cotejando as provas, e, na dúvida, aplicando-se o axioma do in dúbio pro reo.
Cada vez mais o garantismo penal vem rechaçando essa teoria, ante o estado mental paranóico dos Magistrados ao decidir. É necessário decidir com acerto, com certeza. E a certeza só pode ser produzida através de uma prova legítima, confiável (ou seja, confirmável).
De acordo com Lopes Jr (2014, p.118):
O eterno debate “verdade possível x verdade inalcançável” arrasta-se sem solução e nenhum avanço relevante gera para o processo penal. É preciso pensar um processo liberto do peso da “verdade” no qual a decisão penal é construída em contraditório, dentro das regras do jogo, demarcada pela prova licitamente produzida. A “verdade” é contingencial e não fundante. Mas isso é outra grande revolução que se deve operar no senso comum teórico.
A prova mais que confiável (judicializada) deve ser passível de confirmação (critério do confirmável).
Os problemas na produção da prova, especialmente a testemunhal, vão da introjeção indevida da sugestão até a pura e simples má-fé daquele que depõe, seja vítima ou testemunha.
A insegurança jurídica (alta possibilidade de erro judiciário) gerada pela impossibilidade de se checar uma prova, apresentada como definitiva, deve ser observada com reservas, como é o caso do testemunho único da vítima nos crimes contra o patrimônio (roubo) ou crimes sexuais (estupro).
Na maioria esmagadora dos casos, a condenação se opera única e exclusivamente tendo como supedâneo a palavra o ofendido que aponta o acusado como sendo o autor do fato ilícito.
Claro que esse reconhecimento é aceito sem qualquer reserva pelo julgador (ausência de aplicação do critério do confirmável), até porque o ofendido (boa fé presumida), jamais apontaria indevidamente um inocente. São as justificantes apresentadas nas sentenças condenatórias.
Todavia, qualquer um que tenha experiência no foro criminal pode confirmar que o critério da “boa fé presumida” já conduziu (e continua conduzindo) a infinitas injustiças.
Por outro lado – o critério do confirmável (essa prova pode ser confirmada?) se aplicado com cautela, pode equalizar a ausência de um sistema de legitimização da prova judicial, conduzindo o Processo Penal para algo que possamos chamar de sistemicamente proporcional e razoável.
Utilizaremos da obra cinematográfica chamada a caça para demonstrar os perigos de um processo penal sem um sistema de legitimização da prova judicial e ao arrepio do critério do confirmável.
Local: Uma pequena e unida vila dinamarquesa.
Época: Atual
Filme: A Caça (dinamarquês: Jagten), é um filme dinamarquês de 2012, do gênero drama, dirigido por Thomas Vinterberg. Atores: Thomas Bo Larsen como Theo, amigo de Lucas. Alexandra Rapaport como Nadja, namorada de Lucas. Annika Wedderkopp como Klara, filha de Theo. Susse Wold como Grethe. Lars Ranthe como Bruun. Anne Louise Hassing como Anges. Ole Dupont as Godsejer como Advogado. Disponível em vídeo pela Zentropa.
Enredo: Lucas (Mads Mikkelsen) é um cidadão comum de uma vila dinamarquesa. Tendo perdido seu emprego como professor do Ensino Médio, trabalha em uma creche. Boa praça e amigo de todos, ele tenta reconstruir a vida após um divórcio complicado, no qual perdeu a guarda do filho. Tudo corre bem até que, um dia, a pequena Klara (Annika Wedderkopp), de apenas cinco anos, diz à diretora da creche que Lucas lhe mostrou suas partes íntimas. Klara na verdade não tem noção do que está dizendo, pois havia sido exposta a material pornográfico por seu irmão mais velho, que lhe mostrara a fotografia de um pênis ereto. O que embasou seu relato confuso envolvendo Lucas. Ela é interrogada através de perguntas sugestivas pela diretora da escola, e involuntariamente acaba confirmando a suposta agressão sexual do professor. A acusação logo faz com que ele seja afastado do trabalho e, mesmo sem que haja algum tipo de comprovação, seja perseguido pelos habitantes da cidade em que vive. Em pouco tempo, todas as crianças que eram alunas de Lucas na creche fazem relatos de abusos. Enquanto adormecia, Klara pede desculpa à Lucas por ter mentido e por tudo o que tem acontecido, ao que Theo, seu pai, a ouve e constata a inocência do amigo. Mesmo absolutamente inocente Lucas é preso, e, nessa condição é julgado. Um dos principais argumentos destacados no filme é que nos relatos as crianças elas dizem que Lucas as levava para sua casa e os abusos eram cometidos no porão. A polícia verificou que na casa de Lucas não existia porão nenhum. Mesmo completamente absolvido, a vida de Lucas nunca mais foi a mesma, pois desprezado pela comunidade.
Considerações: As interações entre Direito e Artes são profundas e pedagógicas. Se por um lado o personagem Lucas nega as imputações (que de fato não existiram), a Diretora da Escola e os pais dos demais alunos trabalham no sentido de conferir veracidade ao fato (inventado) por Klara. Tamanho é o poder da sugestibilidade que depois de um breve lapso de tempo todas as crianças que eram alunas de Lucas fazem relatos de abusos sexuais. A simples negativa de Lucas é absolutamente insuficiente para demonstrar sua tese. O dilema permanece: como legitimar a prova judicial sem um sistema processual próprio para isso?
3. TRANSMUTAÇÃO DE JUÍZOS DE VALOR EM PROVAS JUDICIAIS (PESQUISA DE CAMPO)
Cada vez mais a prática forense tem confirmado a teoria por nós apresentada.
No ano de 2.013 na cidade de Santos, foi instaurado um inquérito policial, pois um professor de música teria abusado sexualmente de 02 (duas) alunas com idades entre 10 (dez) e 12 (doze) anos.
Segundo relato extraído do depoimento de uma das menores teria ocorrido o seguinte: Que no dia 23/07/2013 pela manhã, o professor de música passava a mão em sua perna, próximo a vagina, de forma sensual, chegando a lamber sua orelha.
Tal depoimento foi confirmado por outra menor, que informou ser vítima do mesmo tipo de abuso. Posteriormente, mais 02 (duas) meninas se apresentaram na Delegacia da Mulher de Santos, narrando à mesma versão.
O professor de música foi demitido sumariamente, além do BO (boletim de ocorrência) ter sido afixado nos corredores da Escola, chegando ainda a sofrer uma tentativa de linchamento nos arredores da instituição de ensino.
Em continuidade das investigações a Autoridade Policial providenciou a oitiva do acusado (sem Advogado), que negou peremptoriamente o libelo contra ele levantado.
Até aquele momento a Delegacia da Mulher de Santos forneceu proteção integral aos menores e sua família, inclusive fazendo o devido encaminhamento a acompanhamento psicológico.
Nesse caso, a evidência se transformou em verdade. A aparência de verdade seria mais que o suficiente para embasar uma condenação exemplar, bastando que às menores confirmarem sua história perante um Juiz de Direito.
Até porque a regra de bolso de que a palavra da vítima tem primazia nesses casos logo seria aplicada sem qualquer ressalva.
Como confirmar se é verdade ou não a assertiva das menores? Até porque nesse caso, não foi apenas uma menina, e, sim 04 (quatro) meninas. É impossível que 04 (quatro) meninas mintam acerca de um assunto tão sério!
Verificamos nesse estudo de campo, um caso claro, de transmutação de um juízo de valor numa dita prova judicial, ou seja, bastava que as assertivas fossem repetidas perante um juiz de direito para se obter um resultado igual a uma sentença condenatória.
Claro, no caso colocado, a verdade nas assertivas das menores é incontraditavel, não se submetendo ao critério do confirmável (aliás, como confirmá-los).
A cautela, ante a ausência de um sistema de legitimização da prova judicial no processo penal manda a aplicação do in dúbio pro reo, pois enquanto a vítima afirma e o acusado nega, nada se tem a título de prova.
Ocorre depois de 1 (um) ano de investigação (para produzir provas de culpabilidade), por sugestão da defesa, foi ouvida a Diretora da Escola que apresentou um memorando com o seguinte teor: “Informo que nos dias 23/07 e 26/07/2013, o Polo Regional Santos, permanecerá fechado, o motivo é que no dia 23/07 o prédio do cais será detetizado e no dia 26/07 será realizada a limpeza da caixa d água”.
Todas as vítimas afirmaram que foram abusadas sexualmente no dia 23/07/2013, no interior da Escola. Como se observa, isso é absolutamente mentira, pois na data em questão não teve expediente na Escola. Claro que depois disso as acusações de estupro (CP, art. 213), passaram a não fazer qualquer sentido.
O fato, ainda que nesse caso não se tenha decretado a prisão preventiva, é que o caso ganhou repercussão e notoriedade, vendo o acusado, ainda que absolutamente inocente, sua vida ser completamente destruída, sem o trabalho que lhe era confortável e sem a confiança tão duramente construída perante os amigos e familiares.
As similitudes entre a obra cinematográfica e o estudo de campo apresentado são indiscutíveis, portanto a necessidade de se meditar sobre essa lacuna na Lei, buscando uma solução diferente do senso comum teórico para que o resultado da prova de qualidade e confiável não fique adstrita ao decisionismo do Juiz.
4. O CRITÉRIO DO CONFIRMÁVEL
Do cinema ao estudo de campo chegamos à mesma conclusão: A ausência de um sistema de legitimização da prova judicial pode desestabilizar o sistema processual e produzir decisões absolutamente injustas.
As fórmulas de bolso são muito prejudiciais a distribuição da Justiça, pois conforme demonstrado, não importa a motivação, se em razão de sugestibilidade, se por erro de memória ou por pura e simples má-fé, erros judiciários baseados em provas que não reconstroem o fato com exatidão ocorrem dia após dia no Brasil.
Portanto, para o livre convencimento motivado, ante a ausência de um sistema de legitimização da prova judicial, deve haver um sistema de ponderação objetivo.
O critério do confirmável é um sistema de ponderação objetivo, pois é uma possibilidade de verificar a prova, fora da convicção subjetiva do Juiz sobre aquele fato recognitivo.
Um elemento que compõe o critério do confirmável é o contraditório; sim, pois se a prova apresentada é incontraditável, não deverá possuir valor absoluto no mosaico das provas. Exemplo maior disso é a filha do casal (em processo de divórcio judicial) que se diz abusada sexualmente pelo pai em delito que não deixa qualquer sinal de violência.
Como contraditar a palavra da vítima? Se nessa equação processual a palavra da vítima que afirma sempre tem maior valor do que a palavra do acusado que nega!
Notório que estamos diante de um exemplo eloquente de prova impassível de contradita. Nesses casos temos uma fórmula quase matemática em processo penal que passo a decifrar: Basta que a vítima confirme a versão data em sede inquisitiva perante um Juiz de Direito para se produzir como resultado dessa equação uma sentença penal condenatória.
Nos hardcases – o critério do confirmável deverá sempre ser aplicado como um sistema de ponderação; portanto deverá sempre ser questionado pelo julgador quando das (pré) tomadas de decisões: Essa prova pode ser confirmada? Essa prova pode ser contraditada?
Se a resposta for negativa, a referida prova não poderá ter valor absoluto no mosaico de provas que norteia a decisão motivada e subjetiva do Magistrado.
Não podendo ser a indagação respondida afirmativamente, a regra matemática do processo penal: Acusação da Vítima (inquérito) + confirmação da vítima (juízo) = sentença penal condenatória, não pode ser aceita, sendo, pois inserida nessa equação outras variáveis, podendo-se, obter no produto o resultado in dúbio pro reo.
Em resumo conclusivo: O critério do confirmável deverá ser utilizado com maior vagar quebrando-se a regra nefasta do processo penal de bolso, para assim, se iniciar, uma tentativa, de conformação de um critério de legitimização da prova judicial.