5 Corrente Doutrinária Favorável à Constitucionalidade da Norma Contida no §1°, do art. 180
É majoritária a corrente doutrinária que defende a constitucionalidade da norma tipificadora do crime de receptação qualificada. São diversos os fundamentos para justificar a validade da referida norma em face dos princípios da culpabilidade e, principalmente, da proporcionalidade da pena criminal.
5.1 Interpretação Declaratória e a Constitucionalidade da Pena Cominada no §1º. do Art. 180
A interpretação declaratória é aquela cujo texto examinado não é ampliado nem restringido, encontrando-se apenas o significado oculto do termo ou expressão utilizada pela lei (MIRABETE; MIRABETE, 2013, p. 36). Com base nessa forma de interpretação quanto ao resultado da lei penal, Fernando Capez entende que o termo sabe está inserido no deve saber, eis que o legislador foi além ao redigir o §1º, punindo não somente quem sabe que o produto é de origem criminosa, mas também quem deveria saber. Dessa forma, segundo o autor, se um comerciante desmonta um carro, sabendo que o mesmo é produto de crime deve responder pela receptação qualificada prevista no §1º, do art. 180, pois o saber engloba o dever saber.
Capez rejeita a tese da inconstitucionalidade, argumentando que não se trata de analogia ou de interpretação extensiva “mas de declarar o exato significado da expressão (“deve saber” inclui o “sabe”), interpretação meramente declarativa, portanto” (CAPEZ, 2011, p. 633).
No mesmo sentido, escreve André Estefam que reconhece o dolo direto como elemento subjetivo configurador tanto da receptação simples (art. 180, caput) como da receptação qualificada (art. 180, §1º), pois o termo deve saber inclui o sabe. Para este autor, esta posição é amplamente dominante nos tribunais, alertando, ainda, como ocorre na majoritária doutrina, que o dolo tem que ser atual e não subsequente. Ou seja, se o comerciante ou o industrial, após adquirir a coisa, tomar ciência de que a mesma é de origem ilícita, não subsistirá o crime (ESTEFAM, 2010, p. 497, 499 e 501-2).
5.2 A Interpretação Extensiva e a Constitucionalidade da Pena Cominada ao Crime de Receptação Qualificada
Parte da doutrina penal, entende que a validade da norma em análise pode ser sustentada com base na adoção da interpretação extensiva, perfeitamente admissível no âmbito do direito penal. Segundo Assis Toledo, essa forma ou método de interpretar a verdadeiro sentido do direito contido na norma penal, tem o papel de ampliar o espectro de incidência da norma legal de modo a situar sob seu alcance fatos que, numa interpretação restritiva (procedimento oposto), ficariam fora desse alcance (TOLEDO, 1986, p.26).
Com base nessa forma de interpretação Luiz Regis Prado defende que o elemento subjetivo na receptação simples (sabe) é o dolo direto enquanto que na receptação qualificada (deve saber) pode haver dolo eventual ou direto. O autor critica a redação do §1º e entende que o legislador disse menos do que queria expressar, ao se utilizar unicamente da expressão deve saber. Por isso “deve-se buscar o espírito normativo, ampliando-se o alcance da expressão utilizada no tipo, aplicando-se, por conseguinte, a interpretação extensiva”.
Para este autor, contudo, o termo deve saber, que reflete um juízo de dúvida sobre a origem do produto, abrange o termo sabe, revelador do pleno conhecimento do agente de que a coisa é de procedência criminosa (PRADO, 2013, p.659 e 662).
Guilherme de Souza Nucci também sustenta o emprego da interpretação extensiva. Entende que, se o dolo eventual está presente no tipo penal previsto no §1º, é natural que o dolo direto também esteja. Por isso, opina que, quem atua “devendo saber ser a coisa adquirida produto de delito, merece uma pena de 3 a 8 anos, com maior justiça, aquele que sabe ser a coisa produto criminoso” deve ficar sujeito, também, à mesma sanção. Para o autor, cabe ao intérprete estender o alcance da expressão deve saber para abranger o sabe. Diz, ainda, que o princípio da legalidade não proíbe a interpretação extensiva nem a interpretação teleológica (NUCCI, 2013, p. 906-7).
Rogério Greco segue a mesma linha e advoga a aplicação da interpretação extensiva na hipótese do §1º, quando o comerciante ou industrial souber que adquirem produto de origem criminosa. Segundo Greco o §1º revela o dolo eventual em sua conduta (deve saber) de menor desvalor que engloba a conduta (sabe) que revela o dolo direto e que é conduta de maior desvalor. Assim, o §1º. do art. 180 englobaria o dolo eventual originariamente eleito pelo legislador e o dolo direto eleito pelo intérprete no caso concreto (GRECO, 2014, p. 343).
Cezar Roberto Bitencourt defende que as elementares sabe e deve saber não são indicativas da espécie de dolo (direto e eventual) mas configuram tão somente elementos normativos do tipo penal. Mesmo assim não vê qualquer indício de inconstitucionalidade na norma contida no referido parágrafo. Destaca apenas o exagero da sanção cominada ao autor da receptação qualificada (BITENCOURT, 2011, p. 351-8).[13]
Outros autores, que estudaram este tema, também admitem que a expressão deve saber, contida no §1º, inclui o termo sabe, resultado a que se chega com a aplicação da interpretação extensiva para se enquadrar a conduta do comerciante ou industrial que adquire objeto produto de crime, no tipo penal descrito no referido parágrafo.[14]
Vale frisar que a interpretação extensiva é reconhecida por inúmeros doutrinadores no direito penal brasileiro. Nélson Hungria admite essa forma de interpretação em matéria penal, com a cautela de que esta só deve ser feita nos casos estritamente necessários, isto é, quando os casos não previstos expressamente devem ser a fortiori (ou por força de compreensão) abrangidos pelo dispositivo. Para Hungria a interpretação extensiva deve fazer revelar o espírito da lei (HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio, 1977, p. 92).
Para Heleno Cláudio Fragoso, a interpretação extensiva pode ocorrer quando o legislador disse menos do que a vontade da norma (FRAGOSO, 1985, p. 86).
Aníbal Bruno também admite a interpretação extensiva. Para o autor, a
interpretação propriamente dita pode valer-se da analogia para entender o alcance de certos preceitos. Aí não temos analogia em sentido próprio, como processo de integração de lacuna do sistema, por ausência de norma, mas interpretação por analogia, que é o meio indicado para integrar o preceito dentro da norma, estendendo-o, como êle mesmo sugere, a situações análogas.
Nessa forma de interpretação por analogia, Aníbal Bruno vê implícita uma hipótese de interpretação extensiva, em que a própria lei manda que se estenda o seu conteúdo e fornece o critério para isso (BRUNO, 1967, p. 213).
Hans Welzel é outro penalista que se posiciona a favor da interpretação extensiva ao registrar que, en cuanto hace valer, por encima de uma interpretación demasiado estrecha de las palabras, el sentido razonable del tipo (WELZEL, p. 1956, p. 28).[15]
Paulo César Busato afirma que o emprego da interpretação extensiva não vulnera o princípio de legalidade, pois a interpretação queda dentro do espírito da lei, enquanto que na analogia estaria criando direito, situação contrária que, sim, é proibida (BUSATO, 2013, p. 54).
Favorável à interpretação extensiva se manifesta, também, João José Leal, para quem este tipo de interpretação quanto ao resultado da norma penal, não busca ampliar a eficácia da norma a casos concretos ali não previstos, mas tão somente de estender a vontade legislativa a hipóteses por ela implicitamente disciplinadas (LEAL, 2004, p. 121).
É evidente que interpretação extensiva não significa aplicação pura e simples da analogia em matéria repressiva, para autorizar o juiz a criar condutas incriminadoras não previstas pelo legislador, violando a ideia central da independência e de harmonia dos poderes republicanos e democraticamente constituídos. Com esse devido cuidado, entendemos que o recurso à interpretação extensiva é perfeitamente válido em direito penal.
6.A Constitucionalidade da Receptação Qualificada Segundo a Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros
A discussão doutrinária sobre a constitucionalidade do §1º, do art. 180, foi levada aos tribunais e, até o ano de 2014, foi fonte de decisões conflitantes.
Em 31 de março de 2008 quase doze anos após o advento da Lei n. 9.426/96 em decisão monocrática proferida em medida cautelar em sede de Habeas Corpus o Ministro Celso de Mello do STF entendeu que o §1º do art. 180 afrontava a máxima da proporcionalidade e da individualização in abstracto da pena. Sustentou que o legislador não pode cominar pena mais leve para crime mais grave (CP, art. 180, caput) e pena mais severa a crime menos grave (CP, art. 180, §1º.). Com base nesse argumento e na posição doutrinária sustentada por Alberto Silva Franco, Damásio de Jesus e Celso Delmanto et al o ministro deferiu o pedido de medida liminar para suspender, cautelarmente, a eficácia da condenação penal imposta ao paciente (HC 92525/RJ, 31.03.2008).
Idêntica decisão monocrática foi proferida pelo mesmo ministro, em 01 de julho de 2010, desta vez no HC 102094/SC, com a qual deferiu o pedido de medida liminar, para suspender, cautelarmente, a eficácia punitiva da norma contida no art. 180, §1º, do CP.
Assim, por decisão isolada de um ministro do Supremo Tribunal Federal ficou suspensa a eficácia de uma norma penal inserida no Código Penal para punir mais severamente o comerciante ou industrial que na sua atividade empresarial tivesse cometido o crime de receptação tipificado no referido § 1º do art. 180.
No entanto em março de 2014 Celso de Mello mudou seu entendimento para decretar a conformidade do § 1º do art. 180 à máxima da proporcionalidade e ao princípio penal constitucional da individualização da pena que anteriormente havia ele entendido infringidos pela referida norma incriminadora. No mesmo Habeas Corpus n.92525/RJ e também em decisão monocrática amparada no regimento interno do STF indeferiu o pedido ali formulado para tornar sem efeito a medida cautelar antes concedida e em consequência manter a condenação criminal prolatada contra o réu no processo-crime de origem.[16]
Idêntica decisão monocrática foi proferida, em 25 de março de 2014, para também tornar sem efeito a medida cautelar deferida monocraticamente, no Habeas Corpus n. 102094/SC e manter a condenação criminal prolatada contra os réus, em primeira instância. Em 02.04.2014 a decisão transitou em julgado e o HC 102094/SC foi arquivado no STF.
A verdade é que o ministro Celso de Mello havia ficado isolado em relação ao entendimento predominante no STF. Por isso, acabou seguindo a orientação dos seus pares. Dessa forma, embora não tenha ainda ocorrido uma decisão do plenário, pode-se dizer que, no Supremo Tribunal, prevalece o entendimento favorável à constitucionalidade do art. 180 §1º do CP.
Tanto é que, em 2013, em sede de recurso ordinário em Habeas Corpus n.114.972/MS, uma das turmas do STF já havia decidido que o §1º, do art. 180 está de acordo com a Constituição Federal. Contudo, o ministro Marco Aurélio assinalou que não era da competência da "turma apreciar a harmonia, ou não, da norma atacada com a Carta da República", matéria da alçada "do colegiado maior, o pleno”.
Da mesma forma, em outra decisão de 25.06.2013, proferida no recurso ordinário em Habeas Corpus, a ministra relatora Rosa Weber admitira a constitucionalidade da norma contida no referido parágrafo. Para tanto, fundamentou sua posição em decisões anteriores do STF em especial no RE 443.388/SP da relatoria da min. Ellen Gracie que entendeu que o dolo eventual (deve saber) descrito no referido parágrafo abrange também o dolo direto (sabe) (HC 117.143/RS).
Mais tarde, em abril de 2014 e em agravo regimental que enfrentava o não seguimento de recurso extraordinário, o ministro relator Gilmar Mendes ponderou que o STF já havia decidido que o §1º, do art. 180, não viola o princípio da individualização e a máxima da proporcionalidade da pena. Nos termos do acórdão, o agravante “sabia da origem ilícita dos cabos, por ser comerciante há muitos anos” e também por saber que o vendedor “não possuía nenhuma atividade relacionada à área que pudesse fazer uso de cabos de energia elétrica” (Agr.Reg. 796156/SP)[17]
Em outro agravo regimental que enfrentava o não seguimento de recurso extraordinário, o ministro relator Gilmar Mendes reiterou, literalmente, os termos da decisão acima descrita, para confirmar a tendência do STF a esse entendimento praticamente unânime, sobre a matéria aqui pesquisada. Ponderou, ainda, que “a questão da inconstitucionalidade do art. 180, § 1º, do Código Penal será apreciada por esta corte novamente por ocasião do julgamento dos HCS 102.094/SC E 92.525/RJ de relatoria do min. Celso de Mello. Todavia, não havendo decisão suspendendo os efeitos do referido dispositivo legal presume-se ser este constitucional” (Agr.Reg. 799/649/RS de 25.03.2014).
Pela pesquisa efetuada, constatamos que as duas turmas do STF pacificaram o entendimento quanto à constitucionalidade do §1º, depois que Celso de Mello alterou sua posição inicial. Em razão do princípio da colegialidade, passou a acompanhar o entendimento dos demais ministros da corte. Diante disso, a arguição de inconstitucionalidade formulada nos habeas corpus e em recursos que chegaram e chegam ao STF deixa de se tornar relevante para que o tema seja examinado pelo plenário em face da unanimidade da posição assumida em ambas as turmas.
Nota-se, portanto, que o STF pacificou seu posicionamento no sentido de que a norma contida no §1º do art. 180 do CP não viola a constituição federal. Esse entendimento tem sido manifestado em reiteradas decisões. No entanto, não houve decisão do Plenário sobre a matéria.
No Superior Tribunal de Justiça as quinta e sexta turmas com competência em matéria penal pacificaram o entendimento no sentido de validade constitucional da norma descrita no parágrafo em análise. Ao julgar em 19 de junho de 2012 o Habeas Corpus 189.297 da Bahia, o ministro relator Sebastião Reis Júnior cita ementa do embargos de divergência (ERESP N. 772.086/RS), para argumentar que “não se mostra prudente a imposição da pena prevista para receptação simples em condenação pela prática de receptação qualificada, pois a distinção feita pelo próprio legislador atende aos reclamos da sociedade que representa, no seio da qual é mais reprovável a conduta praticada no exercício de atividade comercial”. Diante disso, denegou a ordem de habeas corpus ao argumento de que não havia constrangimento ilegal ao paciente, haja vista ser descabida a alegação de inconstitucionalidade.
Na esteira da posição das cortes superiores, o TJSC negou provimento ao pedido de revisão criminal por considerar constitucional a pena contida no referido §1º. CP.(Rev. Crim. 2014.007382-4). O TJSC pacificou esse entendimento e tem mantido a pena nos casos de crime de receptação qualificada (Ap. Crim. 2013.036582-7, de São José e Ap. Crim. 2013.031189-3, de Joinville). Por entender pacificada a matéria junto aos tribunais superiores, o TJPR rejeitou a alegação de inconstitucionalidade da norma incriminadora contida no §1º, do art. 180, aqui em exame (Ap. Crim. 1175451-1, 23.10.2014; Ap. Crim. 1.176.561-6, 09.10.2014 e Ap. Crim. 840.588-7, 05.09.2013).
O TJMG segue a mesma diretriz jurisprudencial e consolidou sua posição para decretar a inexistência de ofensa à constituição federal na norma incriminadora em exame (Ap. Crim. 1.0024.08.252995-9/001, 15.05.2014; Ap. Crim. 1.0220.07.003404-0/001, 25.03.2014 e Ap. Crim. 1.0024.12.237041-4/001 de 25.02.2014. Por último, vale citar que o TJSP também rejeita a tese de que o parágrafo 1º aqui em referência ofende a máxima da proporcionalidade da pena e que portanto seria inconstitucional (Ap. Crim. 004570-98.208.8.26.050, 01.12.2014).
Como ficou demonstrado, a posição da jurisprudência atual dos tribunais brasileiros pesquisados, incluindo a do Supremo Tribunal Federal, respalda a validade do §1º do art. 180 do CP, em face da constituição federal e, em especial, da máxima da proporcionalidade da pena criminal.