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Análise crítica do crime de receptação qualificada

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7.A Constitucionalidade da Norma Incriminadora da Receptação Qualificada e o Equívoco de uma Política Criminal Meramente Repressiva

Também entendemos que a norma incriminadora contida no parágrafo primeiro do art. 180, do CP, não ofende a nenhum princípio constitucional penal.  É verdade que, do ponto de vista da técnica jurídica, a norma não está bem formulada e poderia ter utilizado o termo "sabe", para descrever a conduta incriminada. Seria, sem dúvida, o mais indicado.

No entanto, é certo, também, que o parágrafo apenas amplia e qualifica o tipo penal descrito no caput do artigo. Assim, não há maior dificuldade para se afirmar que a expressão "deve saber" equivale ou abrange também o termo "sabe". Dessa forma, a interpretação extensiva, válida em âmbito penal, conduz ao entendimento de que expressão legal "deve saber" significa que o agente atual "sabendo" da origem criminosa da coisa ou produto receptado, principalmente, no caso do receptador profissional, comerciante ou industrial, porque este tem o dever de se informar melhor, de conhecer e, portanto, de "saber" que o objeto receptado tem origem criminosa.  Por isso, não nos parece ser da boa hermenêutica transformar uma impropriedade meramente formal em fundamento de sustentação de uma tese de inconstitucionalidade de uma lei aprovada pelo Congresso Nacional.

Da mesma forma, e superada a questão da expressão “deve saber”, entendemos que a pena de 3 a 8 anos de reclusão, prevista no parágrafo em exame, não ofende a máxima da proporcionalidade da pena criminal.[18] Trata-se de princípio sem prescrição constitucional expressa. No entanto, é unânime a opinião doutrinária e jurisprudencial de que o mesmo tem sua existência fundada nos princípios consagrados pela Constituição Federal. Conforme escreve Mariângela Gama Gomes, o texto constitucional não contém dispositivo expresso sobre a máxima da proporcionalidade em matéria penal, mas anota que a mesma decorre dos princípios gerais que emanam do ordenamento constitucional (GOMES, 2003, p.61 e ss.).

A máxima da proporcionalidade da pena conheceu sua formulação jurídica contemporânea em 1971, quando o Tribunal Constitucional Alemão decidiu que, para a validade de uma lei perante os princípios constitucionais, “o meio empregado pelo legislador deve ser adequado e necessário para alcançar o objetivo procurado” (CRETON, 2001, p. 65).[19]

Na lição de Ingazio de la Torre e Luiz Zapatero, citados por Alberto Silva Franco, a máxima da proporcionalidade tem a função de proibir cominação de pena em abstrato, que se mostre demasiadamente rigorosa em face do dano ou do potencial de ofensividade da conduta incriminada. Serve também para impedir excessos na aplicação da pena em concreto. Ao estabelecer o controle penal, o legislador deve observar uma rígida “relação de adequação entre a gravidade da pena e a figura do bem jurídico que a figura delitiva protege” e entre esta e as distintas formas de ataque ao bem jurídico que a conduta pode apresentar. Concluem os dois penalistas espanhóis, afirmando que “o juízo de proporcionalidade resolve-se por meio de valorações e comparações, isto é, numa ponderação” (FRANCO; STOCO, 2001, p. 2969).

Dessa forma fica evidente que a máxima da proporcionalidade em matéria penal exige que o legislador evite o recurso a leis demasiadamente severas em face da ofensividade que a conduta incriminada possa causar ao bem jurídico a ser protegido. Exige também do magistrado que aplique a quantidade mínima e suficiente de pena para a prevenção e a repressão do crime praticado.

No caso da receptação qualificada, a maior quantidade de pena cominada deve-se ao fato de o autor praticar a conduta no exercício de sua atividade de comerciante ou industrial, configurando o que o legislador acoimou de "receptação profissional" causadora de enormes prejuízos ao patrimônio coletivo e de insegurança no transporte de mercadorias em todo o país. É portanto uma conduta com maior potencial ofensivo ao bem jurídico penal protegido do que a simples receptação praticada individualmente.

Daí, a validade jurídica de se aplicar uma sanção de maior rigor ao receptador-comerciante ou industrial, que pratica negócios criminosos, que causam mais de um bilhão de reais, anualmente e constituem um perigo bem maior ao bem jurídico protegido, que é o patrimônio público ou particular.

Portanto, não se trata de punir mais severamente o autor de uma conduta praticada com dolo eventual e com menor rigor o autor de conduta semelhante cometida com dolo direto. A maior carga punitiva cominada ao receptador profissional é devida ao grande potencial de ofensividade dessa forma de criminalidade, alimentadora de uma cadeia delinquencial que tem origem em assaltos violentos para roubar valiosas cargas de diversos produtos transportados em caminhões e espalhando o medo e a insegurança nas estradas brasileiras.

Isso não significa, necessariamente, aceitar-se que o recurso à incriminação de mais uma conduta – no caso a receptação qualificada – sancionada com pena criminal mais rigorosa, seja a única e a melhor alternativa de Política Jurídica a ser adotada, naquele momento. O questionamento tem razão de ser quando as estatísticas indicam que o número de presos por receptação qualificada, no Brasil, foi de 1.652, em dezembro de 2008 e, cinco anos depois, passou a ser de 2.111 presos.[20] E, mais, quando se verifica que o roubo de cargas, crime precedente e usual à receptação qualificada, acarretou prejuízos de 500 milhões de reais, ao país, em 1999, sendo que, e em 2013, superou a importância de um bilhão de reais de prejuízo, só no Estado de São Paulo.

Por isso é preciso reconhecer que o simples e repetido recurso à lei como forma de controle social para incriminar condutas consideradas reprováveis nem sempre é a melhor solução a fim de se combater o problema. 

Anteriormente à intervenção penal (princípio da intervenção mínima), é preciso examinar outras formas de controle estatal de condutas perniciosas à sociedade, meios mais eficientes como o Direito Administrativo, que poderiam monitorar a produção, a venda e a aquisição de produtos e controlar de modo mais eficaz as fronteiras territoriais do país. É necessário, portanto, observar a concorrência desleal onde alguns vendem produtos de origem conhecida e outros não; é necessário observar o desequilíbrio tributário onde muitos pagam impostos e outros nada ou muito pouco; é necessário observar o transporte de mercadorias sem notas ou de origem duvidosa; é preciso reduzir a economia informal para que haja um controle mais efetivo das atividades industriais e comerciais no Brasil.

Sem a observância dessas etapas estruturantes e prévias à intervenção penal, percebe-se um ambiente mais fácil à proliferação da receptação e é nesse estado de coisas desorganizado, desestruturado e desigual que entra o Direito Penal para resolver mais um dos problemas de matriz ética, econômica, social e política do Estado brasileiro e que ele pouco ou quase nada consegue ajudar a solucionar. Ainda mais um Direito Penal que busca com um tipo penal específico e o simples aumento de pena prevenir um gigantesco comércio ilegal e paralelo de receptação há muito instaurado e estruturado e não raro tolerado pelos órgãos estatais de controle. O efeito que se percebe parece ser o contrário: o crime de receptação qualificada aumenta, há mais encarcerados e maior é o custo do Estado com o sistema penal.

É preciso, portanto, reconhecer que a criação do crime de receptação qualificada, com uma resposta punitiva de maior rigor, não teve o resultado que se devia esperar, pois não reduziu a delinquência que se encontra na origem da infração aqui examinada e que formam uma extensa e perigosa cadeia de crimes precedentes, como furto, roubo, estelionato, corrupção, peculato, além da sonegação fiscal e a lavagem de dinheiro.

Diante das incertezas e inseguranças geradas por um tipo penal mal construído é preciso dizer que a lei penal quando obscura e confusa arranha o princípio do direito penal democrático pois é fundamental que os cidadãos tenham uma lei penal que lhes garanta, em caso de descumprimento, uma sanção certa e previsível e não que dependa de construções interpretativas adaptáveis à resposta penal ao custo do ofuscamento de princípios constitucionais penais como o da legalidade, a máxima da proporcionalidade e o princípio reitor da dignidade da pessoa humana.

Sem a pretensão de esgotar o tema, mas com o objetivo de reabrir a discussão objeto desse estudo, pode-se afirmar, finalmente, que esse foi e permanece como o contexto de incerteza e de insegurança jurídica inaugurado pela Lei 9.426 de 24 de dezembro de 1996 que introduziu o §1° do artigo 180 no Código Penal brasileiro.


Considerações Finais

No Direito Penal romano, a conduta de adquirir ou receber coisa, objeto ou produto de ação criminosa, configuradora do atual crime de receptação, não conheceu sua autonomia tipológica, sendo punida como uma forma delituosa de furto. Há informação doutrinária de que o Digesto fazia referência a uma infração denominada receptatio. Mas, de um modo geral, os receptadores recebiam as mesmas penas aplicadas aos ladrões.

 A partir de 1940 (Código Penal atual), a receptação passou a ser tipificada como crime autônomo, com capítulo específico, no espaço do título reservado aos crimes contra o patrimônio. A pena mínima cominada de dois anos de reclusão, prevista para a receptação dolosa no texto promulgado, foi criticada por sua gravidade excessiva. Essa situação jurídica somente veio a ser alterada, em 1996, com a promulgação da Lei 9.426/96, que reduziu para um ano de reclusão o mínimo de pena prevista para essa modalidade típica.

Com a referida lei, novo tipo penal foi introduzido no texto do Código Penal (art. 180, § 1º), que recebeu o nomen juris de receptação qualificada, sancionada com penas de três a oito anos de reclusão, além da multa. Ao justificar essa maior severidade penal, o legislador argumentou que havia necessidade, indicada pela Política Criminal, de se punir, de forma mais efetiva e com maior rigor, a conduta da “receptação profissional”, causadora de “grave dano social”, eis que praticada no exercício da atividade comercial ou industrial. Para o legislador, a intensificação desse tipo de receptação praticada por comerciantes e industriais constituía fator preponderante na ampliação de furtos e roubos”.

Na descrição do novo tipo penal qualificado, foi utilizada a expressão deve saber, indicadora do dolo eventual, em vez do termo sabe, indicador do dolo direto, usado na descrição da conduta descrita no caput do artigo. Essa forma descritiva do tipo penal qualificado gerou séria polêmica, na doutrina e na jurisprudência, sobre a constitucionalidade da norma contida no §1º, do art. 180 do CP.

A nova norma incriminadora criou um tipo penal próprio, cujo sujeito ativo só pode ser quem atuar no exercício de atividade comercial ou industrial e, nessa condição profissional, receber, adquirir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa produto de crime. Além disso, a descrição típica é bem mais abrangente do que o tipo básico descrito no caput do art. 180, porque incrimina, também, qualquer desses dois profissionais que “montar, desmontar, vender ou expor à venda coisa que saber ser produto de crime”.

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A doutrina penal pesquisada e referenciada neste trabalho acadêmico mostra que está dividida quanto à constitucionalidade da norma contida no §1º, do artigo 180. Parte minoritária da doutrina sustenta a inconstitucionalidade da norma em exame, por ofensa aos princípios da culpabilidade e da individualização e da máxima da proporcionalidade da pena criminal. Em síntese, alegam que a conduta de quem atua “devendo saber” pratica conduta de menor desvalor ético-jurídico, que não pode ser punido com pena mais severa.

 A maior parte da fonte doutrinária pesquisada admite a constitucionalidade da redação e da pena contidas no referido parágrafo. Para essa corrente doutrinária, a conduta do receptador profissional é mais grave e apresenta, sim, maior desvalor ético-jurídico e, assim, fica justificada a pena mais rigorosa cominada à receptação qualificada.

Quanto à descrição típica do parágrafo, que utiliza a expressão “deve saber”, a corrente doutrinária majoritária entende que, por meio da interpretação declaratória e da interpretação extensiva, ambas válidas no âmbito do Direito Penal, chega-se ao entendimento de que a referida expressão abrange o termo “saber”, previsto no caput do artigo. Diante disso, a maioria dos doutrinadores defende a conformidade da norma contida no referido parágrafo primeiro do art. 180 com os princípios da individualização, da culpabilidade e da máxima da proporcionalidade da pena criminal e, em consequência, com a constituição federal.

No STF, as duas turmas da área criminal, após posição isolada em contrário, assumiram entendimento unânime favorável à constitucionalidade da norma incriminadora contida no §1° do artigo 180.

A mesma posição foi assumida pelo STJ e por tribunais estaduais e regionais federais, que têm decidido, reiteradamente, pela constitucionalidade da referida norma incriminadora.

Finalmente é possível concluir que a norma incriminadora de maior severidade, que criou o tipo penal com o nomen juris de receptação qualificada descrito no § 1º do art. 180 do CP não ofende aos princípios da individualização e da culpabilidade e nem a máxima da proporcionalidade da pena criminal. Trata-se portanto de norma que passou pelo devido processo hermenêutico da doutrina penal majoritária e judicial sem divergência de voto para receber o certificado de validade segundo os princípios constitucionais penais. 

Dessa forma, o comerciante ou industrial que praticar a conduta descrita no referido dispositivo incriminador estará, certamente, sujeito à sanção de maior rigor penal ali cominada.

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Sobre os autores
Lenice Kelner

Doutoranda em Direito pela Unisinos e Professora de Direito Penal da Furb financiadora dessa pesquisa (com fomento da CAPES AUXPE n. 0459/2015).

Rodrigo José Leal

Professor de Direito Penal da Universidade Regional de Blumenau - FURB e na Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Doutor em Direito pela Universidade de Alicante/Espanha. Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Fundação Universidade Regional de Blumenau - FURB. Graduado pela Furb.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KELNER, Lenice ; LEAL, Rodrigo José. Análise crítica do crime de receptação qualificada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4596, 31 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46185. Acesso em: 24 abr. 2024.

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