1 DA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO
O estudo da Economia, desde sempre, busca uma otimização no uso de recursos. Entretanto, no período neoconstitucional pelo qual transita o direito pátrio, o estudo da intervenção do Estado na Economia deve necessariamente considerar a necessidade de proteção e efetivação dos direitos fundamentais.
Para Mankiw, a “Economia é o estudo de como a sociedade administra os seus recursos escassos” (2009, p. 4).
Em um Estado Democrático, a ordem econômica deve ter por objetivo viabilizar o melhor aproveitamento possível dos recursos escassos. O conceito de melhor aproveitamento gira em torno de um aproveitamento que busque favorecer, de forma equânime porém segundo os ditames da justiça social (conforme o trabalho empregado por cada indivíduo), ao à maior parcela da população possível.
Entretanto, conforme explanado supra, o sistema normativo brasileiro como um todo, notadamente as normas que trazem direitos fundamentais sociais, como o direito fundamental ao trabalho, sofrem de um gritante estado de inefetividade.
Isso se dá porque a afirmação meramente teórica ou positivação formal dos direitos não é, em hipótese alguma, suficiente à efetividade da norma jurídica e disciplina social.
A costumeira luta que se tem no Brasil por normas que afirmem, genericamente, direitos, não traz nenhuma consequência prática. Isso porque a norma jurídica deve ser, antes de jurídica, uma norma social. Aquelas normas positivadas em nossa exageradamente extensa legislação, bem como nosso desnecessariamente amplo rol de direitos fundamentais1 positivados ao longo da Constituição, em boa parte não tem qualquer repercussão de ordem prática.
Não se está a afirmar que a positivação é desnecessária; a positivação é um processo de aferição da legitimidade democrática de determinada norma. Entretanto, as normas que trazem direitos fundamentais, enquanto cláusulas gerais, são obsoletas sem sua necessária densificação.
Portanto, de nada serve a positivação constitucional do direito social à moradia, e. g., por meio da Emenda Constitucional nº 26/2000, se não são dadas aos indivíduos condições econômicas de exercer um trabalho decente e com ele adquirir sua moradia.
As normas, seguindo a denominada Escada Ponteana, possuem quatro degraus ou plano no mundo formal e fático. Elas devem ser, sucessivamente, existentes, válidas, eficazes juridicamente e efetivas (eficazes socialmente).
Assim, se a EC 26 passou pelo devido processo legislativo, sendo aprovada conforme os ditames constitucionais, ela se encontra existente e válida. Passado o período de vacatio legis, esta se encontra eficaz juridicamente (apta a produzir efeitos). Entretanto, esse percurso por si só não implica dizer que o direito social à moradia esteja concretizado. Isso porque falta à norma a sua efetividade, o que se chama também de eficácia social (se produz efeitos concretamente).
Foi neste sentido que os norte-americanos Ronald Coase e Richard Posner desenvolveram o estudo da análise econômica do Direito.
1.1 HISTÓRICO E CONCEITO
Viu-se, no direito norte-americano, a necessidade de trabalhar o Direito por meio de conceitos econômicos. Isso significou reconhecer que o jurídico não existe por si só, e que, para que se concretize, deve transcender o universo do dever-ser e atingir o universo do que é. Neste intuito, Ronald Coase2 e Richard Posner3 buscaram organizar um estudo do Direito segundo um prisma econômico, com o desiderato de ampliar o alcance das normas jurídicas, viabilizando sua real efetividade.
Por este sentido, afirma-se que a Análise Econômica do Direito se trata de um estudo voltado não para a eficiência na produção de bens da vida e distribuição de recursos escassos (macroeconomia), mas, do contrário busca “analisar, de um ponto de vista econômico, a eficiência das regras jurídicas que regulam assuntos não visados diretamente pela Economia” (GONÇALVES, p. 129-130). Para AGUILLAR, “o Law and Economics procura demonstrar como o Direito pode ser mais eficiente na sua regulaão social e econômica” (2014, p. 42).
Assim, busca-se soluções econômicas para problemas jurídicos, bem como analisar, sem qualquer juízo ético, se atos legislativos e judiciais são realmente úteis para os fins a quem se propõem. É o que ocorre, por exemplo, no âmbito do comércio de entorpecentes, no qual a restrição criminal acaba por aumentar a escassez dos produtos, criando poderosos oligopólios que o Estado sequer consegue conter, chamados por muitos de um poder paralelo. Surge o poderoso crime organizado voltado para o tráfico de drogas, que acaba por financiar outras práticas criminosas, criando milícias e fomentando o tráfico de armamentos.
Em sua obra, POSNER apresenta o seguinte exemplo:
Embora o economista não possa dizer à sociedade se ela deveria buscar limitar o furto, o economista pode mostrar que seria ineficiente permitir o furto ilimitado e pode assim esclarecer um conflito de valor ao mostrar quanto de um valor – eficiência – deve ser sacrificado para se alcançar outro. Ou, dando como pressuposto um objetivo de limitar o furto, o economista pode ser capaz de demonstrar que os meios pelos quais a sociedade tem tentado alcançar o objetivo são ineficientes – que a sociedade poderia obter mais prevenção, a custo menor, usando outros métodos. Se os métodos mais eficientes não prejudicarem quaisquer outros valores, eles seriam socialmente desejáveis (1998, p. 26-27).
Assim, vê-se que “tornar os princípios de direito preponderantes sobre qualquer decisão também resultará, na maioria das vezes, em uma solução ineficiente” (MASSO, 2015, p. 234). O jurista ou legislador, ao aplicar ou criar determinada norma, pode estar trazendo mais danos do que solução ao bem jurídico que tenta proteger. Portanto, em busca de uma compreensão realística da efetividade do Direito, foi trazido para o âmbito jurídico a Teoria dos Jogos.
A Teoria dos Jogos permite, através de uma análise matemática, prever o comportamento dos demais agentes econômicos e otimizar os resultados, razão pela qual o John Forbes Nash Jr., um de seus expoentes, foi premiado com o prêmio Nobel, no ano de 1994. O objeto de análise, na Teoria dos Jogos, é o “agir humano estratégico” (CARVALHO, 2014, p. 3).
Explicam PINHEIRO e SADDI que, “pela Teoria dos Jogos, os comportamentos não são ditados, mas sim influenciados pela norma legal, visto que, em certas circunstâncias, pode ser racional ir contra ela” (2005, p. 157-158).
Faz-se necessário, portanto, o uso de instrumentos econômicos a fim de fomentar a iniciativa privada no caminho dos valores erigidos pela ordem constitucional, como conclui AGUILLAR (2014, p. 2):
Por meio das normas de Direito Econômico, o Estado introduz variáveis compulsórias ou facultativas ao cálculo do agente econômico, destinadas a influenciar sua tomada de decisões no exercício de sua liberdade de empreender.
Não adianta tentar coibir a atividade privada tão somente por meio da persecução penal, que demanda custos infindos mas sem retorno e falência financeira do Estado. Troca-se, corriqueiramente e de forma banalizada o próprio princípio da ultima ratio por investidas ineficazes e dispendiosas, conforme demonstra HASSEMER (1993, p. 24):
O venerável princípio da subsidiariedade ou da ultima ratio do Direito Penal é simplesmente cancelado para dar lugar a um Direito Penal visto com sola ratio ou prima ratio na solução dos conflitos: a resposta surge para as pessoas responsáveis por estas áreas cada vez mais frequentemente como a primeira, se não a única saída para controlar os problemas.
A busca de enfrentamento de condutas pelo viés meramente criminal pressupõe que o Estado teria forças e recursos para impedir ou refrear quaisquer condutas contrárias à norma, mesmo que por meio de uma atividade positiva – a persecução penal – e dispendiosa.
Entretanto, a criminalização de condutas por vezes se mostra ineficaz, notadamente na seara econômica, pela verdade inafastável de que não é absoluto e não possui meios de punir criminalmente cada indivíduo que infringir normas legais. Por isso, Fernando Herren Aguillar faz uma observação incômoda, mas extremamente pertinente:
No jogo econômico, o Estado é um jogador a mais. Normalmente, se reveste de prerrogativas de que os demais jogadores não dispõem. Mas isso não significa que o Estado seja o jogador mais forte, nem que seja capaz de obter os resultados que almeja. (2014, p. 2)
Na realidade, vê-se que há agentes com poderio econômico suficiente inclusive para ingerências nas atividades estatais, no campo legislativo, judiciário e administrativo, conforme exposto na matéria “A sonegação financia a corrupção”, no sítio intitulado Quanto Custa o Brasil:
E não estamos falando aqui de sacoleiros que arriscam todas as suas economias atravessando a fronteira do Paraguai ou de camelôs com seus CDs piratas, mas de gente muito poderosa que comanda uma economia subterrânea avaliada em 10% do PIB nacional. É essa minoria endinheirada e muito bem organizada que financia caixa dois de campanhas políticas, mensalões e todo tipo de ilegalidade. São criminosos travestidos de empresários, políticos corruptos, pseudoreligiosos e bandidos infiltrados na gestão pública.
Não raro vê-se o próprio aparato estatal dificultando, quando não inviabilizando a entrada de novos concorrentes em determinados ramos, por meio de uma inultrapassável teia de atos normativos, exigências e desordens administrativas.
Deve-se, portanto, priorizar uma análise econômica do Direito. As atividades econômicas são e sempre serão motivadas pelo lucro, através de um agir estratégico.
Neste sentido, cabe ao Estado intervir na Economia para que, sem que gere mais prejuízos ao mercado, torne lucrativas as práticas consideradas boas e inférteis aquelas consideradas más, gerando uma confluência entre lucro almejado pelo agente econômico e os interesses coletivos. Dessa forma, o objetivo seria viabilizar a liberdade econômica ao tempo em que se extirpa do meio social as práticas de repercussão negativa ou criminosa.
É imprescindível a compreensão do Direito como um fenômeno de repercussão econômica, de maneira que o Estado venha a atuar no sentido de desincentivar práticas prejudiciais por meio de ferramentas econômicas de incentivo e fomento.
1.2 O PRISMA ECONÔMICO DA EXPLORAÇÃO FORÇADA DO TRABALHADOR
A exploração forçada de trabalhadores nas diversas regiões do planeta se dá tão somente por um motivo: redução dos de produção e aumento do lucro.
Com essa constatação, o Relatório Global da OIT de 2001 concluiu que o “trabalho forçado é expressão jurídica, mas também um fenômeno econômico” (p. 21). Em 2014, a publicação Profits and Poverty: The Economics of Forced Labour, da OIT, trouxe às claras diversas informações relativas à realidade da exploração de mão de obra forçada pelo mundo.
A publicação traz a estimativa de que, atualmente, cerca de 21 milhões de pessoas são vítimas de trabalho forçado. Anualmente, o trabalho forçado gera uma renda ilícita de cerca de US$150.2 bilhões pelo mundo. A maior parte da renda é obtida em países asiáticos, em um total de US$51.2 bilhões, pois é onde se concentra de longe a maior quantidade de indivíduos submetidos a trabalhos forçados – cerca de 11.7 milhões, 56% do total global (p. 7-13)
Apesar disso, a Ásia é a segunda região em que menos se aufere lucro por vítima, cerca de 5 dólares por indivíduo explorado. A África se encontra à frente da Ásia, com o valor de apenas US$3,90 por vítima (p. 12-15). A estatística expõe a desvalorização do trabalho e da vida humana.
Estima-se que há no mundo cerca de 14.2 milhões de pessoas submetidas a trabalho forçado no âmbito privado. Destas, 7.9 milhões se encontra na região Ásia-Pacífico (p. 27).
Um dos setores de maior ocorrência de trabalho forçado no mundo é o setor produtivo no qual ocorre intensamente a prática de terceirização da produção para fábricas em países com menor fiscalização quanto às condições de trabalho (p. 19). O setor mantém cerca de 7.17 milhões de pessoas sob trabalho forçado. Destas, 4.97 milhões estão na região Ásia-Pacífico (p. 27).
Assim, 55,6% das vítimas de trabalho forçado no meio privado estão na região Ásia-Pacífico, e 50,4% estão no setor produtivo. Vê-se, portanto, que 35% das vítimas de trabalho forçado no âmbito privado estão no setor de manufatura da região Ásia-Pacífico.
Coincidentemente, o relatório International Trade Statistics, elaborado pela Organização Mundial do Comércio – OMC em 2014, mostra a República da China, que se situa na região Ásia-Pacífico, como maior exportadora de produtos do mundo – US$2.209 trilhões –, em números muito superiores ao segundo colocado – EUA, com US$1.580 trilhões (p. 28). A República da China é a líder de exportação no mercado têxtil, havendo movimentado cerca de US$284 bilhões na área em 2013 (p. 60).
Os dados demonstram que os setores com maior índice de exportação da República da China são os mesmos, e no mesmo local, que geram a maior renda ilícita do mundo e que mantêm a maior quantidade de vítimas do trabalho forçado do planeta.
Ainda, a República da China se coloca, na atualidade, como o maior parceiro comercial do Brasil (MOORE, 2009), existindo entre ambos diversos acordos de cooperação, facilitação e liberalização do comércio.
Conforme os dados disponibilizados no portal do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior – MDIC sobre o ano de 2014, a República da China importa majoritariamente, do Brasil, matéria-prima, em grande parte produtos do reino vegetal (US$16.4 bilhões), produtos minerais (US$12.7 bilhões) e derivados de madeira (US$1.2 bilhões). O Brasil, por sua vez, importa da República da China majoritariamente produtos industrializados, em grande parte matérias têxteis (US$2.8 bilhões), produtos da indústria química e conexas (US$2.9 bilhões), máquinas e aparelhos (US$13.5 bilhões) e metais (2.5 bilhões).
Há, portanto, fortes indícios de que o Brasil, por meio de sua atuação econômica no cenário global, venha contribuindo em larguíssima escala para a exploração de seres humanos em condições de trabalho escravo ou forçado.
2 INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ECONOMIA E POLÍTICA EXTERNA
2.1 CLASSIFICAÇÃO EPISTÊMICA
A regulação estatal da matéria econômica, objeto de estudo do Direito Econômico, inevitavelmente afeta outros Estados. Isso fica evidente ao se observar o impacto que restrições ou aberturas na legislação aduaneira tem na economia de países que negociam com o Brasil. Em parte por este motivo faz-se necessário o estabelecimento de regras internas entre as diferentes economias, por meio de tratados e instrumentos de cooperação internacional.
Assim é que se faz, na doutrina, a bifurcação e distinção entre o Direito Econômico Internacional e o Direito Internacional Econômico. Cláudio Finkelstein (2007, p. 51-55) afirma que o Direito Econômico Internacional seria ramo do próprio Direito Econômico, que estaria expresso na atividade legiferante interna que repercute no mercado global (e. g., fluxo de moedas, regulamentação do comércio exterior). O Direito Internacional Econômico, por sua vez, seria ramo do Direito Internacional surgido em Bretton Woods (1944), com o escopo de regular a Ordem Econômica Internacional (e. g., integração regional, desenvolvimento).
Neste sentido, ao tratar-se da intervenção econômica interna do Estado e políticas aduaneiras, estar-se a tratar de Direito Econômico Internacional.
2.2 INTERVENCIONISMO ESTATAL E LIBERDADE
Parte da doutrina coloca como início da evolução histórica do pensamento econômico as revoluções liberais e o fim do Estado Absolutista (FIGUEIREDO, 2014, p. 63). FORGIONI, por sua vez, aponta manifestações de regulação estatal da economia desde a Antiguidade Grega (2014, p. 37). Afirma que “há indicações seguras de que a atividade dos agentes econômicos com certo ‘poder de mercado’ era regulamentada com escopo de proteger a população contra manipulações de preços e escassez artificial dos produtos” (2014, p. 39).
Há também registros da prática do monopólio estatal durante a Antiguidade Romana, assim como da concessão de monopólios a particulares, que foi vedada pelo Édito de Zenão, instituído para regulamentar acordos entre agentes (FORGIONI, 2014, p. 40).
A Idade Média, por sua vez, ficou conhecida como estopim do espírito empreendedor, e as manifestações se deram, sobretudo, na Itália, em cidades como Gênova, Pisa, Florença e Veneza (MAMEDE, 2015, p. 16), com o Renascimento Mercantil (RAMOS, 2014, p. 3). Ao tempo, surgiram as famosas Corporações de Ofício, associações de agentes econômicos.
Em 1624, em meio ao ideário mercantilista, foi aprovado pelo Parlamento inglês o Statute of Monopolies, regulamentado os monopólios lícitos e ilícitos e impedindo sua concessão pelo Rei (FORGIONI, 2014, p. 52-53).
Durante o período que compreendeu desde a Antiguidade Clássica (séc. V a. C.) até o Mercantilismo (séc. XVI), houve a disciplina econômica por questões meramente práticas, ou, como apontado por FORGIONI, para “eliminar distorções tópicas” (2014, p. 37).
Com o declínio do Absolutismo, houve a derrota da figura da majestade para que se erigisse o Estado Liberal, trazendo diversos ideais e limitações ao Estado que o forçaram a se abster de intervir na esfera de direitos de seus cidadãos sem justo motivo (FIGUEIREDO, 2014, p. 63).
A liberdade do indivíduo – Freiheit, como concebida pelo pensamento liberal modernista de Immanuel Kant – passa a ser um dos mais fortes argumentos no ambiente pós-revolucionário, e por ela muitos sacrificaram diversos outros valores, inclusive o da vida. É considerada a “pedra angular de todo o edifício do sistema kantiano” (LEITE, 2012, p. 79), sendo inclusive o fundamento da ideia do imperativo categórico (Kategorischer Imperativ, KANT, 1997, p. 28).
Foi neste sentido que se afirmou que a doutrina do prussiano Immanuel Kant teria servido de base para o liberalismo econômico. Para BONAVIDES, nem mesmo os romanos “tiveram noção tão estreita dos fins que devem caber ao Estado”, uma vez que cabe a este, segundo o prussiano, o encargo exclusivo de proteção jurídica dos princípios que a razão, por meio de um imperativo categórico, força-nos a resguardar (2013, p. 114). Daí a ampliação da filosofia ética iluminista para o discurso econômico liberalista.
Como uma das maiores formas de expressão de liberdade, em março de 1791 promulgou-se na França o Decrét d’Allarde, que permitia o exercício da empresa e de atividades econômicas sem a exigência de que pertencessem a uma corporação de ofício, garantindo a todos a liberdade de comércio e de indústria. No mesmo sentido, em junho de 1791, a Lei Le Chapelier proibiu as referidas corporações. (FORGIONI, 2014, p. 57).
Importante colocação fez GRAU, ao ressaltar que o princípio da liberdade de iniciativa econômica, “desde o Decreto d’Allarde, jamais foi consignado em termos absolutos” (2008, item 89).
Neste estágio, o modelo econômico liberal passa a ser adotado porque entendido como um sistema de produção ótimo (FORGIONI, 2014, p. 37). Em louvor ao modelo, no ano de 1780, Del Filangieri, segundo referido por Franceschelli (1960, p. 289), afirmou:
Os melhores regulamentos do mundo, as melhores leis, as melhores determinações jamais serão capazes de melhorar os trabalhos feitos pelas mãos dos homens sem a emulação, sem a concorrência. À medida em que a concorrência é maior, mais o produtor procura melhorar sua capacidade produtiva para superar aquela do concorrente.
O modelo liberal passou a demonstrar falhas, porquanto “pressupunha uma certa igualdade e um ambiente concorrencialmente perfeito”, o que resultou na concentração dos “fatores de produção e riquezas nas mãos de poucos” e “acirrou as disputas por mercados econômicos, que culminou na 1ª Guerra Mundial, desdobrando-se na 2ª Grande Guerra” (FIGUEIREDO, 2014, p. 64).
Neste sentido, vê-se que a insuficiência de regramentos para o exercício da liberdade econômica teve para esta efeito predatório, vez que os agentes econômicos, enquanto aumentam sua força, acabam no ímpeto de reduzir a concorrência para aumentar o lucro e reduzir os gastos. Aumenta-se a marginalização social e o contraste econômico e ocorrem as crises do então intitulado Capitalismo (alcunha crítica do liberalismo criada por opositores), que surgem “na forma de problemas econômicos de direção não resolvidos” (HABERMAS, 1980, p 39).
Adentra-se, agora, em uma terceira fase de disciplina da ordem econômica, com o Estado Intervencionista, que se subdividiu no Estado do Bem-Estar Social (Welfare State) e no Estado Socialista. Aponta Jürgen Habermas que “a atividade governamental agora busca a meta declarada de condução do sistema para evitar crises” (1980, p. 71). A normatização antitruste, para Paula A. Forgioni, passa a ser utilizada como instrumento de complementação de políticas públicas (2014, p. 76).
Conforme apontado por Habermas, em sua obra “A Crise de Legitimação no Capitalismo Tardio” (1980, p. 69), surgiu a necessidade de que o Estado protegesse o mercado do próprio mercado e de seus efeitos autodestrutivos, dentre os quais a prática de preços predatórios, a formação de grupos econômicos e acordos de anticoncorrenciais.
Explanando os modelos de Estado Intervencionista, destaca Leonardo Vizeu Figueiredo (2014, p. 65) que:
O modelo socialista caracterizou-se pela absorção total da atividade econômica por parte do Estado. Por sua vez, no modelo social, a intervenção na atividade econômica apresenta-se mais moderada, objetivando garantir que sejam efetivadas políticas de caráter assistencialista na sociedade, para prover os notadamente hipossuficientes em suas necessidades básicas.
Assim, “a autonomia de vontade das partes na atividade econômica é mitigada pelo direcionismo estatal” (FIGUEIREDO, 2014, p. 64). O modelo de intervenção social foi adotado pelo texto inicial da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988.
Ambos os modelos (socialista e social), entretanto, mostraram-se extremamente pesados para os cofres públicos, seja pelo custo que geravam, seja pelo fato de haver repassado para o Estado atribuições que este, por sua natureza, não poderia desenvolver com competência. Houve, assim, um descrédito geral na máquina estatal, que atingia níveis antes impensáveis de ineficiência e acabava por ser utilizada como instrumento para que grandes agentes econômicos – mais fortes do que o Estado – se mantivessem isentos de tributação e concorrência.
Basicamente, o Estado, por sua natureza, era incapaz de manejar suas inúmeras atribuições econômicas, e os recursos e o trabalho da Administração Pública eram despendidos quase que por completo em suas tentativas de entrada na seara econômica, restando escassos para as atividades essenciais. Sem atividade financeira estatal saudável não há direitos.
Os próprios direitos fundamentais de defesa (BRANCO; MENDES, 2014, p. 157), ou de primeira geração, desde já exigiram recursos públicos para sua efetivação, pois para estes já se faz necessária ao menos uma boa estruturação do ente estatal. Em outras palavras, “até mesmo os direitos liberais clássicos de primeira dimensão (...) dependiam do dispêndio de recursos públicos para serem garantidos” (MUNHÓS, 2014, p.).
No magistério de Casalta Nabais (2005, p. 21):
[...] os direitos, todos os direitos, porque não são dádiva divina nem frutos da natureza, porque não são auto-realizáveis nem podem ser realisticamente protegidos num estado falido ou incapacitado, implicam a cooperação social e a responsabilidade individual. Daí decorre que a melhor abordagem para os direitos seja vê-los como liberdades privadas com custos públicos.
Por consequente lógico, menos ainda há que se falar em direitos fundamentais de prestação sem recursos financeiros, vez que estes se efetivam, por natureza, com o oferecimento de uma utilidade concreta (BRANCO; MENDES, 2014, p. 161).
O Estado Intervencionista “se demonstrou ineficiente, paternalista e incompetente, não se revelando capaz de atender com presteza e eficiência à demanda dos cidadãos, sendo, ainda, responsável por vultosos endividamentos e déficits nas contas públicas” (FIGUEIREDO, 2014, p. 65). Regis Fernandes de Oliveira (2011, p. 207) faz uma síntese extremamente pertinente acerca desse processo:
De liberal-burguês, o Estado passou a dominador total da economia, antípoda do que lhe determinou o Texto Maior. (...) Em manifesto desvio de poder, agigantou-se o Estado, de forma a ocupar espaço que não lhe cabia.
Com tais distorções, criaram-se estatais sem o menor controle, todas destinadas ao processo produtivo, mas a má gestão, a falta de meios eficazes de controle, a notícia de dotações orçamentárias globais, levaram ao descompasso completo entre os objetivos do Estado e à interferência indevida na economia. Passaram as empresas do Estado a servir de dóceis instrumentos na mão de políticos inábeis, gananciosos e irresponsáveis, de sorte a transformarem as estatais em quintais de cooperação e desvio de verbas públicas. (...)
Com tal perfil, era necessária injeção de recursos do Estado, que a elas destinava parte substancial das receitas públicas, como subsídio, fazendo sangrar os cofres públicos. (...) Excrescente a tarefa do Estado, com indevida interferência no domínio econômico, em detrimento da prestação efetiva de serviços públicos. Estes, de seu turno, não tinham verbas suficientes, porque eram desviadas para cobrir o déficit das estatais.
Neste sentido surge o Estado Regulador, após o advento do neoliberalismo, com o intuito de devolver à esfera privada diversas funções que a ela sempre coube, em fuga do superdimensionamento (e sucateamento) do Estado. Busca-se agora, portanto, resguardar o Estado para a execução dos serviços essenciais e fiscalização própria e do setor privado.
Conforme ensina Leonardo Vizeu Figueiredo, esse novo estágio de modelo econômico “tem por fim garantir equilíbrio nas contas públicas, sem, todavia, desviar o Poder Público da contextualização social, garantindo-se, ainda, que este possa focar esforços nas atividades coletivas e essenciais” (2014, p. 66).
Vê-se, portanto, que esses diferentes estágios não ficaram imunes ao advento do pós-positivismo e neoconstitucionalismo, mas, contrariamente, foram por eles fortemente influenciados. O constitucionalismo contemporâneo (BULOS, 2011, p. 79-80) ou neoconstitucionalismo (ÁVILA, 2009, p. 1) se encontra fundamentado sobre a dignidade humana.
Com carga valorativa de força inigualável, o princípio da dignidade humana arrastou consigo várias outras normas, doutrinas e postulados, o que levou ao caminho sem volta de direcionamento do sistema jurídico para sua concretização.
Nesta linha de pensamento, afirmou Kant que o direito seria exatamente “o conjunto de condições sob as quais o arbítrio de cada um pode conciliar-se com o arbítrio dos demais segundo uma lei universal da liberdade” (LEITE, 2012, p. 94). Ou seja, o Direito trataria de um conjunto normativo que busca impedir que uma liberdade reprima outra liberdade, harmonizando-as.
Considerando que a liberdade de iniciativa e concorrencial são manifestação da liberdade e que o Direito Econômico é ramo do Direito, pode-se interpretar a conclusão kantiana, na seara econômica, da seguinte forma: o Direito Econômico é o conjunto de condições sob as quais a liberdade econômica de cada um pode conciliar-se com a liberdade econômica dos demais com o principal objetivo de preservar universalmente a liberdade.
Neste diapasão, mostra-se a figura do Estado Regulador intrinsecamente ligada à proteção dos direitos mínimos e indisponíveis dos indivíduos.
2.3 MODALIDADES DE INTERVENÇÃO
Originalmente, a Economia não é área de atuação estatal, razão pela qual sua intervenção neste âmbito deve se dar de maneira excepcionalíssima, na forma regulada pela Norma Fundamental.
A Constituição de 1988 trouxe, em dois artigos consecutivos, a maneira pela qual o Estado brasileiro estaria autorizado a intervir na Economia:
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.
Há classificação, no direito comparado, que separa a intervenção do Estado na Economia em direta e indireta. O Estado interviria diretamente na economia quando explora por si próprio atividades econômicas, entrando em campo que seria, em tese, reservado ao particular (FIGUEIREDO, 2014, p. 66), como se vê no art. 173.
A intervenção direta, portanto, fica constitucionalmente reservada para os casos em que for necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo. Pode se dar na forma de participação (criação de empresas estatais para exploração de determinada atividade em regime de concorrência), absorção (criação de estatais para exploração de determinada atividade em regime de monopólio) ou mediante parceria com particulares, como no caso das parcerias público-privadas regidas pela Lei nº 11.079/2004.
Ressalte-se que há autores que consideram a prestação de serviços públicos uma forma de intervenção direta do Estado na Economia, como MASSO (2015, p. 85).
A intervenção indireta, por sua vez, ocorreria mediante a atuação prevista no art. 174 da Constituição, quando o Estado exerce as funções de fiscalização, incentivo e planejamento da atividade econômica, enquanto agente normativo e regulador. Pode se dar na forma de regulação, normatização, incentivo, fiscalização e planejamento (MASSO, 2015, p. 84).
Conforme critérios desenvolvidos por GRAU (2008, p. 91), a intervenção indireta se dá por meio da direção ou indução.
A direção é a modalidade de intervenção pela qual o Estado faz uso de instrumentos normativos criados para pressionar os agentes econômicos, como leis ou de atos normativos. Nesse momento, atua como regulador e normatizador da Economia, bem como, consequentemente, fiscalizador.
A indução, por sua vez, é a modalidade de intervenção estatal pela qual se incentiva ou reprime determinadas práticas ou atividades econômicas mediante concessão de benefícios fiscais ou facilitação da circulação de bens e serviços oriundos de condutas desejadas pela sociedade. Neste ramo figura a tributação, enquanto atuação extrafiscal do Estado.
2.4 INTERVENÇÃO INDIRETA E DESESTÍMULO AOS MODOS DE PRODUÇÃO DESUMANOS
É facultado ao Estado intervir na Economia no intuito de estimular ou desestimular determinadas condutas (FIGUEIREDO, 2014, p. 66).
Serão exibidas, a seguir, duas maneiras de intervenção, uma por direção – legislação antidumping – e outra por indução – o uso da extrafiscalidade na tributação, bem como a maneira pela qual se sugere que sejam utilizadas como instrumento de combate à exploração forçada de trabalhadores em âmbito global.
2.4.1 NORMAS ANTIDUMPING (DECRETO Nº 8.058/2013)
Com o objetivo de proteger o mercado interno de investidas econômicas abusivas, faz-se necessária a criação de instrumentos hábeis a repelir e neutralizar práticas anticoncorrenciais e prejudiciais, em geral, à Economia nacional. É o que ocorre com o dumping, que constitui uma espécie de utilização de preços abusivos no intuito de viabilizar a criação de monopólios.
Nos termos do art. 7º do Decreto nº 8.058/2013 “considera-se prática de dumping a introdução de um produto no mercado doméstico brasileiro, inclusive sob as modalidades de drawback, a um preço de exportação inferior ao seu valor normal”. O valor normal, por sua vez, seria “o preço do produto similar, em operações comerciais normais, destinado ao consumo no mercado interno do país exportado” (art. 8º).
A conduta de imposição de preços predatórios, internamente, é qualificada pelo art. 36, §3º, inciso XV, da Lei 12.529/2011 como infração à ordem econômica quando injustificada (FORGIONI, 2014, p. 290).
O dumping social, por sua vez, trata da mesma imposição de preços abaixo do custo, contudo, por meio da exploração de mão de obra em condições de trabalho prejudiciais, por vezes mediante manutenção de seres humanos em regime de escravidão. Neste sentido, a exploração da mão de obra escrava ou forçada é uma forma de obter redução de custos e derrubar a concorrência.
Há previsão, no Brasil, de proteção do mercado interno mediante aplicação, pela Câmara de Comércio Exterior – CAMEX, de sanções pecuniárias e restritivas de direitos aos importadores flagrados em práticas de dumping, especialmente por meio da cobrança do chamado “direito antidumping” (art. 78, Decreto nº 8.058/2013).
Neste sentido, a cobrança do direito antidumping funciona automaticamente como repressão ao dumping social.
Contudo, há também os casos em que a mercadoria posta no comércio nacional não possui preço predatório, mas meramente inferior. Assim, deve-se fazer uso da ferramenta da tributação para, ainda assim, encarecê-los. O alvo da ação sugerida não seria tão somente proteger o mercado interno, mas também buscar podar a lucratividade de agentes com a produção situada em regiões de alta incidência de trabalho forçado.
2.4.2 TRIBUTAÇÃO COM FINS HUMANITÁRIOS, EXTRAFISCALIDADE E DISCRIMINAÇÃO EM RAZÃO DA PROCEDÊNCIA (ART. 195, §9º, CRFB)
A tributação foi, desde sempre, utilizada como forma de opressão. Uma ferramenta para manutenção de poder econômico por parte dos que dominavam como o uso da violência e tirania.
A queda do Estado Absolutista se deu, em boa parte, pela intensa carga tributária a que os soberanos submetiam o povo (PAULSEN, 2014, p. 16). Basta observar-se que a construção do suntuoso Château de Versailles, pelo e para a Corte Francesa, às custas do aumento da carga tributária, precedeu a Revolução Francesa. Ademais, conclui Leandro Paulsen que, “não raramente, a cobrança de tributo envolveu violência, constrangimentos, restrição a direitos” (2014, p. 15).
Assim é que diversos movimentos pela democracia tiveram como um dos pontos fundamentais a apropriação do poder de tributação pelo povo, resultando na consagração de documentos de libertação, como no surgimento do Fuero Juzgo, no século XII (TORRES, 2005, p. 403-404); a imposição da Magna Carta, de 1215, que exigia a cobrança de tributos fosse previamente autorizada por concílio; o Statutum de Tallagio non Concendendo (1296), que em seguida compôs o texto da célebre Petition of Rights (1628); a Constituição dos Estados Unidos da América (1789); e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789).
Com a conclusão dos movimentos liberais, observou-se, entretanto, a impossibilidade de se manter o Estado, bem como deste desempenhar suas funções e garantir a segurança e liberdade aos cidadãos, sem a cobrança de tributos. Vê-se a noção original da palavra: tributo, do latim tribuere ou tributum, mesmo radical de “tribo”, significa contribuir com a coletividade.
Pode-se ver, inicialmente, que no Estado de Direito a tributação é intrínseca à noção de democracia. Toda tributação antidemocrática, instituída fora dos parâmetros fixados pela Constituição, é inválida e deve evanescer.
Portanto, a tributação constitui instrumento do povo, razão pelo qual o crédito público constitui crédito do público (MOURA, 2015, p. 23-24), deixando a antiga face de instrumento de opressão e passando a ser meio de efetivação das políticas sociais (HOLMES; SUSTEIN, 1999, p. 44). Assim, “a tributação é uma condição inafastável para a garantia e efetivação tanto dos direitos individuais como dos sociais” (CARDOSO, 2014, p. 195), pois “não há direito sem estado, nem estado sem tributo” (PAULSEN, 2014, p. 19).
Então se pode concluir que, com as revoluções liberais, a tributação abriu espaço para os direitos fundamentais negativos (liberdade, propriedade). Com o crescimento do Estado Social, assumiu o papel de fonte de políticas públicas, para efetivação dos direitos fundamentais positivos. Com o advento da pós-modernidade e do neoliberalismo, deve ser utilizada pelo Estado no sentido de não apenas proporcionar tal efetivação de forma direta, mas fomentar práticas que conduzam à paz e harmonia sociais.
A tributação possui uma forte e inevitável repercussão no desenvolvimento das atividades econômicas. Ela tem o condão de superdimensionar a exploração de determinadas atividades, tornando-as sobremaneira lucrativas, ou sobrecarregar a renda e o lucro auferidos na atividade ao ponto de torná-las inviáveis. Há poucas formas tão eficientes de sufocar um comércio quanto a tributação.
Para o Tribunal Constitucional Federal alemão, “também os impostos deverão ser considerados como um instrumento de direção e controle da economia” (Bundesverfassungsgericht, apud TAVARES, 2006, p. 340). Portanto, “é preciso admitir que se mostra mais do que evidente a importância do Direito Tributário no âmbito da denominada Constituição econômica” (TAVARES, 2006, p. 340).
Mostrou-se evidente tal compreensão, e. g., quando a União, por meio do Decreto-lei nº 1.376/1974, instituiu o Fundo de Investimentos Setoriais – FISET, com o escopo de incentivar o desenvolvimento de projetos de reflorestamento, ocasião em que houve um crescimento exponencial de empresas exercentes da atividade. Tratava-se de estímulos concedidos aos contribuintes no plano da tributação, por meio do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza auferidos por pessoas jurídicas – IRPJ.
Neste sentido, é lícito se afirmar que a tributação tem um impacto tremendo nas atividades econômicas. Não é outra a conclusão de MOURA:
Além de consolidar, na seara tributária, o princípio da igualdade, a execução fiscal também densifica, nesta mesma seara, o princípio da livre concorrência. A carga tributária no Brasil é reconhecidamente alta. Deixar de recolher os tributos devidos configura inegável abuso do poder econômico tendente à dominação do mercado, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros, fatos que à lei cabe reprimir (2015, p. 26).
Dessa forma, a tributação deve ser efetiva e orientada no sentido de promoção dos direitos fundamentais, como toda atividade estatal em meio democrático, conforme leciona SANTOS:
Outra forma de promover a efetivação dos direitos sociais, principalmente o direito ao trabalho, seria por intermédio do fomento tributário, algo que no Brasil a atuação estatal vem sendo insuficiente para a implementação do intento. (…) Outro aspecto também importante é a efetivação fiscalização da arrecadação tributária, que deve ser mais ampla. (2008, p. 35).
Portanto, entra em cena uma função da tributação diversa da meramente arrecadatória, na medida em que o Estado por se utilizar da tributação para incentivar ou desincentivar práticas conforme os objetivos da sociedade. Nos dizeres de MARTINS e CARVALHO:
Vezes sem conta a compostura da legislação de um tributo vem pontilhada de inequívocas providências no sentido de prestigiar certas situações, tidas como social, política ou economicamente valiosas, às quais o legislador dispensas tratamento mais confortável ou menos gravoso. A essa forma de manejar os elementos jurídicos usados na configuração dos tributos, perseguindo objetivos alheios aos meramente arrecadatórios, dá-se o nome de 'extrafiscalidade' (2012, p. 36-37).
Assim, a extrafiscalidade ocorre com a seletividade no Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI (art. 153, §3º, I, CRFB) e no Imposto sobre a Circulação de Mercadores e Serviços – ICMS (art. 155, §2º, III, CRFB); a progressividade de alíquotas no IR (art. 153, §4º, I, CRFB) e no Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana – IPTU (art. 156, §1º, CRFB); a possibilidade de alteração das alíquotas do Imposto sobre a Importação – II, Imposto sobre a Exportação – IE, IPI e Imposto sobre Operações Financeiras – IOF por ato do Poder Executivo.
A Lei nº 8.212/1991, por sua vez, prevê o que foi chamado de Segurado de Acidente do Trabalho – SAT ou Risco de Acidente do Trabalho – RAT, uma “parte variável da contribuição das empresas sobre a remuneração dos empregados e avulsos” (PAULSEN, 2014, p. 149). Tem sua arredação destinada para o financiamento da aposentadoria especial prevista nos arts. 57 e 58 da Lei nº 8.213/1991, e dos benefícios concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho.
O adicional figura como um forte exemplo de uso da extrafiscalidade tributária para promoção dos direitos dos trabalhadores, porquanto sua alíquota é variável em razão do risco oferecido pela atividade desenvolvida pela empresa. Incide sobre o total das remunerações pagas ou creditadas aos segurados empregados e trabalhadores avulsos, e sua alíquota varia entre 1%, 2% e 3%, na medida em que a atividade preponderante ofereça risco de acidentes considerado leve, médio ou grave, respectivamente (art. 22, II, Lei nº 8.212/1992).
Ainda, há previsão legal de acréscimo de 12%, 9% ou 6% à alíquota, conforme a o tempo para concessão da aposentadoria especial na atividade seja de quinze, vinte ou vinte e cinco anos de contribuição, respectivamente. Também, pode haver redução de até 50% ou aumento de até 10% da alíquota conforme o desempenho da empresa na profilaxia de acidentes do trabalho, auferido mediante o Fator Acidentário de Prevenção – FAP (art. 202-A, Decreto nº 3.048/1999).
Há também as Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico – CIDE, previstas no art. 149 da Constituição da República, que atuam na Economia não por fomentar ou obstacular atividades, mas mediante arrecadação e destinação de verbas para setores específicos.
Assim funciona a denominada CIDE-combustíveis, relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível. Os recursos por meio dela arrecadados são destinados, por força do art. 177, §4º, inciso II, da Constituição: ao pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, gás natural e seus derivados e derivados de petróleo; ao financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás; e ao financiamento de programas de infraestrutura de transportes.
Portanto, a extrafiscalidade tributária é uma forte ferramenta de que dispõe o Estado para a efetivação dos direitos fundamentais, sobretudo quando as violações ocorrem por motivos econômicos, como é o caso do trabalho forçado.
Uma repreensão efetiva a uma prática perpetrada por razões econômicas deve se dar no campo econômico; se determinada empresa consegue reduzir seus custos e vencer a concorrência mediante exploração de mão de obra forçada, o Estado deve devolver ao preço do produto os custos eliminados pela exploração do trabalhador. E não só devolver – o Estado tem o dever democrático e moral de favorecer os comerciantes e industriais que atuam segundo suas normas. O ilícito não pode, em hipótese alguma, ter vantagem sobre o lícito. Aquele que terminar em vantagem expandirá e se multiplicará, o lícito ou o ilícito.
O aumento da alíquota dos tributos incidentes sobre a importação seria uma ferramenta hábil para tal.
Veja-se, e. g., que a Constituição permite a alteração das alíquotas do II mediante ato do Executivo, conforme visto acima. O Código Tributário Nacional, sob a permissão constitucional, prevê que o Poder Executivo pode alterar as alíquotas do imposto a fim de ajustá-lo aos objetivos da política cambial e do comércio exterior (art. 21). O art. 3º da Lei nº 3.244/1957 prevê que as alíquotas do II poderão ser alteradas, entre os limites máximo e o mínimo, quando for de interesse incentivar a produção interna, e também quando a tributação se mostrar insuficiente ou excessiva ao adequado cumprimento dos objetivos da exação.
No caso de ocorrência de dumping, o mesmo art. 3º, em seu §2º, dispõe que a alíquota poderá ser elevada até o limite capaz de neutralizá-lo.
Portanto, é viável, juridicamente, o aumento de alíquotas para inviabilização da produção de mercadorias por meio de mão de obra forçada. Para tal, há dois imperativos permissivos: i) a proteção da indústria e do comércio nacional (art. 219, CRFB), notadamente dos grupos e agentes que seguem as normas trabalhistas e funcionam em respeito à dignidade do trabalhador; ii) o desestímulo às práticas dessa natureza. Tal estratégia intenta conservar a indústria nacional e os trabalhadores em âmbito global.
Ressalte-se que, com o Tratado de Assunção, a alíquota do II passou a ser estabelecida mediante a Tarifa Externa Comum – TEC, tema que será tratado adiante. Ainda, o art. 1º da Lei nº 8.085/1990, em seu parágrafo único, prevê que “o Presidente da República poderá outorgar competência à CAMEX para a prática dos atos previstos neste artigo”, de maneira que, atualmente, a CAMEX é responsável pela atualização da alíquota, conforme a TEC.
O art. 152 da Constituição prevê que é vedado aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer diferença tributária entre bens e serviços, de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino. Não menciona a União. Portanto, a União não está vedada, constitucionalmente, de controlar a tributação federal em razão da procedência ou destino de determinado produto. Está, é verdade, vinculada aos acordos de livre comércio regionais e globais, o que será objeto de estudo à frente.
Resta, diante da construção acima, estabelecer um meio oficial para se identificar as regiões de maior incidência de trabalho escravo.
A OIT lança periodicamente e mantém permanentemente à disposição do público estatísticas oficiais, elaboradas por profissionais e pesquisadores de diversos Estados em conjunto e concernentes às condições de trabalho nas mais diversas regiões do globo. Veja-se, como exemplo, o Relatório Global do Seguimento da Declaração da OIT relativa a Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho (2001), e as publicações Global estimate of forced labour (2012), Decent work indicators: concepts and definitions (2012), Profits and Poverty: The Economics of Forced Labour (2014), e Modern slavery: the concepts and their practical implications (2014).
Em que pese a qualidade das informações obtidas, os Estados raramente fazem uso do banco de dados para tomada de decisões no campo das políticas públicas, remanescendo tais estatísticas desprovidas de uso e restando prejudicado o combate ao trabalho em condições degradantes em âmbito global.
Os Estados-membros da OIT, contudo, possuem não só a faculdade, mas o dever de lançar mão das estatísticas para ponderar sua atuação no campo econômico. A facilitação de entrada, no país, de produtos advindos de regiões com elevada ocorrência de trabalho escravo ou forçado irá, inequivocamente, resultar no fomento a tais práticas.
É bem verdade que os relatórios e recomendações emanados da OIT não possuem força normativa para os Estados (PORTELA, 2014, p. 490), mas não é este o cerne da questão. O que se sugere é a utilização dos relatórios oficiais (e de extrema credibilidade e nítida comprovação) da OIT para o estabelecimento de políticas aduaneiras, por meio de normas internas, estas, sim, com indiscutível caráter normativo.
Por fim, há ainda a ideia de criação do que se chamaria de selo social (social stamp), previsto na publicação da OIT “Business and the fight against child labour: experience from India, Brazil and South Africa” (2013, p. 54). Após medidas fiscalizatórias, a OIT concederia ou não para as indústrias o selo, que representaria a confirmação de que toda a linha produtiva do grupo ou agente obedece os ditames da OIT. Assim, os Estados poderiam se determinar conforme verificada ou não a posse do selo pelas companhias, podendo proceder, inclusive, na forma esposada anteriormente.