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O direito à liberdade de expressão e as biografias não autorizadas na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815

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3 O DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA 

A proteção da vida privada, como um bem jurídico integrante da personalidade, funda-se no legítimo interesse de salvaguardar do conhecimento alheio (e da curiosidade indevida) tudo o que diz respeito à esfera íntima de uma pessoa. A Constituição Federal tutelou a vida privada de modo genérico nos incisos V e X, mas também nos incisos XI, XII e LX de maneira mais direta (FARIAS, 2012, p. 248). Tal direito presente no rol dos direitos individuais apresenta-se como limite à liberdade dos meios de comunicação.

Sob o ponto de vista estrutural, estão contidos no direito à vida privada, o direito à intimidade e ao segredo (sigilo), compondo diferentes aspectos de uma mesmo bem jurídico personalíssimo. Gilberto Haddad Jabur esclarece que “o direito à vida privada posiciona-se como gênero ao qual pertencem o direito à intimidade e o direito ao segredo. A vida privada é esfera que concentra, em escala decrescente, outros direitos relativos à restrição de vida pessoal de cada um” (FARIAS, 2012, p. 249).

No que tange à diferenciação entre o direito à privacidade e à intimidade, alguns autores afirmam que o último faz parte do primeiro, este mais amplo. O direito à privacidade teria por objeto os comportamentos e acontecimentos decorrentes dos relacionamentos pessoais em geral, às relações comerciais e profissionais que o indivíduo não deseja que se espalhem ao conhecimento público. O objeto do direito à intimidade seriam as conversações e os episódios ainda mais íntimos, envolvendo as relações familiares e amizades mais próximas, segundo Mendes (2011, p. 315).

Para Farias (2008, p. 126 apud BÍLIO, 2014) o direito à intimidade é um dos novos direitos que surgiu com a sociedade industrial moderna e trata-se da exigência moral da personalidade para quem em determinadas situações seja o indivíduo deixado em paz.

A privacidade permite que o indivíduo desenvolva livremente sua personalidade, sem que esteja sob constante crítica e avaliação alheia. A exposição contínua dos erros, dificuldades e fracassos perturba a tranquilidade emocional do ser humano, impedindo-o que consiga transpor as barreiras impostas pela vida.

Complementando, Farias (2012, p. 247) define a vida privada como o refúgio impenetrável da coletividade, merecendo proteção. É o direito de viver a sua própria vida em isolamento, não sendo submetido à publicidade que não provocou, nem desejou. Consiste no direito de obstar que a terceiro venha a conhecer, descobrir ou divulgar as particularidades de uma pessoa.

Ferraz (apud MENDES, 2011, p. 316) define que o direito à privacidade é um fundamental, cujo titular é toda pessoa, física ou jurídica, brasileira ou estrangeira, residente ou em trânsito no país; cujo conteúdo é a faculdade de constranger os outros a respeito e de resistir à violação do que lhe é próprio, isto é, das situações vitais que, por só a ele lhe dizerem respeito, deseja manter para si, ao abrigo de sua única e discricionária decisão; e cujo objeto é a integridade moral do titular.

Apesar do amplo conceito, e da polêmica do confronto em situações concretas, há consenso em que o direito à privacidade tem por característica básica a pretensão de estar separado de grupos, mantendo-se o indivíduo livre da observação de outras pessoas. Confunde-se com o direito de fruir o anonimato, que será respeitado quando o indivíduo estiver livre de identificação e de fiscalização (MENDES, 2011, p. 317).

Nos Estados Unidos da América, o direito à privacidade começou a ser construído no âmbito jurisprudencial em meados da década de 1890, sendo entendido com o objetivo de ensejar a proteção de manter assuntos íntimos fora do domínio público. Em 1965, a Suprema Corte atribuiu um significado mais dilatado a esse direito, que passou a ser visto como a ensejar ao indivíduo um espaço de autonomia, livre de qualquer restrição por parte dos Poderes Públicos (MENDES, 2011, p. 318).

No Brasil, o princípio da proporcionalidade, o princípio da liberdade em geral (que não tolera restrições à autonomia da vontade que não sejam necessárias para alguma finalidade de raiz constitucional) e o princípio da dignidade da pessoa humana possibilitam o reconhecimento de uma margem de autonomia do indivíduo tão larga quanto possível no quadro dos diversos valores constitucionais (MENDES, 2011, p. 318).

O direito à privacidade, em sentido mais estrito, leva à pretensão do indivíduo de não ser foco da observação por terceiros, de não ter os seus assuntos, informações pessoais e características particulares expostas a terceiros ou ao público em geral (MENDES, 2011, p. 318).

3.1 Limites ao direito à privacidade

Assim como acontece com relação a qualquer outro direito fundamental, o direito à privacidade sofre limitações, advindos do fato de se viver em comunidade e de outros valores de ordem constitucional.

O interesse público despertado por certo acontecimento ou por determinada pessoa que vive uma imagem cultivada perante à sociedade pode sobrepujar a pretensão de “ser deixado só” (MENDES, 2011, p. 319).

Dependendo de um conjunto de circunstâncias, analisadas no caso concreto, a divulgação de fatos relacionados com uma determinada pessoa poderá ser tida como admissível ou abusiva (MENDES, 2011, p. 319).

Deve-se também considerar o modo como ocorreu o desvendamento do fato relatado ao público. São diferentes os casos em que um aspecto da intimidade de alguém é livremente exposto pelo titular do direito daqueles outros em que a notícia foi obtida e propalada contra a vontade de seu protagonista (MENDES, 2011, p. 319).

Portanto, extrai-se que a extensão e a intensidade da proteção à vida privada dependem, em parte, do modo de viver do indivíduo. Quando for personalidade pública, deve a proteção ser reduzida, mas não anulada. Dependem, ainda, da finalidade a ser alcançada com a exposição e a forma da coleta da notícia (MENDES, 2011, p. 319).

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3.2 Restrição à privacidade

Os direitos fundamentais não são suscetíveis de renúncia plena, mas podem ser objeto de autolimitações, que não esbarrem no núcleo essencial da dignidade da pessoa humana.

No contexto de ponderação entre o interesse público na notícia e a privacidade do indivíduo, compreende-se que pessoas públicas ou envolvidas em assuntos públicos detenham menor pretensão de retraimento da mídia (MENDES, 2011, p. 321).

É impressão incorreta quando se afirma que o indivíduo é público quando se expõe à luz da observação do público, abre mão de sua privacidade pelo só fato do seu modo de viver. Em verdade, é que o indivíduo vivendo do crédito público, estando constantemente envolvido em negócios que afetam a coletividade, é natural que em torno dele se avolume um verdadeiro interesse público, que não existiria com relação ao cidadão comum (MENDES, 2011, p. 321).

Não basta tão somente que a notícia veiculada sobre um indivíduo seja verdadeira para que seja legítimo o direito à divulgação. Deve-se observar se a divulgação não se destina meramente a atender à curiosidade ociosa do público, mas que vise a se constituir em elemento útil ao indivíduo que vai receber o informe se oriente melhor na sociedade em que vive (MENDES, 2011, p. 321).

Haverá sempre, ainda, que equalizar o interesse público com o desgaste material e emocional para o retratado, num juízo de proporcionalidade estrita, para se definir a validez da exposição (MENDES, 2011, p. 321).

Os fundamentos apresentados servem para o político, como também para o artista de renome ou para o desportista exitoso. Em relação a todos, pode haver o interesse em conhecer aspectos das suas vidas determinantes para a conquista do estrelato, podendo inspirar a tomada de decisões vitais por quem recebe as notícias (MENDES, 2011, p. 321).

Entende-se ainda que é aceitável a divulgação de aspectos da vida privada da pessoa pública que influíram na sua formação, como a sua história de vida, retratando a origem, estudos, trabalhos, desafios vividos e predileções que demonstrem pendores especiais (MENDES, 2011, p. 321-322).

Em consonância com esse entendimento, Paulo Jose da Costa Júnior esclarece que, de fato, o âmbito dos direitos da personalidade das pessoas notórias “haverá que reduzir-se, de forma sensível. E isto porque, no tocante às pessoas célebres, a coletividade tem maior interesse em conhecer-lhes a vida íntima, as reações que experimentam e as peculiaridades que oferecem” (FARIAS, 2012, p. 245).

Mas nem tudo está aberto ao público, pois notícias sobre hábitos sexuais ou alimentares exóticos de um artista não se incluem nesse rol de matérias de interesse público, preservando o direito à privacidade. Fatos desvinculados do papel social da figura pública não podem ser considerados de interesse público, não ensejando que a imprensa invada a privacidade do indivíduo (MENDES, 2011, p. 322).

Também no mesmo sentido está Farias (2012, p. 250), ensinando que a intangibilidade da privacidade (decorrente de garantia constitucional e da redação do art. 21 do Código Civil) impõe proteção específica, sendo possível constatar que pode-se afrontar a privacidade de uma pessoa sem qualquer violação de sua honra ou imagem. Seguindo tal entendimento, a Corte Superior reconheceu a violação da privacidade por conta da afirmação contida em uma biografia de que o saudoso jogador de futebol Garrincha teria um órgão genital avantajado. Apesar da inexistência de afronta à imagem ou à honra, for reconhecida a afronta à sua privacidade e determinada a reparação do dano (STJ, REsp.521.697/RJ, rel. Min. César Asfor Rocha, j. 16.2.06, DJU 20.3.06, p. 276)

Continua Farias (2012, p. 245) a explanar que as celebridades (mesmo a mais bela e midiática de todas) não perdem a proteção constitucional de sua imagem. Conservam o direito (constitucionalmente assegurado) à imagem, apenas sofrendo uma flexibilização, quando houver legítimo interesse na sua divulgação, por força de seu ofício, profissão ou situação em que se encontre.

Entretanto, caso o indivíduo haja divulgado, ele próprio, fatos de sua intimidade, que, desse modo, tornaram-se públicos, não haverá como reter, posteriormente, tais informações (MENDES, 2011, p. 322).

Celebridades do passado não podem ser perpetuamente objeto de incursões da imprensa. Algumas retornam, espontaneamente, ao recolhimento da vida de cidadão comum, o que deve ser respeitado pelos órgãos de informação. Se deixar de atrair notoriedade, desaparecendo o interesse público, ao indivíduo tem o direito de ser esquecido. Como exemplo, pode-se citar quem já cumpriu pena criminal e precisa se reinserir na sociedade, tendo este indivíduo o direito a não ver repassados ao público os fatos que o levaram ao cárcere (MENDES, 2011, p. 322).

Em suma, havendo conflito de pretensões à privacidade e à liberdade de informação, Mendes (2011, p. 323) concorda que cabe análise a qualidade da notícia a ser divulgada, a fim de estabelecer se a notícia constitui anúncio do legítimo interesse do público. Deve ser auferido, ainda, em cada caso, se o interesse público sobrepõe a dor íntima que o informe provocará.

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Sobre o autor
Pablo Edirmando Santos Normando

Advogado. Pós-graduado em Direito Público e pós-graduado em Direito Privado pela Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí. Graduado em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NORMANDO, Pablo Edirmando Santos. O direito à liberdade de expressão e as biografias não autorizadas na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4636, 11 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46505. Acesso em: 26 abr. 2024.

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Monografia apresentada à Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí como requisito para a obtenção do título de Especialista em Direito Privado.

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