Capa da publicação Consultas de pacientes particulares e de planos de saúde: limites éticos e legais
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Limites éticos e legais à diferenciação de atendimentos médicos a pacientes particulares e custeados por planos de saúde.

Impossibilidade de discriminação de pacientes

Resumo:


  • É considerado antiético o médico diferenciar horários de atendimento para pacientes de planos de saúde e particulares, privilegiando os últimos, sem previsão contratual específica.

  • A relação entre médicos e operadoras de planos de saúde é contratual e deve ser regida por termos claros, incluindo a possibilidade de estabelecer limites para atendimento dos pacientes dos planos.

  • O Parecer CFM nº 07/2000 e a Lei n.º 9.656/98 proíbem a discriminação de pacientes com base no tipo de pagamento, seja particular ou por plano de saúde, a menos que haja cláusula contratual que justifique a diferenciação.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O privilégio a pacientes particulares é eticamente reprovável? É possível limitar horários e agendas para atendimentos médicos custeados por planos de saúde?

1. DA IMPORTÂNCIA DO TEMA

Trata-se de análise que visa promover a devida ponderação sobre a possibilidade ou não de diferenciação de horários e limitação de agendas para atendimentos médicos custeados por planos de saúde ou de forma particular pelo próprio paciente.

A matéria em debate possui relevância jurídica e prática, pois pode ser causadora de conflitos jurídicos e éticos na relação do médico com seus pacientes em razão de prática adotada informalmente por determinados profissionais de limitar o número de consultas e o horário de atendimento como medida tendente a driblar os efeitos danosos decorrentes da má remuneração paga pelos planos de saúde pelos procedimentos médicos.

Por sua vez, também foi analisada a recente alteração da Lei n.º 9.656/98 que definiu como obrigatória a contratualização da saúde suplementar, o que cria oportunidade para o médico limitar dias e horários específicos em que estará à disposição do vínculo contratual que possui com a operadora de plano de saúde, lhe permitindo, em tese, promover diferenciação de agendas de atendimento.

Todavia, como se passa a expor, caso não haja previsão contratual específica, a restrição do número de vagas para pacientes oriundos de convênios médicos, privilegiando pacientes particulares, sob a argumentação de baixa remuneração, é atitude eticamente reprovável, pois o direito do médico de escolher a quem prestar os seus serviços não comporta discriminação de qualquer natureza.


2. DA ANÁLISE JURÍDICA

Atualmente, é a Lei n.º 9.656/98, que regula as relações sobre os planos e seguros privados de saúde, inclusive no que se refere à relação das operadoras com os médicos prestadores.

Ocorre que tal lei não possuía uma redação muito clara sobre a relação jurídica a ser estabelecida entre o médico e a operadora de plano de saúde, situação que gerava desequilíbrios, principalmente no que se refere ao pagamento dos honorários médicos.

Para resolver tal situação, em 22 de dezembro, entrou em vigor a Lei Federal 13.003/14, que alterou a Lei no 9.656, de 3 de junho de 1998, visando tornar mais claras as regras sobre a relação médico e plano de saúde.

“Art. 17-A. As condições de prestação de serviços de atenção à saúde no âmbito dos planos privados de assistência à saúde por pessoas físicas ou jurídicas, independentemente de sua qualificação como contratadas, referenciadas ou credenciadas, serão reguladas por contrato escrito, estipulado entre a operadora do plano e o prestador de serviço.

§ 1º São alcançados pelas disposições do caput os profissionais de saúde em prática liberal privada, na qualidade de pessoa física, e os estabelecimentos de saúde, na qualidade de pessoa jurídica, que prestem ou venham a prestar os serviços de assistência à saúde a que aludem os arts. 1º e 35-F desta Lei, no âmbito de planos privados de assistência à saúde.

§ 2º O contrato de que trata o caput deve estabelecer com clareza as condições para a sua execução, expressas em cláusulas que definam direitos, obrigações e responsabilidades das partes, incluídas, obrigatoriamente, as que determinem:

I - o objeto e a natureza do contrato, com descrição de todos os serviços contratados;

II - a definição dos valores dos serviços contratados, dos critérios, da forma e da periodicidade do seu reajuste e dos prazos e procedimentos para faturamento e pagamento dos serviços prestados;

III - a identificação dos atos, eventos e procedimentos médico-assistenciais que necessitem de autorização administrativa da operadora;

IV - a vigência do contrato e os critérios e procedimentos para prorrogação, renovação e rescisão;

V - as penalidades pelo não cumprimento das obrigações estabelecidas.

A inovação legislativa vem sendo considerada um importante marco histórico para a categoria, pois contribui de forma significativa para a manutenção dos direitos e deveres dos profissionais médicos, haja vista ter estabelecido a chamada contratualização, que é:

A formalização de relações pactuadas entre gestores e prestadores estabelecendo obrigações recíprocas. Pressupõe a definição de demandas e objetivos, metas qualitativas e quantitativas, obrigações e responsabilidades de cada parte envolvida, bem como a definição de critérios e instrumentos de monitoramento e avaliação de resultados.

Portanto, não se pode deixar de considerar que a relação entre o médico e a operado de plano de saúde é essencialmente contratual, razão pela qual, uma vez formalizado o ajuste entre as partes não pode o médico simplesmente ignorar os preceitos contratuais para determinar a composição de sua agenda de atendimento.

Nesse contexto, cabe destacar, ainda, o teor do art. 18 da já citada Lei dos Planos de Saúde (9.656/98), o qual traz regras claras quanto à impossibilidade de o consumidor de operadora de plano de saúde, em nenhuma hipótese e sob nenhum pretexto ou alegação, poder ser discriminado ou atendido de forma distinta daquela dispensada aos clientes vinculados a outra operadora ou plano. Transcrevemos o dispositivo:

Art. 18. A aceitação, por parte de qualquer prestador de serviço ou profissional de saúde, da condição de contratado, referenciado, credenciado ou cooperado de uma operadora de produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei implica as seguintes obrigações e direitos: (Redação dada pela Lei nº 13.003, de 2014)

I - o consumidor de determinada operadora, em nenhuma hipótese e sob nenhum pretexto ou alegação, pode ser discriminado ou atendido de forma distinta daquela dispensada aos clientes vinculados a outra operadora ou plano;

Por sua vez, o Parecer CFM n.º 07/2000 é claro quando estabelece que não é ético ao médico impor discriminação de pacientes custeados pelos planos de saúde. Pela relevância da matéria, cumpre colacionar o inteiro teor do Parecer, qual seja:

PROCESSO-CONSULTA CFM Nº 3.556/95

PC/CFM/Nº 07/2000

INTERESSADO: Unimed-Fortaleza

ASSUNTO: Atendimento de pacientes por planos de saúde e particulares

RELATOR: Cons. Edson de Oliveira Andrade

EMENTA: Restringir o número de vagas para pacientes oriundos de convênios médicos, privilegiando pacientes particulares, sob a argumentação de baixa remuneração, é atitude eticamente reprovável. O direito do médico de escolher a quem prestar os seus serviços não comporta discriminação de qualquer natureza.

DA CONSULTA

A Cooperativa de Trabalho Médico Unimed-Fortaleza, através de seu presidente dr. Darival Bringel de Olinda, encaminhou a este Conselho Federal de Medicina consulta que tem por motivação, segundo afirma em sua correspondência, as constantes reclamações oriundas de usuários em decorrência de possíveis discriminações por parte de alguns cooperados que privilegiariam os pacientes particulares em detrimento dos usuários da cooperativa.

De forma a tornar bastante explícito o conteúdo de sua consulta, o presidente da Unimed-Fortaleza faz as seguintes indagações:`

1. É ético e regular o médico dividir o seu horário de atendimento entre usuários de planos de saúde e pacientes particulares, restringindo o tempo para atendimento dos primeiros?

2. Tal divisão e discriminação de horários se constitui em discriminação de pacientes?

DA LEGISLAÇÃO

Diversos são os dispositivos do Código de Ética Médica (CEM) que podem ser evocados na análise da questão suscitada pela consulta.

Em seu artigo primeiro, o CEM diz ser a Medicina uma profissão a serviço do ser humano e da coletividade, devendo ser exercida sem discriminação de qualquer natureza. Com iguais enfoques, existem os artigos 9º e 47 que dizem, in verbis:

Princípios fundamentais

Art. 9º - A Medicina não pode, em qualquer circunstância ou de qualquer forma, ser exercida como comércio.

...

É vedado ao médico:

"Art. 47- Discriminar o ser humano de qualquer forma ou sob qualquer pretexto."

O artigo 7º afirma, por outro lado, que "o médico deve exercer a profissão com ampla autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais a quem ele não deseje, salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente".

DO PARECER

O médico, em seu consultório, representa a última trincheira de uma Medicina romântica e liberal que o tempo e a evolução caminham para eliminar. A questão levantada expõe de forma clara uma das características atuais do fazer médico: a interferência de terceiros no seu mister.

A nova ordem na prática médica não mais contempla a clássica díade médico-paciente, mas sim uma tríade constituída pelo médico, o paciente e o plano de saúde. Tal situação implica, para o médico, novos compromissos, os quais interferem nas suas atividades diárias.

As questões daí provenientes são: em que nível ocorre estes novos compromissos; qual a extensão e, principalmente, como podem interferir na relação médico-paciente.

De um lado, temos a capacidade do médico para dispor de seu ofício ao seu talante, no limite ético do artigo 7º do CEM. Esta capacidade, vista pela ótica da legalidade, daria o embasamento ético para que o médico indicasse o limite de sua disponibilidade para determinado convênio, delimitando, assim, os dias e horas em que estaria disponível para os seus associados.

Desta forma, estaria o médico agindo eticamente ao privilegiar um paciente particular em detrimento de um conveniado, quando a negativa do atendimento se desse dentro do acordo previamente ajustado?

Visto sob a ótica do artigo 7º, parece que a resposta é sim; afinal, quem pode mais pode menos! Portanto, parece lógico pensar que se o médico pode recusar-se a tratar de um doente, poderá também limitar sua disponibilidade para o atendimento do mesmo.

Tal conclusão espelha, de forma exemplar, um raciocínio sofista, com subversão do silogismo lógico, ao se partir de premissas verdadeiras para se alcançar uma conclusão falsa.

Vejamos como isso se dá. O direito de o médico pactuar a forma como oferece os seus serviços aos convênios não se confunde com a sua obrigação para com os pacientes que o procuram.

O médico pode recusar-se a ser conveniado ou cooperado com base no entendimento de que é mal remunerado. No entanto, uma vez acordada a sua participação no quadro de médicos referenciados, este argumento não mais pode ser utilizado para discriminar pacientes.

O paciente que procura ajuda médica traz como maior riqueza a sua humanidade – a qual e por si só basta e é suficiente.

O direito de considerar-se mal remunerado permite ao médico denunciar o pacto realizado com a cooperativa ou o convênio. Jamais poderá, contudo, qualificar ou quantificar o seu trabalho com base no quantas recebido. A adoção de mecanismos discriminadores, com base na capacidade econômica do paciente, configura, sem dúvida alguma, infração ética.

Diferenciar pacientes, dificultando muitas vezes fraudulentamente o acesso ao consultório, com simulação de falsas pletoras de agendas, na busca de transformar o doente do convênio em doente particular, é atitude eticamente reprovável por fraudar, humilhar e subjugar o ser humano, com o agravante de fazê-lo quando este se encontra fragilizado pela doença.

Palmilhar estes caminhos é transformar a Medicina em ato de mercancia, onde teremos serviços médicos de todos os quilates e preços; adequando-se cada um (talvez !) à remuneração recebida.

CONCLUSÃO

Perante o exposto, entendo que o médico, tendo acordado com o convênio ou cooperativa uma determinada forma de pagamento, não mais pode discriminar, com base na argumentação de que é mal remunerado, os pacientes deles oriundos, dificultando o acesso aos consultórios, com adoção de limites de vagas ou outros artifícios. A atitude eticamente aceita, para situações desta natureza, é a suspensão global do atendimento ou o descredenciamento.

Este é o parecer, SMJ.

Brasília, 5 de fevereiro de 1997

EDSON DE OLIVEIRA ANDRADE

Conselheiro Relator

Aprovado em Sessão Plenária

Dia 17/03/2000

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Desse modo, o entendimento manifestado pelo Parecer CFM n.º 07/2010 está em consonância com a legislação que rege a matéria (art. 18, inciso I, da Lei n.º 9.656/98), não sendo possível, em igualdade de condições, haver discriminação entre pacientes particulares e aqueles custeados por planos de saúde.

Todavia, neste ponto, cabe estabelecer ressalva.

Conforme afirmado, a relação entre o médico e as operadoras de planos de saúde é, por expressa disposição de lei, estritamente contratual e tal acordo deve estabelecer o objeto e a natureza do contrato, com descrição de todos os serviços contratados.

A par disso, caso o contrato entre o médico e o plano de saúde estabeleça a obrigação de atendimento de forma genérica, não havendo indicação de horários e dias específicos, não se mostra possível ao médico discriminar pacientes oriundos da saúde suplementar.

Porém, em face do princípio da autonomia contratual, será possível estabelecer expressamente no contrato os limites para atendimento dos pacientes custeados pelos planos de saúde, seja pelo número total de procedimentos (consultas, exames, etc), ou, ainda, pela disposição de dias e horas em que o médico se dispõe a realizar atendimentos oriundos dos planos de saúde.

Nesse caso, a diferenciação de agenda deve estar expressamente acordada entre o médico e a operadora de plano de saúde.

Por sua vez, deve haver publicidade razoável com a indicação clara e evidente dos dias em que o médico está habilitado a atender com custeio do plano de saúde, evitando, dessa forma a utilização de artifícios fraudulentos que dificultem o atendimento de pacientes de planos de saúde e busquem transformá-los em paciente particulares. Tal publicidade pode ser obtida, por exemplo, com a afixação de avisos na recepção dos consultórios.


3. DA CONCLUSÃO

Portanto, definidas tais premissas teóricas, é possível concluir da seguinte forma:

  1. Nos termos do art. 17-A da Lei n.º 9.656/98, as condições de prestação de serviços de atenção à saúde no âmbito dos planos privados de assistência à saúde por pessoas físicas ou jurídicas, independentemente de sua qualificação como contratadas, referenciadas ou credenciadas, serão reguladas por contrato escrito, estipulado entre a operadora do plano e o prestador de serviço.

  2. O pacto deve estabelecer o objeto e a natureza do contrato, com descrição de todos os serviços contratados, bem como as demais cláusulas previstas no art. 17-A, § 2º, da Lei n.º 9.656/98;

  3. Ressalve-se, porém, as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente, conforme Princiío “VII” do Código de Ética Médica, situação na qual o médico deverá promover o atendimento médico mesmo nas hipóteses em que o serviço contratado não esteja previsto no acordo celebrado com a operadora do plano de saúde;

  4. O Parecer CFM nº 07/2000, está em consonância com o teor do art. 18 da já citada Lei dos Planos de Saúde (9.656/98), o qual traz regras claras quanto à impossibilidade de o consumidor de operadora de plano de saúde, em nenhuma hipótese e sob nenhum pretexto ou alegação, poder ser discriminado ou atendido de forma distinta daquela dispensada aos clientes vinculados a outra operadora ou plano.

  5. Nessa linha, a restrição do número de vagas para pacientes oriundos de convênios médicos, privilegiando pacientes particulares, sob a argumentação de baixa remuneração, é atitude eticamente reprovável. O direito do médico de escolher a quem prestar os seus serviços não comporta discriminação de qualquer natureza.

  6. Porém, em face do princípio da autonomia contratual, será possível estabelecer expressamente nos contratos os limites para atendimento dos pacientes custeados pelos planos de saúde, seja pelo número total de procedimentos (consultas, exames, etc), ou, ainda, pela disposição de dias e horas em que o médico se dispõe a realizar atendimentos oriundos dos planos de saúde.

  7. Caso haja exista cláusula contratual que estabeleça a limitação de atendimentos, conforme item “e”, deve haver publicidade razoável com a indicação clara e evidente dos dias em que o médico está habilitado a atender com custeio do plano de saúde, evitando, dessa forma, a utilização de artifícios fraudulentos que dificultem o atendimento de pacientes de planos de saúde e busquem transformá-los em paciente particulares.

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Sobre o autor
Rafael Leandro Arantes Ribeiro

Promotor de Justiça Adjunto do MPDFT. Pós graduado em Investigação Criminal pela Universidade Católica de Brasília. Aprovado nos concursos públicos para Promotor de Justiça Adjunto - MPDFT/2016 em 8ª lugar; Procurador da Fazenda Nacional/2016; Delegado de Polícia da PCDF/2016 e Notário e Registrador (tabelião) do TJDFT/2015.Já ocupou os cargos de Advogado do Conselho Federal de Medicina; Agente da Polícia Civil do DF e Técnico do TRT da 10ª Região.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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