Introdução
A Constituição Federal de 1988, de forte caráter programático, atribuiu maiores poderes normativos ao Executivo diante da necessidade de efetivação dos direitos sociais nela previstos. O Presidente da República foi dotado de competência para editar as chamadas medidas provisórias, ato normativo com força de lei, editado em caso de relevância e urgência, de submissão imediata ao crivo do Congresso Nacional, conforme previsto no art. 62 da Constituição Federal.
A instituição da medida provisória não somente se deu pela tradição brasileira em atribuir ao Executivo prerrogativas legislativas, mas também a fim de possibilitar ao Executivo atender, de forma célere, às necessidades de uma sociedade complexa, configurando “um instrumento normativo ágil de tomada de decisões” (DAMOUS; DINO, 2005, p. 151).
Uma vez concebida para regular situações extraordinárias - de urgência e relevância -, cumpre analisar o papel desempenhado por este instrumento legislativo na sistemática de governo denominada presidencialismo de coalizão, presente de forma mais intensa, no Brasil, a partir da redemocratização.
1. Presidencialismo de coalizão e medidas provisórias
Pode-se definir presidencialismo de coalizão[1] como o sistema presidencial de governo no qual a governabilidade se dá pela formação de coalizão parlamentar mais abrangente que o partido do Presidente, servindo de apoio às políticas públicas governamentais, o que se reflete na distribuição de pastas ministeriais e no exercício do poder de agenda legislativa pelo Executivo. (SAMPAIO, 2007. 127). Por governabilidade, entende-se que é a “capacidade de um sistema político de produzir políticas públicas que resolvam os problemas da sociedade, ou, dizendo de outra forma, de converter o potencial político de um dado conjunto de instituições e práticas políticas em capacidade de definir, implementar e sustentar políticas.” (CASTRO SANTOS, 1997, p. 344).
Como bases institucionais do presidencialismo de coalizão, isto é, o conjunto de possibilidades disponíveis ao Presidente para buscar a coalizão com o Congresso Nacional, tem-se que a primeira seria o poder de livre nomeação de ministros, de modo a refletir no conjunto de assessoramento da Presidência o apoio obtido junto ao Legislativo; a segunda seria a concentração dos trabalhos parlamentares na pessoa de seus líderes, o que fortalece o arranjo partidário como forma de refletir, no Governo, os interesses representados pelos ministros aliados. Como última base e, especialmente relevante a este estudo, tem-se os poderes legislativos do Presidente da República como conformadores da agenda política[2]. (SAMPAIO, 2006, 134).
Nesse sentido, a agenda política é o conjunto de compromissos e o momento nos quais estes são assumidos e cumpridos por determinado Governo. Já o poder de agenda, para a ciência política, é “a capacidade de determinar não somente quais propostas serão consideradas pelo Congresso Nacional, mas também quando o serão”, o que indica que os poderes legislativos do Presidente são determinantes para influenciarem o processo político, ao interferirem diretamente no processo legislativo e na atuação parlamentar.
Com efeito, a prerrogativa do Executivo de poder influenciar o processo legislativo, além de ser uma forma indutora de coalizão como assinalado acima, guarda relação com a concretização da eficiência democrática. Eficiência democrática, nas lições de Matthew Shugart e John Carey, é “a capacidade do processo eletivo em servir como um meio para que os eleitores possam identificar e escolher entre os candidatos disponíveis para o Governo.”[3] (SHUGART; CAREY, 1992, p. 7-8, tradução livre).
Isto significa que, em uma democracia eficiente, as eleições devem possibilitar um processo de escolha por parte dos eleitores que, ao identificar claramente os projetos apresentados, se escolhido, possa este projeto de fato ser efetivamente implementado (ABRAMOVAY, 2010, p. 44). Neste caso, a implantação do projeto governamental se dá com a aprovação de políticas públicas junto ao Congresso Nacional, o que induz o Executivo a buscar a cooperação do Parlamento.
[...] não isentam o Executivo da necessidade de apoio do Legislativo para governar, pois este é o locus onde se dá a palavra final sobre as propostas legislativas. O Executivo precisa negociar com o Legislativo para ter sua agenda aprovada. E essa aprovação implica a possibilidade de ajustes na proposta. Quando submetida ao processo legislativo, a proposta do Executivo está sujeita a mudanças e aprimoramentos. O grau de contribuição varia conforme as regras e os procedimentos, bem como com a aglutinação com os interesses da coalizão majoritária. Aliás, esse passa a ser o eixo da relação entre o Executivo e o Legislativo: como formar maiorias e lidar com elas no Congresso. (SILVEIRA E SILVA; DE ARAÚJO, 2010, p. 3).
De fato, o que se percebe é que no sistema presidencialista brasileiro, o Executivo deve dividir seu papel de protagonista na condução do Governo com o Congresso Nacional com vistas a manutenção da governabilidade e eficiência democrática. E esta cooperação somente é possível tendo em vista as bases institucionais do presidencialismo de coalizão acima mencionadas.
Antes de haver um cenário de disputa por espaço político, ensejando a paralisia decisória, comumente apontada como ponto negativo do sistema presidencialista, a engenharia constitucional do presidencialismo de coalizão induz à cooperação tanto na formulação subjetiva do Governo com a formação do gabinete ministerial, quanto na sua manutenção, haja vista a busca da governabilidade pelo Executivo a partir da base de apoio sediada no Congresso Nacional. (SAMPAIO, 2007, p. 122). Frise-se, ainda, que a influência do Executivo no momento de discussão e tomada de decisões no âmbito do Congresso, ou seja, na agenda política, em muito afasta esta paralisia.
[...] pode-se dizer viável o clima de cooperação que gere entrega de função legislativa ao Presidente, [...]. Tal hipótese é mais provável do que o clima conflituoso que se espera em sistema de governo com separação de poderes aparentemente geradora de inércia governativa. Ainda que o Presidente seja apoiado por base parlamentar minoritária, é dotado de instrumentos que lhe permitem buscar maior sustentação. Ademais, mesmo que queira ele isolar-se, o Congresso, de seu turno, tem como forçá-lo a ceder, o que se dá a partir da coesão partidária em torno das lideranças, bem como da própria voz da maioria. [...]. (SAMPAIO, 2006, p. 126).
Delineado o ambiente indutivo à cooperação no qual se dá a relação entre o Executivo e o Legislativo no presidencialismo brasileiro, cumpre dirigir o estudo ao instituto das medidas provisórias inseridas neste contexto. Como dito, os poderes legislativos do Executivo servem de indutores à coalizão, uma vez que influem no poder de agenda do Congresso.
No caso das medidas provisórias, o poder de conformar a agenda é ainda maior, dado que desde a sua edição já modifica o status quo então existente. Dessa forma, a reação do Congresso diante de tal instrumento “é determinada não por uma análise anterior de seus pontos positivos e negativos, [...] mas por uma apreciação de seu mundo real e efeitos em tempo real, desde seu implemento por decreto.” Ou seja, a decisão dos parlamentares não é feita “com base na sabedoria de implementação de política em primeiro lugar, mas com base nos custos e benefícios de seu afastamento, uma vez já em vigor.”[4] (SAMPAIO, 2007, p. 170). Ademais, se não houver deliberação do Congresso em 45 dias da publicação da medida provisória, na redação do § 6º do art. 62, da Constituição Federal[5], há o trancamento de pauta para deliberações legislativas[6] da Casa na qual estiver tramitando, compelindo os parlamentares ao debate.
Como se sabe, o art 62 da Constituição brasileira prevê a possibilidade de o presidente editar medidas provisórias em casos de relevância e urgência. Trata-se de importante arma nas mãos do Executivo porque a edição de uma medida provisória implica a imediata alteração do status quo. Ao analisá-la, o Congresso não opta entre o status quo anterior (SQ) e aquele a ser produzido pela promulgação da medida (SQmp), mas sim entre SQmp e uma situação em que a MP é rejeitada após ter vigorado e surtido efeito (MPrej). Digamos que para a maioria dos legisladores a seguinte relação de preferências seja verdadeira: SQ >SQmp >MPrej, onde o símbolo > significa “é preferido a”. Logo, a maioria aprova a MP. Se fosse introduzida como um projeto de lei ordinária, a MP seria rejeitada. Por surtir efeito no ato de sua edição, o recurso à edição de MPs é uma arma poderosa nas mãos do Executivo. Os congressistas podem ser induzidos a cooperar. (FIGUEREIDO; LIMONGI, 2001, p. 26).
As medidas provisórias ainda são entendidas como mecanismo de monitoramento de impacto de decisões governamentais, incluindo, por sua vez, o Poder Legislativo no debate quanto ao planejamento e execução de determinada política pública. Inseridas na coalizão governamental, externada na forma de gabinete extenso com apoio das lideranças, as medidas provisórias servem “à adequação, pelo Parlamento, da vontade do Executivo a um denominador comum que congregue a própria vontade parlamentar.” (SAMPAIO, 2007, p. 171). Nesse sentido:
[...] o intervalo entre a emissão de uma MP pelo Executivo e sua votação pelo Congresso é justamente o período que tem o último para escutar possíveis alarmes de incêndio acionados pelos grupos sociais afetados pela MP (...) trata-se de um mecanismo de monitoramento eficiente e de baixo custo, convenientemente à disposição de um Congresso notoriamente despreparado, do ponto de vista técnico, para avaliar o impacto de decisões governamentais. (AMORIM NETO; TAFNER, 2002 apud SAMPAIO, 2007, p. 171).[7]
Dessa forma, conquanto seja do Presidente a iniciativa de implementação de determinada política, por meio de medida provisória, esta permite ao Legislativo a participação direta na formulação de políticas públicas da agenda governamental, inclusive quanto à sua impressão do impacto de tomada de determinada decisão. (SAMPAIO, 2007, p. 171).
Por exemplo, frise-se que a Constituição Federal dispõe, na alínea a, VI, do art. 84, a possibilidade de adoção de decreto autônomo para dispor sobre a “organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos”, conferindo ao Presidente maior liberdade na adoção de medidas de caráter administrativo, permanecendo, no entanto, a necessidade de lei formal para criação de tais órgãos. Nesse sentido, destaca Gustavo Henrique Taglialegna, o caso da MP n. 103, de janeiro de 2003, convertida na Lei n. 10.683, que dispõe sobre a organização da Presidência e dos Ministérios, a qual, desde sua edição, passou por treze alterações, sendo onze delas por meio de medidas provisórias. (2008, p. 7).
Como visto, as medidas provisórias servem de mecanismo indutor à coalizão de que dispõe o Presidente para buscar a cooperação do Legislativo na implementação de políticas públicas, possibilitando a este último, inclusive, a participação nos debates quanto ao implemento de matérias de cunho fortemente administrativo.
Nesse sentido, dentro do ambiente de cooperação que envolve o presidencialismo de coalizão brasileiro, o uso das medidas provisórias tem sido instrumento largamente utilizado pelo Presidente para execução de políticas públicas, representando bem a maneira de como se dá a relação entre os poderes. De fato, na concepção de parte da doutrina política, há um processo sistemático de delegação da função legislativa[8].
Em estudo comparativo sobre o poder de emitir decretos com força de lei, Carey e Shugart (1995a) sugerem interpretação diversa [9]das relações Executivo – Legislativo geradas por esse tipo de instituto. Em lugar de abdicação, argumentam, o mais adequado seria falar em “delegação” de autoridade. Sendo esse o caso, o Legislativo delegaria poderes legislativos ao Executivo visando superar problemas de ação coletiva, coordenação e instabilidade das decisões aos quais estaria particularmente sujeito. A delegação visaria, assim, a garantir mais estabilidade às decisões e maior eficiência aos resultados de políticas. Ou seja, a delegação de poderes ao Executivo não impediria o Legislativo de alcançar os objetivos por ele desejados. Além disso, como argumentam os autores, seria talvez a única maneira de alcançar tais resultados. (FIGUEREIDO; LIMONGI, 2001, p. 126).
Com efeito, afirmam Figueiredo e Limongi que a existência de poderes legislativos extraordinários delegados ao Executivo traz vantagens comparativas no desempenho de suas tarefas a ambos os poderes.
Vista como uma forma de delegação [...], a existência dos poderes legislativos extraordinários do Executivo pode ser benéfica para ambas as partes. No caso, tanto o poder Legislativo, que deixa de exercer funções legislativas ou as exerce em menor grau, quanto ao Executivo que assume essas novas funções, ganhariam com esse arranjo institucional. Assim, a relação Executivo-Legislativo deixa de ser vista necessariamente como um jogo de soma zero. Dito de maneira positiva, poderes legislativos excepcionais nas mãos do Executivo podem propiciar ganhos para o Legislativo e resultar em cooperação entre os dois poderes. (2001, p. 126).
Assim, além da possibilidade de participar do governo, influenciando políticas na agenda governamental, Sampaio destaca mais uma importante razão para explicar os motivos pelos quais o Congresso, neste entendimento, ente delegante, procede à delegação. Em estudo realizado por D.Roderick Kiewiet e Mathew D. McCubbins, o fator da informação é ressaltado. Os professores norte-americanos afirmam que a burocracia executiva, concentrada em um órgão singular, detém meios mais eficazes de coleta e ordenação de dados para fins de formulação de políticas públicas do que o corpo coletivo do Congresso. Dessa forma, “a ideia de que a lentidão do coletivo o faz fraco para implemento de políticas públicas acaba por ter seu instrumental depositado em mãos do individual.”(SAMPAIO, 2007, p. 188-189).
Compartilhando da mesma ideia, Carey e Shugart afirmam que “severos problemas de negociação encarados por legisladores, quando do implemento de políticas públicas”[10] (CAREY; SHUGART, 1998, p. 16, tradução livre) determinam sua tendência à delegação.
[...] quanto maior for a dificuldade para os legisladores construírem e manterem coalizões, maior será a utilização da via alternativa de implemento de políticas por atribuição de poder de decreto ao executivo e sua utilização. Disciplina partidária, número de câmaras, disponibilidade de informações estratégicas e lentidão de tomada de decisões, pelo parlamento, são questões aqui consideradas. (SAMPAIO, 2007, p. 189).
Não se olvida que a delegação deva ser acompanhada de mecanismos institucionais de controle da atuação do ente delegado[11], no caso, o Poder Executivo, haja vista a perda de poder inerente a esta. Ocorre que “o corpo coletivo, ao delegar ao individual, atende a necessidades próprias, pagando um preço por isso [...]. Perde-se poder momentaneamente, devendo-se criar uma série de mecanismos de mitigação de tal perda.” (SAMPAIO, 2007, 190). Essa ideia está associada diretamente à sistemática de checks and balances de controle recíproco entre os poderes.
Ambas as partes devem ter ganhos com a delegação havida, mantendo-se sempre, em mãos do delegante, poder de veto. Nesse sentido, repita-se mais uma vez que, sem interesse do Congresso Nacional, não há política que se mantenha apenas por implemento de medida provisória. O controle é diário, além disso. É feito por ministérios, estrategicamente compostos, antes da edição de medida provisória, negociando-se o seu conteúdo, bem como após a sua edição, por exemplo, por mecanismos de alarme de incêndio. Assim se tensão há, não é entre os Poderes enquanto órgãos constituídos, mas entre eles como pólos de uma relação de delegação. (SAMPAIO, 2007, p. 191).
Com efeito, este controle é comprovado por meio da constatação de ampla e incisiva participação do Legislativo no processo de tramitação das medidas provisórias. Pedro Abramovay, após analisar detalhadamente o processo legislativo das medidas provisórias, concluiu que “existe uma real participação do Legislativo neste processo, participação que se dá expressamente na quase totalidade dos casos.” (ABRAMOVAY, 2010, p. 87).
Não se pode afirmar que as MPs representem uma usurpação do poder de legislar por parte do Executivo. [...] O Congresso não apenas se manifesta como altera e rejeita MPs enviadas pelo Executivo, demonstrando que o controle exercido pelo Parlamento é extremamente ativo. [...] Essas conclusões demonstram que as medidas provisórias são instrumentos que permitem ao Executivo a implementação das políticas públicas para as quais foram eleitos, mas passando por um controle intenso pelo Parlamento, que não é mero espectador do processo legislativo, mas protagonista, ao lado do Executivo, na elaboração dessas normas. (ABRAMOVAY, 2010, p. 87).
Demonstra Abramovay que, após a aprovação da Emenda Constitucional n. 32 no ano de 2001[12], até o final de 2008, foram editadas 432 medidas provisórias, sendo que 88% foram convertidas em lei e 7% foram expressamente rejeitadas pelo Congresso. Tal dado demonstra que em 95% dos casos o Congresso se manifestou expressamente sobre a matéria, seja rejeitando ou aprovando as medidas provisórias[13]. Quanto à qualidade desta participação, verifica-se que 68% foram alteradas em uma das Casas do Congresso, revelando que existe um debate ativo dentro do Congresso. (2010, p. 76-77).
Nesse sentido, ambos os poderes dividem a agenda governamental, de forma cooperativa, manifestando-se o Congresso na maior parte dos processos de tramitação das medidas provisórias, sendo que “o Parlamento governa e Executivo legisla, ambos através de medida provisória.” (SAMPAIO, 2007, p. 195).