A clássica obra Vigiar e Punir de Michel Foucault é fruto de uma análise científica acerca do sistema punitivo e da legislação penal adotados pelos poderes jurídicos ao longo dos séculos. A obra é dividida em quatro partes, sendo que serão abordadas, aqui, as duas primeiras: Suplício, dividida em dois capítulos – "O corpo dos condenados" e "A ostentação dos suplícios" e Punição, dividida também em dois capítulos – "A punição generalizada" e "A mitigação das penas".
Em Suplício (primeira parte), o autor dá início à obra com relatos minuciosos acerca das antigas formas de punição, época em que o corpo dos condenados era o alvo principal da repressão penal. Isso pode ser observado ao ser narrada a execução da pena de Damiens, parricida condenado ao esquartejamento. Os castigos impostos aos condenados (suplício público), naquela época, com rigor de crueldade, traduziam-se em cenário de verdadeiras peças teatrais, em que o povo se reunia nas praças principais da cidade para assistir ao feroz espetáculo.
Em seguida, passadas três décadas no cenário retratado pela obra, o suplício desaparece em razão da conscientização em prol da humanização das penas, passando a ser alvo da repressão penal o enclausuramento, os trabalhos forçados, a servidão, a deportação, entre outros. A punição deixa de ser um espetáculo para se tornar apenas um ato procedimental, no qual vão se extinguindo os pelourinhos, as fogueiras e as coleiras, assim, os juízes e os carrascos deixaram de ter imagem de crueis assassinos. É nesse sentido que o autor expõe o regulamento de um internato de jovens infratores de Paris, elencando seus afazeres diários, ou seja, a rotina dos detentos. O corpo passa, assim, a ser o intermédio para a execução da sentença, qual seja: a privação da liberdade. Destarte, o objeto último da ação punitiva passa a ser a alma (a suspensão dos direitos), e não mais o corpo em sua forma física.
Posteriormente, é retratada a investidura do suplício pelo filósofo francês. O poder de punir se apoia no suplício de maneira que este não é realizado de forma desregrada, mas, sim, possui seus objetivos jurídicos previamente pautados em um cerimonial judiciário que tem o dever de trazer à luz a verdade. Por mais cruel que possa ser a execução do corpo suplicado ele possui a função de reconstituição da soberania do Estado. O suplício passa, assim, a ter uma função jurídico-política. Esse trecho retirado da obra retrata, com precisão, o viés de pensamento conforme a função jurídico-política do suplício: “[...] atacando a lei, o infrator lesa a própria pessoa do príncipe: ela – ou pelo menos aqueles a quem ele delegou a sua força – se apodera do corpo do condenado para mostrá-lo marcado, vencido, quebrado. [...]”.
Foucault discorre acerca da necessidade de moderação e proporcionalidade entre as penas e os delitos, sendo que a pena de morte, triunfo da justiça, só poderá ser aplicada aos assassinos. O suplício passa a ser hierarquizado de acordo com o delito cometido. O filósofo explana, ainda, que o processo era feito em sigilo do condenado, para que, dessa maneira, fossem evitados os tumultos da multidão em razão da possível execução do condenado. Havia uma variação quanto à participação popular nas cerimônias dos condenados, algumas vezes o povo agia em defesa, outras, com ira perante a atitude do condenado.
Já em Punição (segunda parte), o suplício, revelador da tirania, selvageria e vingança torna-se intolerável pelo povo, assim, um perigo para o soberano. Sendo assim, deve ser abominada a barbárie dos suplícios que revoltem a humanidade. O filósofo francês fala, ainda, da necessidade de a justiça criminal aplicar tão somente a punição, em seu sentido puro e humanizado, ao invés da vingança atroz. Ocorre a transformação na qualidade dos crimes, passando de crimes violentos a crimes de fraude patrimonial. Nesse sentido, não foi apenas um processo de abrandamento da punição, mas, sim, um processo de adequação da punição ao delito. Sendo os protagonistas dessa transformação não apenas os filósofos, ou seja, quem está à parte do Sistema Judiciário, mas, também, os magistrados.
Nesse sentido, a punição deve assumir o papel de consequência natural do ato delitivo, e, não uma vontade de imposição do terror. Ela deve atingir o fim de desestimular a reincidência. As penas não podem ser eternas, elas devem chegar ao seu fim, para que, assim, demonstrem a sua eficácia, ressocializando o criminoso, tornando-o novamente uma pessoa virtuosa. Segundo Foucault, existem os incorrigíveis, e esses devem ser eliminados, mas, para os demais criminosos a pena só atinge sua eficácia se é finita. Ademais, o filósofo acrescenta que a pena não serve apenas para o delinquente, mas também para a sociedade como um todo, de modo que o seu discurso de eficácia circule livremente. Enfim, não se fazem mais penas para apagar o crime, mas, sim, com o fim de transformação do culpado.