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Anatomia de um devedor

20/08/2016 às 10:13
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As propagandas fazem as pessoas desejarem até o que nem querem ter. Aí vem o sistema financeiro e nos estimula a gastar além do que podemos, por meio de uma coisa semelhante à uma droga, que vem embalada em um nome bem convidativo: crédito fácil!

Há pouco mais de 15 anos, uma cliente muito especial entrou em meu escritório. Desesperada, ela devia muito dinheiro a quase 12 instituições, entre bancos e financeiras. Recém-formado, assustei-me com o valor da dívida e com a complexidade do caso. Analisei os documentos e constatei que a dívida original era aproximadamente ¼ do valor real devido, mas que, ao longo de três anos e meio de incidência de juros estratosféricos e toda sorte de taxas e tarifas, totalizava aquele valor absurdo e injustificável.

Tudo que um advogado apaixonado, em início de carreira, e obcecado por justiça deseja é vencer a chamada causa impossível. Mas tinha de ser tão impossível? Processar bancos? Eles são os donos de tudo, em um sistema capitalista! Minha missão não seria nada fácil...

Comecei a pesquisar sobre o assunto. Logo no início, uma esperança muito grande tomou conta de mim. Talvez o sistema não fosse tão injusto como eu havia pensado. Eu me formei acreditando na justiça e no Poder Judiciário. Então, que assim seja! Vamos à justiça! Vai que ela existe ...

Vou direto para o fim da história, que, para mim, simbolizou, o início de tudo. Conseguimos reduzir as dívidas de minha "cliente" a valores muito razoáveis, obtidos judicialmente ou por meio de acordos. Assim, ela conseguiu pagar a todos e, cerca de dois anos e meio depois, tinha conseguido reabilitar seu crédito totalmente. A história teve um final feliz... Ou seria o início?

Sempre quando posto algo sobre devedores, as opiniões se dividem. A grande maioria entende que pessoas de bem podem passar por problemas de endividamento. Algumas pessoas, todavia, sentem-se ofendidas, como se o ato de dever fosse uma prática de bandidos e estelionatários.

Quinze anos depois dessa minha primeira e especial cliente, e após muitos e muitos casos dessa natureza, posso garantir a todos que a grande maioria das pessoas que adentram o inferno das dívidas é gente honesta e de caráter. Gente como eu e como vocês, que agora estão lendo estas palavras. Pessoas que em um dado momento da vida perderam o controle. Alguém quer atirar a primeira pedra?

Querem saber como minha cliente ficou devendo tanto dinheiro ao sistema financeiro? Um colega de trabalho precisou de dinheiro emprestado para cuidar do filho com uma doença grave. Conhecem algum bandido ou estelionatário que pegaria boa parte de suas economias e entregaria a alguém cujo único vínculo era de trabalhar na mesma empresa? E que, em função disso, quando precisou do dinheiro para necessidades próprias e familiares prementes, teve que recorrer ao cheque especial e a empréstimos, entrando numa espécie de espiral de endividamento do qual, felizmente, conseguiu se libertar?

Como eu disse no início, essa pessoa era uma cliente especial. Antes de tornar-se inadimplente, quando ainda estava com as finanças equilibradas, ajudou a várias pessoas de sua família, pagando boa parte de três cursos superiores, inviáveis na época sem o seu apoio. Como aluno carente que fui, estudando pelas mãos de Deus, das bolsas que a PUC de Minas Gerais cedia a alunos com o meu perfil, e com ajuda financeira de minha família, valorizo muito atitudes como essa. Muito obrigado, Padre Geraldo Magela e Glenda, ambos in memorian, e à Fátima, um anjo da guarda vivo que muito me ajudou.

Deus não viabilizou apenas a conclusão de meus cursos. Ao ajudar essa pessoa tão amiga, tão especial, eu passei a dominar o assunto Dívidas Bancárias, de tal forma que nosso escritório tornou-se uma das referências nacionais na matéria, tendo praticamente criado o conceito de juros abusivos. Isso nos transformou em uma potência jurídica nessa seara, que já ajudou milhares de pessoas por todo o território nacional.

Muitos "colegas" de profissão me apelidaram de "advogado dos caloteiros", e riam, quando encontravam comigo no Fórum, no momento em que eu ia distribuir as primeiras ações revisionais.

Hoje, as ações são tantas que quase nem dá para contar. E as gargalhadas de desdém ficaram tão distantes que não somente não posso ouvi-las, como também não vejo mais os seus donos, que ficaram presos no passado.

Demorei tempo demais para escrever estas palavras. E peço perdão por isso. Mas sempre há tempo enquanto estamos vivos. Assim, dirijo-me aos milhões de brasileiros endividados. Peço-lhes que não, não tenham vergonha de si mesmos, nem de suas famílias. Não temam olhar nos espelhos de suas casas. Não abaixem as cabeças, diante das ofensas e posturas acusadoras dos bancos e credores.

Há várias formas de uma pessoa perder o controle de sua vida. Pessoas de bem podem, da noite para o dia, passar por algum problema que possa comprometer sua situação financeira. Uma doença, um nascimento inesperado, um acidente imprevisto, uma sociedade mal engendrada, enfim, a todo instante algo pode acontecer.

Um dia, eu estava na casa de minha madrinha, quando o telefone tocou. Era um vendedor de um banco, oferecendo dinheiro a juros "baixos". Quando eu disse que ela não poderia atender, o homem disse, de forma ríspida, que iria voltar a ligar até conseguir falar com minha madrinha, uma senhora de 70 anos, que o atraiu por receber proventos pelo INSS.

As propagandas fazem as pessoas desejarem até o que nem querem ter. Aí vem o sistema financeiro e nos estimula a gastar além do que podemos, por meio de uma coisa semelhante à uma droga, que vem embalada em um nome bem convidativo: crédito fácil!

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E assim, milhões de pessoas adentram pelo mundo das dívidas. Gente humilde, pequenos empresários, jovens, idosos, enfim, quase todo mundo acaba sendo vítima potencial dessa louca oferta sem procura.

Sei, é claro, que há casos de má-fé. Mas são muito raros. Ninguém "suja" seu nome por prazer. Somente quem já teve as portas fechadas por falta de crédito sabe o quanto isso é doloroso.

Para concluir, gostaria de contar a vocês uma história real, vivida pessoalmente por mim. Era o meu primeiro dia de aula no ensino fundamental. Nosso professor de Educação Física, em uma brincadeira muito infeliz, obrigou todos alunos a pularem em uma piscina de raias. Felizmente, eu já sabia me virar na água. Um colega, que não sabia nadar, mas com muito medo de passar vergonha na frente dos outros alunos, pulou e, imediatamente, começou a se afogar.

Eu e um outro menino percebemos a situação e fomos rapidamente em sua direção para ajuda-lo. Ele se debatia violentamente e, apesar de ser muito mais baixo do que nós, parecia estar dotado de uma força descomunal, que levaria todos nós para o fundo da piscina. O fundo? Estava ali, muito perto. Começamos a gritar com nosso colega:

"Fica de pé, fica de pé!!!!!!"

Com muito esforço, e após nos surrar bastante, ele ficou de pé. E, neste momento, conseguiu perceber que estava quase morrendo afogado, na parte rasa da piscina, que tinha no máximo 1,30m de profundidade.

Esta é a anatomia do devedor: alguém que mergulha, sem perceber ou por necessidade real, em uma piscina rasa, ao menos no início, a qual pode, sim, deixá-lo em perigo, se não for ajudado a tempo, antes que se atrapalhe no raso, ou então que a água dos juros escorchantes suba e ele não mais consiga ficar de pé.

Pretendo escrever muito mais sobre este assunto. Quem passa por um processo de endividamento grave compara a experiência a uma quase-morte. Tenho muito orgulho do trabalho que fizemos ao longo de todos esses anos. Mas sinto que ainda posso ajudar muitas pessoas, simplesmente explicando o caminho da travessia. Simplesmente dizendo para as pessoas:

"Fiquem de pé! E não tenham vergonha de pedir ajuda!"

Muito obrigado e fiquem com Deus!

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Sobre o autor
André Mansur Brandão

Advogado da André Mansur Advogados Associados (Minas Gerais). Administrador de Empresas. Escritor.Saiba mais sobre nossa empresa em: http://andremansur.com/portfolio/

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRANDÃO, André Mansur. Anatomia de um devedor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4798, 20 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51291. Acesso em: 22 dez. 2024.

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