Imagine a seguinte situação hipotética:
Eduardo e Mônica casaram-se, em 2013, sob o regime da comunhão parcial de bens.
Um mês depois do casamento decidiram comprar um apartamento que custava R$ 200 mil.
Para tanto, Eduardo utilizou o dinheiro do seu FGTS e pagou R$ 30 mil à construtora.
Mônica também se valeu de seu FGTS e pagou R$ 70 mil.
Os R$ 100 mil restantes foram doados pelo pai de Mônica, que transferiu para a conta da construtora.
Ocorre que o casamento não deu certo e, em 2014, o casal decidiu se divorciar.
Surgiu, então, uma disputa entre os dois para saber como iriam dividir o apartamento.
O advogado de Eduardo sustentava que eles deveriam vendê-lo por R$ 200 mil e dividir o dinheiro igualmente, metade para cada um, considerando que se trata de regime da comunhão parcial de bens.
A advogada de Mônica, por sua, vez, concordava em vender, mas afirmava que Eduardo teria direito de receber de volta apenas 15% do valor da casa (R$ 30 mil), quantia com o qual ele contribuiu para a aquisição. Os demais 85% (R$ 170 mil pertenceriam à esposa já que R$ 100 mil foi doado pelo pai dela e R$ 70 mil veio do seu FGTS).
Vamos entender com calma este interessante e complicado caso.
Como funciona o regime da comunhão parcial?
O regime da comunhão parcial é tratado pelos arts. 1.658 a 1.666 do CC.
Nessa espécie de regime, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com exceção dos casos previstos no Código Civil.
Dito de outro modo, os bens adquiridos durante a união passam a ser de ambos os cônjuges, salvo em algumas situações que o Código Civil determina a incomunicabilidade. Veja o que diz a Lei:
Art. 1.658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.
O art. 1.660 lista bens que, se adquiridos durante o casamento, pertencem ao casal:
Art. 1.660. Entram na comunhão:
I — os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges;
II — os bens adquiridos por fato eventual, com ou sem o concurso de trabalho ou despesa anterior;
III — os bens adquiridos por doação, herança ou legado, em favor de ambos os cônjuges;
IV — as benfeitorias em bens particulares de cada cônjuge;
V — os frutos dos bens comuns, ou dos particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão.
O art. 1.659, por sua vez, elenca aquilo que é excluído da comunhão:
Art. 1.659. Excluem-se da comunhão:
I — os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar;
II — os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares;
III — as obrigações anteriores ao casamento;
IV — as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do casal;
V — os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão;
VI — os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge;
VII — as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes.
Se alguém faz doação em favor de um casal casado sob o regime da comunhão parcial de bens, a coisa ou o valor doado deve entrar na meação? Em outras palavras, esse bem doado deverá ser dividido igualmente entre os cônjuges caso eles decidam se divorciar?
SIM. Isso está previsto expressamente no inciso III do art. 1.660, acima visto:
Art. 1.660. Entram na comunhão:
III — os bens adquiridos por doação, herança ou legado, em favor de ambos os cônjuges;
No caso concreto, Eduardo alegou que, como o pai de Mônica não especificou para quem estava doando o dinheiro, presume-se que foi um presente para o casal. Essa tese foi aceita pelo STJ? Os R$ 100 mil doados pelo pai de Mônica devem se comunicar? No momento do divórcio, tanto Eduardo como Mônica terão direito à metade desse valor cada um?
NÃO. No caso concreto, o valor doado pelo pai de Mônica não se comunica e não deve ser partilhado no momento do divórcio. Isso porque não existe qualquer prova de que essa doação tenha sido feita em favor em ambos os cônjuges.
Ressalte-se que a doação foi feita sem nenhuma formalidade nem indicação de quem seria o beneficiário. Diante disso, presume-se que o pai tenha querido beneficiar apenas a filha, sua herdeira. Para que se considerasse que a doação foi para o casal, isso deveria ter sido dito de forma expressa. Veja precedente do STJ parecido com o caso concreto:
Se o bem for doado para um dos cônjuges, em um casamento regido pela comunhão parcial dos bens, a regra é que esse bem pertence apenas ao cônjuge que recebeu a doação. Em outras palavras, esse bem doado não se comunica, não passa a integrar os bens do casal.
Em um regime de comunhão parcial, o bem doado somente se comunica se, no ato de doação, ficar expressa a afirmação de que a doação é para o casal.
Logo, em caso de silêncio no ato de doação, deve-se interpretar que esse ato de liberalidade ocorreu em favor apenas do donatário (um dos cônjuges).
STJ. 3ª Turma. REsp 1318599/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 23/04/2013 (Info 523).
Dessa forma, os R$ 100 mil doados pelo pai de Mônica deverão ficar com ela no momento do divórcio, já que não se comunicaram por não ter sido uma doação em favor de ambos os cônjuges (art. 1.660, III, do CC).
Parte do imóvel adquirida com recursos do FGTS
Eduardo argumentou também que o valor do FGTS, a partir do momento que foi utilizado para a aquisição do imóvel, passou a integrar o patrimônio comum do casal. Dessa forma, sustentou que, por isso, deveriam ser somadas as quantias de FGTS disponibilizadas por cada um dos cônjuges (30 dele e 70 dela) e divididas em partes iguais (50% para cada um).
Mônica refutou a alegação, afirmando que esse saldo de FGTS utilizado para a compra foi constituído antes do casamento, ou seja, refere-se a períodos trabalhados pelos dois antes de se casarem. Em outras palavras, antes de se casarem, cada um deles trabalhou e os respectivos empregadores depositaram as quantias no FGTS. Por mais que eles tenham utilizado só depois do matrimônio, são relacionados a período pretérito.
Qual das duas teses foi acolhida pelo STJ?
A de Mônica.
Diante do divórcio de cônjuges que viviam sob o regime da comunhão parcial de bens, não deve ser reconhecido o direito à meação dos valores que foram depositados em conta vinculada ao FGTS em datas anteriores à constância do casamento e que tenham sido utilizados para aquisição de imóvel pelo casal durante a vigência da relação conjugal.
STJ. 2ª Seção. REsp 1.399.199-RS, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Rel. para acórdão Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 9/3/2016 (Info 581).
O que é FGTS? Qual é a sua natureza jurídica?
FGTS é a sigla para Fundo de Garantia por Tempo de Serviço.
O FGTS foi criado pela Lei n.º 5.107/66 com o objetivo de proteger o trabalhador demitido sem justa causa.
Atualmente, o FGTS é regido pela Lei n.º 8.036/90.
O FGTS nada mais é do que uma conta bancária aberta em nome do trabalhador e vinculada a ele no momento em que celebra seu primeiro contrato de trabalho.
Nessa conta bancária, o empregador deposita todos os meses o valor equivalente a 8% do salário pago ao empregado, acrescido de juros e atualização monetária (conhecidos pela sigla “JAM”).
Assim, vai sendo formado um fundo de reserva financeira para o trabalhador, ou seja, uma espécie de “poupança”, que é utilizada pelo obreiro quando fica desempregado sem justa causa ou quando precisa para alguma finalidade relevante, assim considerada pela lei.
Se o empregado for demitido sem justa causa, o empregador é obrigado a depositar, na conta vinculada do trabalhador, uma indenização compensatória de 40% do montante de todos os depósitos realizados na conta vinculada durante a vigência do contrato de trabalho, atualizados monetariamente e acrescidos dos respectivos juros (art. 18, § 1º da Lei nº 8.036/90).
O trabalhador que possui conta do FGTS vinculada a seu nome é chamado de trabalhador participante do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.
O FGTS possui natureza jurídica de direito social do trabalhador, sendo considerado, portanto, fruto civil do trabalho (STJ. 3ª Turma. REsp 848.660/RS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 13/05/2011).
Por que interessa saber que o FGTS tem natureza jurídica de "direito trabalhista" (fruto civil do trabalho)?
Porque o inciso VI do art. 1.659 do CC prevê que ficam excluídos da comunhão os valores auferidos com o trabalho pessoal de cada cônjuge. Veja:
Art. 1.659. Excluem-se da comunhão:
VI — os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge;
Obs: a palavra "proventos" está empregada neste inciso com o significado de vantagem financeira, ganho, proveito, lucro etc.
Dessa forma, sendo o FGTS uma vantagem financeira decorrente do trabalho pessoal de cada cônjuge, ele se enquadra neste inciso VI do art. 1.659 do CC.
Os proventos (ganhos) decorrentes do trabalho pessoal do cônjuge estão sempre fora da comunhão? Este inciso é interpretado de forma literal e absoluta?
NÃO. O STJ mitiga a redação literal desse inciso.
Apesar da determinação expressa do Código Civil no sentido da incomunicabilidade, o STJ entende que não se deve excluir da comunhão os proventos do trabalho recebidos na constância do casamento, sob pena de se desvirtuar a própria natureza do regime. A comunhão parcial de bens funda-se na noção de que devem formar o patrimônio comum os bens adquiridos onerosamente na vigência do casamento. Os salários e demais ganhos decorrentes do trabalho constituem-se em bens adquiridos onerosamente durante o casamento. Pela lógica, devem se comunicar.
Essa é também a opinião da doutrina:
"(...) Não há como excluir da universalidade dos bens comuns os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge (CC, art. 1.659, VI). Ora, se os ganhos do trabalho não se comunicam, nem se dividem pensões e rendimentos outros de igual natureza, praticamente tudo é incomunicável, pois a maioria das pessoas vive de seu trabalho. O fruto da atividade laborativa dos cônjuges não pode ser considerado incomunicável, e isso em qualquer dos regimes de bens, sob pena de aniquilar-se o regime patrimonial, tanto no casamento como na união estável, porquanto nesta também vigora o regime da comunhão parcial (CC, art. 1.725). (...) De regra, é do esforço pessoal de cada um que advêm os créditos, as sobras e economias para a aquisição dos bens conjugais. (...) (DIAS, Maria Berenice. Regime de bens e algumas absurdas incomunicabilidades. Disponível em: www.mariaberenice.com.br)
Assim, o entendimento atual do STJ é o de que:
Os proventos do trabalho recebidos, por um ou outro cônjuge, na vigência do casamento, compõem o patrimônio comum do casal, a ser partilhado na separação, tendo em vista a formação de sociedade de fato, configurada pelo esforço comum dos cônjuges, independentemente de ser financeira a contribuição de um dos consortes e do outro não.
A incomunicabilidade prevista no inciso VI do art. 1.659 do CC somente ocorre quando os valores são percebidos em momento anterior ou posterior ao casamento.
STJ. 2ª Seção. REsp 1.399.199-RS, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Rel. para acórdão Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 9/3/2016 (Info 581).
Resumindo o entendimento do STJ quanto ao inciso VI do art. 1.659:
• Se os proventos do trabalho foram adquiridos ANTES ou DEPOIS do casamento: não se comunicam. Os valores pertencerão ao patrimônio particular de quem tem o direito a seu recebimento.
• Se os proventos do trabalho foram adquiridos DURANTE o casamento: comunicam-se.
No caso concreto, contudo, o FGTS de Eduardo e Mônica não se comunicaram porque eles eram referentes a períodos de trabalho laborados antes do casamento.
Fonte: Dizer o Direito