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A responsabilidade dos pais na violência sexual sofrida pelos filhos

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30/08/2016 às 11:36
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INTRODUÇÃO

A violência contra a criança e o adolescente é um fenômeno muito conhecido pelos órgãos de segurança, pelas entidades de proteção dos direitos humanos e pela sociedade. A existência desse flagelo desafia a capacidade da sociedade para garantir a dignidade de seus indivíduos, sobretudo os indefesos.

De todas as formas de violência, aquela que atenta contra a liberdade sexual é uma das que mais causa indignação. A violação da autonomia, o uso da força física ou a utilização de artifícios para o alcance do prazer sexual, provoca alarde e revolta na população.

A conduta de alguém que se aproveita da pouca idade, da pouca maturidade ou de uma situação de risco social em que a criança ou adolescente está inserida, para tirar proveito sexual, provoca discussões entre especialistas e cidadãos comuns a ponto de trazer à tona o debate sobre o agravamento das sanções penais, o aumento das penas de prisão, a pena de morte e a prisão perpétua. Não há como deixar de reprovar esta conduta. A sociedade clama por justiça contra os indivíduos que cometem esse tipo de crime.

Um capítulo recente dessa trajetória de violência sexual foi noticiado no Brasil e no mundo. Em 21 de maio de 2016 uma adolescente teria sido estuprada por cerca de 33 homens no Morro da Barão, Zona Oeste do Município do Rio de Janeiro.[1]

De acordo com o Inquérito Policial, no dia 21 a adolescente havia saído de casa para ir a um baile funk. Lá esteve na companhia de uma garota e outros dois rapazes. Durante a festa fizeram uso de bebidas alcoólicas, maconha e cheirinho da “loló”. Indo embora os quatro foram para uma casa abandonada no Morro da Barão. Às 10h daquele dia os dois rapazes e a outra menina foram embora, deixando a adolescente vítima no local, porque ainda estava sob o efeito de drogas. Por volta de uma hora depois a adolescente foi encontrada por um traficante, que a levou para outra casa, tendo sido o primeiro a estupra-la. Ela teria sido violentada pelo menos duas vezes: no sábado de manhã e no domingo à noite. Não bastasse a violência, os autores ainda gravaram e as imagens foram postadas nas redes sociais.[2]

O ato criminoso repercutiu muito na imprensa, ainda mais por ser véspera das Olimpíadas, escancarando uma realidade vivida por muitas pessoas, principalmente por crianças e adolescentes.

A vítima desse ato bárbaro não pode ser culpada pelo ato do seu agressor, ou agressores.

No entanto, outras circunstâncias do caso chamam a atenção: uma pessoa menor de idade em companhia de terceiros, em local cuja entrada de menores desacompanhados dos pais normalmente é proibida e ambiente de comércio e consumo de bebidas alcóolicas e drogas. Essas circunstâncias são sempre conhecidas dos pais e familiares das vítimas menores de idade?

A questão que este trabalho se propõe a debater é se os pais, que são os responsáveis legais pela integridade dos filhos, contribuem de alguma forma para que os filhos sejam vítimas de violência sexual. Não que os pais desejam colocar os filhos nessa situação, mas é preciso discutir se a conduta dos genitores facilita a ação dos criminosos, se a conduta dos pais coloca em risco os filhos.

A finalidade deste trabalho não é o apedrejamento das famílias, e sim o seu fortalecimento através da conscientização.

Este debate deve estar na pauta da sociedade, das entidades não governamentais e nas entidades do Poder Público. Afinal, a solução não é retirar todas as crianças vitimadas de suas famílias, mas sim ajudar as famílias para que seus filhos não mais sejam vítimas de crimes como esses.


A CONTRIBUIÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

No dia 13 de julho de 1990 foi sancionada a Lei nº 8.069, criando o Estatuto da Criança e do Adolescente, também conhecido como ECA. É inegável que esta lei regulamentou e adequou os Direitos Fundamentais às necessidades específicas das crianças e dos adolescentes.

O Estatuto da Criança e do Adolescente regulamenta situações como (a) a garantia da convivência familiar e comunitária com a família natural[3] ou extensa[4], e em casos excepcionais, em família substituta[5], firmando o entendimento de que o seio familiar deve ser privilegiado acima de qualquer outra forma de abrigamento ou acolhimento de uma criança e adolescente; (b) as regras para adoção, inclusive a internacional; (c) deveres dos profissionais das áreas de saúde e educação diante dos casos de maus-tratos; (d) o dever geral de prevenção; (e) a regras sobre a viagem de crianças e adolescentes; (f) as regras básicas de funcionamento das entidades de atendimento; (g) a criação da Justiça da Infância e Juventude e a criação do Conselho Tutelar e (h) as infrações criminais e administrativas. O Estatuto da Criança do Adolescente contribuiu para que cada vez mais casos de maus-tratos e violência fossem denunciados, para que diminuíssem as estatísticas de desnutrição, analfabetismo infantil, crianças sem registro civil etc. Graças ao ECA a criança e o adolescente possui uma rede de proteção.

Mas apesar disso, crianças e adolescentes ainda são vítimas das mais atrozes violações, como nos terríveis e inúmeros casos de violência sexual. Isso mostra que a mera existência de lei não é suficiente para o exercício e proteção dos direitos.


PREVISÃO LEGAL DO ESTUPRO E DA EXPLORAÇÃO SEXUAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Violência sexual é um gênero que tem como espécies o abuso e a exploração sexual. O abuso sexual ocorre quando alguém por meio da força, da ameaça ou do engano pratica conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso com outra pessoa. É a forma mais comum de violência sexual. A exploração sexual ocorre quando alguém, com a intenção de obter vantagem, utiliza de alguém através de violência, ameaça ou engano, para obrigar uma pessoa a praticar sexo ou ato libidinoso com terceiro. Em ambos, ausente está a liberdade sexual da vítima, sendo este fato o traço característico do crime.

Abuso sexual é um expressão usual que no Código Penal leva o nome de estupro e está previsto a partir do Capítulo dedicado aos Crimes Contra a Liberdade Sexual. O art. 213 do Código Penal considera estupro o ato de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique qualquer ato libidinoso. No passado, estupro era sinônimo de conjunção carnal exclusivamente. Só a mulher poderia ser vítima de estupro. Mas desde 2009, devido à alteração promovida pela Lei nº 12.015, qualquer ato libidinoso realizado nas mesmas condições, também é considerado estupro, e todo e qualquer indivíduo, independente do gênero, pode ser vítima de estupro.

A pena para quem pratica o estupro é de 6 a 10 anos. Quando a vítima é menor de 18 ou maior de 14 anos, a pena é reclusão de 8 a 12 anos.

Quando a violência sexual tem como vítima a pessoa menor de 14 anos, o crime é o previsto no art. 217-A do Código Penal, que classifica como Estupro de Vulnerável a conjunção carnal ou a prática de ato libidinoso com menor de 14 anos. Neste caso a pena prevista é reclusão de 8 a 15 anos.

Cabe aqui uma observação extremamente importante. O ato sexual com pessoa menor de 14 anos é considerado estupro de vulnerável, ou seja, presume-se o uso de violência, e com isso, nem a anuência da vítima ou a afirmação de que autor e vítima são namorados, evita a configuração do crime. Porém, o ato sexual com menor a partir dos 14 anos não é considerado crime, a não ser que esteja ausente a concordância do menor.

Promover a prostituição ou a exploração sexual infantil pode caracterizar, no mínimo, o crime previsto no art. 218-B do Código Penal. A denominação do crime é Favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável. Incorre no crime aquele que submete, induz ou atrai à prostituição ou outra forma de exploração sexual pessoa menor de 18 anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, assim como incorre no crime quem facilita sua ocorrência, e ainda quem impede ou dificulta o abandono da prática. A pena é de reclusão de 4 a 10 anos.

Assim, para fins de esclarecimento e identificação criminal das condutas, em regra, o abuso sexual configura o estupro previsto nos artigos 213 e 217-A, enquanto a exploração sexual configura o previsto no art. 218-A, todos do Código Penal, sem prejuízo de outras disposições da mesma lei e de outras leis como o Estatuto da Criança e do Adolescentes.

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O COTIDIANO DE VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO BRASIL

Antes de qualquer coisa é público e notório que crianças e adolescentes do Brasil possuem um cotidiano de violações contra seus direitos. Diariamente esse público sofre com violência física, violência psicológica, falta de registro civil, problemas relacionados à educação e saúde, abandono entre outros.

Em levantamento do primeiro trimestre do ano de 2015, o Disque 100 (Disque Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos – Governo Federal)[6] recebeu 66.518 denúncias, sendo que 63,2% dessas denúncias tiveram como vítimas crianças ou adolescentes. Evidenciada está a realidade de violência, negligência e desamparo em que vivem crianças e adolescentes brasileiros, mais do que outros grupos vulneráveis.

A violência sexual (abuso ou exploração) engorda a estatística das violações contra o público infantil. No primeiro trimestre de 2015 foram registrados 4.480 casos de violência sexual no Disque 100 (Disque Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos – Governo Federal)[7]. Dessas denúncias, 85% são de abuso sexual, as quais apontam que o agressor usou de força física, ameaça ou sedução para a sua própria satisfação sexual. Outros 23% dos registros são de exploração sexual, que se caracteriza pela utilização sexual da vítima com o fim de lucro.

Os casos de estupro noticiados no presente ano trouxeram o tema para o centro dos debates sobre a dignidade e liberdade sexual, principalmente das mulheres. A Rede BBC[8] publicou reportagem sobre estupro no Brasil, na qual evidenciou alguns dados trágicos:

Levantamento do Ipea, feito com base nos dados de 2011 do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan), mostrou que 70% das vítimas de estupro no Brasil são crianças e adolescentes. Em metade das ocorrências envolvendo menores, há um histórico de estupros anteriores. Além disso, a proporção de ocorrências com mais de um agressor é maior quando a vítima é adolescente e menor quando ela é criança. Cerca de 15% dos estupros registrados no sistema do Ministério da Saúde envolveram dois ou mais agressores. (...)

De acordo com os dados mais recentes, em 2014 o Brasil tinha um caso de estupro notificado a cada 11 minutos. Os números são do 9º Anuário Brasileiro da Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Apesar da pequena queda ante 2013, 47,6 mil pessoas foram estupradas naquele ano. Como apenas de 30% a 35% dos casos são registrados, é possível que a relação seja de um estupro a cada minuto.

A mesma pesquisa do Ipea, citada anteriormente e feita a partir de dados de 2011 do Sinan, estima que no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil e que, destes casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia. Os registros do Sinan demonstram que 89% das vítimas são do sexo feminino e possuem, em geral, baixa escolaridade. Do total, 70% são crianças e adolescentes.

Esses números mostram que 24,1% dos agressores das crianças são os próprios pais ou padrastos, e 32,2% são amigos ou conhecidos da vítima. O indivíduo desconhecido passa a configurar paulatinamente como principal autor do estupro à medida que a idade da vítima aumenta. Na fase adulta, este responde por 60,5% dos casos.

Várias entidades também computam ocorrências sobre violência sexual no Brasil, trazendo ao conhecimento da sociedade dados alarmantes.

A Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República criou a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, através do qual podem ser denunciadas violações cometidas contra mulheres de qualquer parte do Brasil. Este órgão computou nos dez primeiros meses de 2015 um total de 63.090 denúncias de situações de violência contra mulheres, tais como violência física, violência psicológica, violência moral, violência patrimonial, cárcere privado e, como não poderia deixar de ser, violência sexual. Esta última forma de violência teve 3.064 denúncias no período.[9]

O Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), do Ministério da Saúde, deu à conhecer os dados de 2011. Naquele ano foram notificados 12.087 casos de estupro no Brasil. Das vítimas, 89% foram do sexo feminino e, 70% eram crianças e adolescentes. E não parou por aí porque entre as notificações foi constatado que de todas as vítimas 50,7% tinham até 13 anos. Foi constatado, ainda, que na metade dos estupros com vítimas menores houve histórico de estupros anteriores.[10]

Vale observar que esses números registrados pelo Ministério da Saúde não chegam à metade dos registros de estupro dos órgãos policiais brasileiros[11] [12] nos últimos anos:

  • em 2011 foram registrados 43.869 casos;
  • em 2012 foram registrados 51.101 casos;
  • em 2013 foram registrados 51.090 casos;
  • em 2014 foram registrados 47.646 casos.

Em janeiro de 2016 a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República divulgou os atendimentos realizados pelo Disque 100 ao longo do ano de 2015. As denúncias de violações contra crianças e adolescentes ficaram em torno de 80.437, das quais 17.583 foram de violência sexual[13].

Os números demonstram uma realidade de violência nas cidades brasileiras. Porém, por mais que exista uma responsabilidade do Estado pela ineficácia em conferir a segurança aos indivíduos, é essencial também debater a responsabilidade de outros sujeitos, tais como a sociedade, os agentes da educação, os agentes da saúde, mas principalmente, a responsabilidade dos pais.

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Sobre o autor
André Luís da Silva Gomes

Advogado. Membro da Comissão em Defesa dos Direitos da Criança, do Adolescente, do Idoso e da Pessoa com Deficiência da 30ª Subseção da OABMG. Ex-Conselheiro Tutelar por dois mandatos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, André Luís Silva. A responsabilidade dos pais na violência sexual sofrida pelos filhos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4808, 30 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51504. Acesso em: 22 nov. 2024.

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