4 – A evolução da interpretação constitucional brasileira e a inserção da conceituação do princípio constitucional da busca da felicidade
Uma das dúvidas principais quando se estuda os princípios fundadores da República Federativa do Brasil é saber se o princípio da busca da felicidade, tratado em outros ordenamentos, possui consistência jurídica no direito constitucional brasileiro. Se ele existe implicitamente, se está contido em algum dos princípios constitucionais já vigentes é uma das indagações que trazem aspectos práticos inegáveis na interpretação do direito. Para desvencilharmos este assunto, vamos analisá-lo sob a ótica da evolução da hermenêutica constitucional.
4.1 – Elementos da hermenêutica constitucional
4.1.1 - A evolução hermenêutica sem modificação de texto à luz da teoria de Gadamer
Nas hermenêuticas iniciais, a desunião entre a parte e o todo representava uma tensão no entendimento dos textos, trazendo sempre uma preferência para a interpretação meramente textual como sendo a interpretação correta. Assim, as partes textuais tinham a tradição de serem interpretadas apenas isoladamente, sem o auxílio do todo, de um contexto final.
Nas retóricas antigas, já se sabia do problema de se interpretar o texto sem o contexto. Para Gadamer, a retórica antiga:
[...] comparava o discurso perfeito com um corpo orgânico e com a relação entre a cabeça e os membros. Lutero e seus seguidores transferiram essa imagem oriunda da retórica clássica para o procedimento da compreensão, e desenvolveram um princípio geral de interpretação de texto segundo o qual todos os aspectos individuais de um texto devem ser compreendidos a partir do contextus, do conjunto, e a partir do sentido unitário para o qual o todo está orientado, o scopus (GADAMER, 2012, p. 243).
Cris Law, interpretando Gadamer, afirma:
A experiência da verdade é hermenêutica até onde a parte modifica o todo, portanto, a experiência da verdade encontrada no novo, a novidade, o inesperado, está numa situação de tensão com aquilo que já foi entendido. É com o desejo de assimilar ou entender a novidade, de acordo com aquilo que já foi experienciado, que a verdade adota essa dimensão hermenêutica (LAW, 2007, p. 87).
Texto e contexto agora passam a ter mais uma dimensão cognitiva: a historicidade. O contexto de vida a que pertencem os documentos passam a ser necessários na exata compreensão daquilo que foi escrito. Uma vez mudando o contexto da época da escrita, deve-se evoluir, também, na forma interpretativa. E mesmo naquele momento histórico, ao se debruçar sobre o objeto do estudo por uma segunda ou terceira vez, é normal se abrir novas linhas de questionamentos ou possibilidades. O texto escrito não muda, mas as possibilidades interpretativas mudam, pois elas terminam por serem infinitas. Neste sentido, Gadamer discorre sobre as diferenças entre uma hermenêutica tradicional e uma hermenêutica histórica:
O jurista toma o sentido da lei a partir de e em virtude de um determinado caso dado. O historiador jurídico, ao contrário, não parte de nenhum caso concreto, mas procura determinar o sentido da lei, visualizando construtivamente a totalidade do âmbito de aplicação da lei. É só no conjunto dessas aplicações que o sentido de uma lei se torna concreto. Para determinar o sentido originário de uma lei, o historiador não pode contentar-se, portanto, em expor a aplicação originária da lei. Enquanto historiador, ele deve contemplar também as mudanças históricas pelas quais a lei passou. Sua tarefa será de intermediar compreensivelmente a aplicação originária da lei com a aplicação atual.
[...]
Quem quiser adaptar adequadamente o sentido de uma lei precisa conhecer também o seu conteúdo de sentido originário. Ele tem de pensar também em termos histórico-jurídicos. Só que nesse caso a compreensão histórica não seria mais do que um meio para um fim. Na direção oposta, a tarefa jurídico-dogmática não interessa ao historiador como tal. Como historiador ele se movimenta numa contínua confrontação com a objetividade histórica para compreendê-la em seu valor posicional na história, enquanto que o jurista, além disso, procura reconduzir essa compreensão para a sua adaptação ao presente jurídico.
[...]
Enerst Forsthoff demonstrou numa valiosa investigação que, por razões estritamente jurídicas, foi necessário refletir sobre a mudança histórica das coisas, através do que se distinguiu entre o sentido original do conteúdo de uma lei e o que se aplica na práxis jurídica. É verdade que o jurista sempre tem em mente a lei em si mesma. Mas seu conteúdo normativo deve ser determinado em relação ao caso em que deve ser aplicado. E para determinar com exatidão esse conteúdo não se pode prescindir de um conhecimento histórico do sentido originário, e é só por isso que o intérprete jurídico leva em conta o valor posicional histórico atribuído a uma lei em virtude do ato do legislador. No entanto, ele não pode prender-se ao que informam os protocolos parlamentares sobre a intenção dos que elaboraram a lei. Ao contrário, deve admitir que as circunstâncias foram mudando, precisando assim determinar de novo a função normativa da lei (GADAMER, 2012, p. 428-429).
Com base nestas breves premissas, passa-se agora à análise evolutiva do princípio da dignidade da pessoa humana e se nele há ou não a inclusão do princípio da busca da felicidade.
4.1.2 – A especificidade da interpretação constitucional
Como trazem as mais comezinhas lições de direito, existem significativas distinções entre se interpretar uma norma infraconstitucional e a própria Constituição. Segundo Luís Roberto Barroso, por ser a Constituição uma norma jurídica,
... sua interpretação se socorre dos variados elementos, regras e princípios que orientam a interpretação jurídica em geral, cujo estudo remonta ao direito romano e, na cultura jurídica romano-germânica, passa por autores importantes como Sagivny, Gény e Kelsen. A interpretação, portanto, deve levar me conta o texto da norma (interpretação gramatical), sua conexão com outras normas (interpretação sistemática), sua finalidade (interpretação teleológica) e aspectos do seu processo de criação (interpretação histórica).
Nada obstante isso, a interpretação constitucional compreende um conjunto amplo de particularidades, que a singularizam no universo da interpretação jurídica. As especificidades das normas constitucionais quanto à sua posição hierárquica, natureza da linguagem, conteúdo e dimensão política fazem com que a interpretação constitucional extrapole os limites da argumentação puramente jurídica. [...] A moderna interpretação constitucional, sem desgarrar-se das categorias do direito e das possibilidades e limites dos textos normativos, ultrapassa a dimensão puramente positivista da filosofia jurídica, para assimilar argumentos da filosofia moral e da filosofia política. Ideias como interpretação evolutiva, leitura moral da Constituição e interpretação pragmática se inserem nessa ordem de considerações (in CANOTILHO, MENDES, SARLET, STRECK, 2013, p. 92-93).
De fato, quanto mais tempo de vida tem uma Constituição, mais o contexto social na qual foi criada é afastado e a sua interpretação evolutiva se faz necessária. Neste ponto, lembro que nossa Constituição, advinda dos debates constituintes de 1987 (ainda no regime da ditadura, mas discutida em um nítido processo de abertura), foi promulgada em 1988, ano em que sequer a internet era difundida e o Brasil possuía uma política de evidente intervenção estatal na economia. Nossa sociedade mudou bastante nestes quase 30 anos. Diversos temas, como novas formas de liberdade de expressão e grampos telemáticos, por exemplo, passaram a fazer parte do novo contexto constitucional, apesar de que no momento em que a Constituição fora promulgada e muito menos em seus debates internos, nenhum dos constituintes estivesse pensando exatamente nestes assuntos.
Assim, como aduziu Gadamer, as releituras constitucionais passaram a ser uma constante na interpretação normativa brasileira, não no sentido de relativizar em excesso suas diretivas – sob pena de se desnaturar o texto constitucional - mas sim em adaptar o seu texto aos novos contextos políticos, sociais e jurídicos que permeiam a sociedade brasileira. Apesar das várias dezenas de emendas à Constituição, diversos trechos permaneceram com a redação original. E aí vem a inegável constatação: se a sociedade muda, mudam-se os olhos que interpretam a Constituição.
4.2 – Elementos da inserção da busca da felicidade no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana
4.2.1 – O princípio da dignidade da pessoa humana como fundante do ordenamento jurídico brasileiro
A história da humanidade está repleta de guerras, revoluções sanguinárias, vinganças punitivas, que terminavam por influenciar os ordenamentos jurídicos da antiguidade. Com o advento e expansão do cristianismo, uma nova luz focou a pessoa em si mesmo considerada e suas relações com outras pessoas em um novo olhar filosófico e previamente isonômico.
Das ideias do Cristo pensador (e, por que não, filósofo) se extraem as bases dos ordenamentos jurídicos do mundo ocidental. As pessoas em si mesmas consideradas passam a ter um maior valor e, a despeito de suas palavras terem sido deturpadas na Idade Média, suas ideias influenciaram toda uma linha de pensadores no período do renascimento cultural mundial, ocorrido há cerca de 300 anos.
Paulatinamente, as pessoas passaram a ter um maior valor para a ordem jurídica. Com ela, adveio o conceito de dignidade: não basta apenas respeitar o direito à vida; esta tem que ser digna de se viver.
Atualmente, o princípio da dignidade da pessoa humana está previsto em diversas constituições, sendo considerado um princípio fundante em diversos ordenamentos. Quer seja na Constituição alemã (art. 1o, I), na espanhola (preâmbulo e artigo 10, I), na portuguesa (art. 1o), na russa (art. 21), na chilena (art. 1o), na cubana (preâmbulo e art. 9o), sul-africana (art. 1o, a e diversas outras previsões).
Está previsto também no artigo 1o da Declaração dos Direitos Humanos da ONU, ao afirmar que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, bem como na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, cujo artigo 1o prescreve que “A dignidade do ser humano é inviolável. Deve ser respeitada e protegida”.
O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana no direito brasileiro é considerado “como o princípio (e valor) de maior hierarquia da nossa e de todas as ordens jurídicas que a reconheceram” (SARLET, 2011, p.340). Há de se destacar que, sendo a dignidade da pessoa humana princípio fundante do ordenamento brasileiro, uma norma hermenêutica se impõe: em favor da dignidade não pode haver dúvidas; ela sempre prevalecerá.
De outro turno, um aspecto de transcendental importância para se compreender o princípio da dignidade da pessoa humana é analisá-la com sua função/critério para a construção de um catálogo materialmente aberto de direitos fundamentais dela diretamente derivados, como o direito à vida e ao nome (v.g.), mesmo que estes direitos não estejam previstos diretamente na constituição de um país. Estaria o princípio da busca da felicidade incluído no rol de princípios derivados do princípio fundante da dignidade humana?
4.2.2 – A inclusão conceitual da busca da felicidade na dignidade humana
O princípio da busca da felicidade possui contornos próprios que devem ser corretamente observados, sob pena de se interpretá-los equivocadamente e trazer resultados que terminam por violá-lo. Nem a dignidade e nem a “busca da felicidade” podem ser interpretados como uma espécie de espelho, onde cada qual interpreta apenas o que pretende ver. Há a necessidade de um corte conceitual para lhe dar substrato jurídico. Nesse ponto, a filósofa russo/norte-americana Ayn Rand traz a seguinte definição:
O direito à busca da felicidade significa o direito do homem a viver para si, para escolher o que constitui a sua própria felicidade individual, pessoal, privada e trabalhar para a sua realização, desde que ele respeite o mesmo direito em outros. Isso significa que o homem não pode ser forçado a dedicar sua vida à felicidade de um outro homem, nem de qualquer número de outros homens. Isso significa que o coletivo não pode decidir o que deve ser o propósito da existência de um homem, nem prescrever sua escolha de felicidade (RAND, 1986, p. 29)[7].
Observa-se nesta conceituação que o direito em tela é de buscar a felicidade, não de encontrá-la e capturá-la. Significa que um homem tem o direito de tomar as ações legais necessárias que o possibilite a encontrar a felicidade; não significa, entretanto, que os outros (incluindo o próprio Poder Público) devam fazê-lo feliz.
Assim, as barreiras impostas pelo Estado ou pelas outras pessoas que não seja constitucional ou moralmente aceitas devem ser expungidas pelo ordenamento jurídico. Nos casos aqui analisados do direito norte-americano, verificou-se a existência de discrímens nos casamentos de pessoas de “cores” diferentes e de pessoas do mesmo sexo, cujas condutas eram criminalizadas e terminantemente proibidas por lei. Estas barreiras que impediam a busca da felicidade – a proibição civil e criminalização do casamento em si – é que, por serem inconstitucionais, deveriam ser declaradas nulas pelo Judiciário. Já a felicidade no casamento não pode ser considerada um direito subjetivo a ser exigível do Estado, posto que o direito em tela é o de busca, não de obtenção da felicidade.
4.3 – Os recentes casos julgados pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro
Observa-se que o Supremo Tribunal Federal vem tratando o princípio da busca da felicidade como um princípio constitucional implícito e derivado da dignidade da pessoa humana. Em recentes julgados, o STF passou a descrevê-lo como uma espécie de princípio implícito na CF/88. Confira-se os escólios do STF, litteris:
“O princípio constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cujas ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais.
Assiste, por isso mesmo, a TODOS, sem qualquer exclusão, o direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito, que se qualifica como expressão de uma ideia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e da Suprema Corte americana. Positivação desse princípio no plano do direito comparado”. Ministro Celso de Melo, RE 477.554, julgado em 16.08.2011.
Entendimento do STF quanto à pesquisa com células tronco:
“Inexistência de ofensas ao direito à vida e da dignidade da pessoa humana, pois a pesquisa com células-tronco embrionárias (inviáveis biologicamente ou para os fins a que se destinam) significa a celebração solidária da vida e alento aos que se acham à margem do exercício concreto e inalienável dos direitos à felicidade e do viver com dignidade”(Min. Celso de Mello) (ADI 3.510, rel. min. Ayres Britto, julgamento em 29-5-2008, Plenário,DJE de 28-5-2010).
Outras decisões do STF envolvendo o tema:
“Ressalto o direito do homem à constante busca da felicidade, da realização como ser humano, passando o fenômeno pela reconstrução familiar” SE 6.467/EU, Relator Ministro Marco Aurélio, DJ 30.5.2000.
“O direito fundamental assegurado na Constituição Federal refere-se se ao dever do Estado de permitir e prover os meios para a busca do sucesso, da felicidade e do bem comum” RE 370.212/RS, Relator Ministro Joaquim Barbosa, DJU 16.11.2010.
Assim, percebe-se com nitidez que o princípio da busca da felicidade está contido no princípio da dignidade da pessoa humana, sendo considerado um sub-princípio constitucional ou um princípio implícito.