A possibilidade de dano moral na violação do dever conjugal de fidelidade

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3. Casamento:

As instituições sociais variam com o tempo e os povos, com o casamento não é diferente.  Na época clássica do Direito Romano, século III, com Modestino, a idéia predominante no período referia-se à perenidade da união, bem como na comunhão de um direito humano e divino. Esta noção sacramental, bem como a referência à subsistência do vínculo por toda a vida dos cônjuges, desfigurou-se com o tempo e a evolução dos costumes, sendo construída uma nova definição, atribuída a Ulpiano, consagrada nas Institutas de Justiniano, e posteriormente adotada pelo Direito Canônico, trazendo uma concepção de matrimônio centrada mais na relação jurídica do que na celebração, na situação fática da convivência, enfim, no affectio maritalis.

O cristianismo elevou o casamento à dignidade de um sacramento, através do qual um homem e uma mulher selam sua união sob as bênçãos do céu, de maneira indissolúvel.

Há duas definições consideradas clássicas no direito brasileiro, a primeira, sobressaindo o propósito de caracterizar o matrimônio, em razão da solenidade do ato, definida por Lafayette Rodrigues Pereira (1945, p.34):

“O casamento é um ato solene pelo qual duas pessoas de sexo diferente se unem para sempre, sob promessa recíproca de fidelidade no amor e da mais estreita comunhão de vida.”

A segunda definição, de concepção contratualista, pertence a Clóvis Beviláqua (1950, p. 46):

“O casamento é um contrato bilateral e solene, pelo qual um homem e uma mulher se unem indissoluvelmente, legalizando por ele suas relações sexuais, estabelecendo a mais estreita comunhão de vida e de interesses, e comprometendo-se a criar e educar a prole, que de ambos nascer.”

Vale frisar, com relação à definição acima, que a referencia à prole não é essencial, a falta de filhos não afeta o casamento, tendo em vista que podem casar-se pessoas que, por variados motivos, não têm condições de procriar.

Identifica-se no casamento uma relação de afeto, de comunhão de interesses e principalmente, respeito, solidariedade e compromisso. Tais elementos devem estar presentes em todas as formas de convivência familiar. Os nubentes ingressam no casamento, pela vontade, porém sua forma nasce de lei, a qual estabelece suas normas, seus efeitos, suas características, podendo ser destacadas as seguintes:

  1. É ato eminentemente solene. Principiando através do processo de habilitação e publicação dos editais, desenvolvendo-se na cerimônia e prosseguindo no registro, em livro próprio. Constituem as formalidades exigidas, elementos essenciais e estruturais do casamento, cuja inobservância tornam o ato inexistente;
  2. Normas regulamentadoras são de ordem publica;
  3. Estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. Ou seja, devendo haver união exclusiva, vez que o primeiro dos deveres conjugais previstos no art. 1566 do Código Civil, é a fidelidade, traduzindo-se portanto na união se um só homem com uma só mulher, de forma exclusiva, constituindo uma família monogâmica;
  4. Exige diversidade de sexos. A diversidade sexual constitui requisito do casamento – conforme a Constituição Federal em seu art. 226, §3º - o que a principio, afasta a possibilidade de casamento entre homossexuais. Porém, diante da recente decisão do nosso Supremo Tribunal Federal, que veio a reconhecer a união homoafetiva como união estável, o supracitado requisito poderá ser relativizado, diante da possibilidade de conversão da união estável em casamento, que provavelmente também será pauta em futuros julgamentos no STF; 
  5. Não comporta termo ou condição. Tendo em vista ser negocio jurídico puro e simples;
  6. Liberdade de escolha do nubente. Cabendo exclusivamente aos consortes manifestar sua vontade, sendo a liberdade de casar reconhecida como um direito da personalidade.

Quanto à natureza jurídica, não há um consenso na doutrina. Três concepções são mais conhecidas; a concepção clássica, denominada contratualista, que considerava o casamento civil um contrato, cuja validade e eficácia decorreriam exclusivamente da vontade das partes; a concepção institucionalista considera o casamento como uma “instituição social”, refletindo uma situação jurídica cujos parâmetros encontram-se preestabelecidos pelo legislador, entendimento firmado por Washington de Barros Monteiro (1995), afirmando que o casamento constitui “uma grande instituição social, que, de fato, nasce da vontade dos contraentes, mas que da imutável autoridade da lei, recebe sua forma, suas normas e seus efeitos... A vontade individual é livre para fazer surgir a relação, mas não pode alterar a disciplina estatuída pela lei.” Existe ainda a terceira concepção, de natureza eclética ou mista, que é a defendida pela doutrina majoritária, corrente que entende ser o casamento ato complexo, por ser ao mesmo tempo contrato e instituição. Seria um contrato especial, um contrato de direito de família. Conforme ensinamento de Carvalho Santos (1961, p.10-11): “É um contrato todo especial, que muito se distingue dos demais contratos meramente patrimoniais. Porque, enquanto estes só giram em torno do interesse econômico, o casamento se prende a elevados interesses morais e pessoais e de tal forma que, uma vez ultimado o contrato, produz ele efeitos desde logo, que não mais podem desaparecer , subsistindo sempre e sempre como que para mais lhe realçar o valor.” Portanto e tendo em vista o casamento ser considerado um ato gerador de uma situação jurídica, não se pode negar a sua natureza contratual, pois é ato que advêm da livre vontade das partes, porém, onde existe um complexo de normas pré-definidas que governam os cônjuges durante a união conjugal e, inclusive sua extinção.

São diversas as finalidades do casamento e variam conforme a visão adotada; para a concepção canônica, a finalidade principal do matrimônio é a procriação e educação da prole e, secundariamente, a mútua assistência e satisfação sexual. Para a corrente individualista, a satisfação sexual, ou seja, o amor físico constitui a única finalidade do matrimonio.  Como prevê o art. 1511 do Código Civil de 2002, a principal finalidade do casamento é estabelecer uma comunhão plena de vida.

3.1 Principiologia do direito de família em relação ao casamento: Autonomia privada (liberdade de casar e liberdade de não permanecer casado) e Dignidade (respeito e considerações mútuos):

A doutrina conceitua a autonomia da vontade como a liberdade de agir que a pessoa exerce para satisfazer seus próprios anseios, a fim de alcançar o objeto de sua vontade, manifestando para tanto, sua vontade real.

A autonomia privada concede ao indivíduo a liberdade de agir, no sentido de casar ou não permanecer casado, tendo o sistema jurídico brasileiro, quebrado o princípio da indissolubilidade do matrimônio, com a criação da Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/77) abraçando a possibilidade de dissolução do casamento. E, com mais razão, com o advento da Nova Lei do Divórcio, que não exige mais qualquer prazo para a dissolução do vinculo conjugal, além de não ser discutida a culpa pelo fim do casamento, ou seja, sem qualquer requisito.

Assim, “é inadmissível que a dissolução do casamento possa ser obstada por argumentos (filigranas) jurídicas, impedindo aquele que não mais tem afeto de viver livremente. Esbarra tal possibilidade, nitidamente, na avançada proteção constitucional da pessoa humana, garantindo uma vida digna, a igualdade, e a liberdade, como princípios fundantes da ordem jurídica brasileira”, na visão aguçada de Cristiano Chaves de Farias (2004, p. 12).

Portanto, com o advento da Constituição Federal, em 1988, a qual trouxe um sem número de garantias ao cidadão, além de assegurar-lhe a liberdade e o respeito à dignidade, além da promulgação da Emenda à Lei do Divorcio em 13 de julho de 2010, a qual veio a tornar o divórcio imediato, verifica-se que o Estado não dispõe – e nem poderia – de legitimidade para impor restrições à vontade de romper ou não o casamento.

A dissolução do vínculo afetivo deve ser compreendida como verdadeiro direito da pessoa humana. Desta forma, findos os pilares de sustentação do casamento, tais como os projetos e anseios comuns, advém como conseqüência natural a dissolução do matrimonio, consubstanciado na autonomia da vontade.

A proteção à dignidade humana, prevista no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, constitui-se como cláusula geral de proteção da personalidade humana, e, sendo direito da pessoa humana decidir positivamente a respeito da constituição de um núcleo familiar, também é direito seu a decisão de não manter a entidade formada, visando o não comprometimento de sua existência digna,não comprometendo nem lesando o principio da dignidade da pessoa humana. Segundo Cristiano Chaves de Farias, trata-se de direito potestativo extintivo, elucidando que (2004, p.12):

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“... uma vez que atribui-se ao cônjuge o poder de, mediante sua simples e exclusiva declaração de vontade, modificar a situação jurídica familiar existente, projetando efeitos em sua orbita jurídica, bem como de seu consorte.”

A dignidade da pessoa humana, alçada a principio fundamental pela Constituição Brasileira, prevista no art. 1º, inciso III, constitui-se de uma verdadeira cláusula geral de tutela da pessoa humana, objetivando a proteção dos indivíduos de qualquer ofensa à sua personalidade. Para José Afonso da Silva (1995, p. 106), "a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida." Portanto, sendo desconsiderada poderá vir a acarretar desarmonia, conflito e, quase sempre, o dano, que não pode passar em branco, sem o devido ressarcimento para a pessoa lesada pelos danos sofridos, ou seja, o principio em foco deve ser ressaltado pelo nosso ordenamento jurídico, impedindo deste modo que, violações à igualdade, honra, integridade psicológica e física, assim como a liberdade ocorram.

Importante ressaltar ainda que a necessidade da tutela ao princípio da dignidade acentua-se nas relações familiares, tendo em vista que a família deve ser entendida como centro de preservação da pessoa, da essência de cada indivíduo. Em tais relações, são inúmeras as situações nas quais os direitos da personalidade são violados, como nas infrações aos deveres oriundos do casamento, ou dos deveres oriundos da união estável. Portanto tal tutela deve ser assegurada tanto no curso das relações familiares, como diante de seu rompimento. A dignidade da pessoa humana é o objeto principal tutelado pelos direitos da personalidade, tais direitos visam preservar tal princípio fundamental, esculpido na Constituição Federal, sendo uma via de mão dupla, posto que tal princípio é o fundamento dos direitos da personalidade. Portanto, ainda que a quebra do dever de fidelidade atinja diretamente os direitos da personalidade, estará sendo atingido também o principio da dignidade, pois ambos possuem íntima ligação.

Na linha de raciocínio da psicanálise – surgida no século passado com Sigmund Freud – o que se entende é que o Direito não pode aprisionar nem regular o desejo, o que se busca não é aniquilar os desejos existentes no íntimo do individuo, mas sim que o mesmo haja de acordo à lei, respeitando seu cônjuge. O ser humano é um ser de desejos, de impulsos, mas para conviver em sociedade são necessárias as limitações estatais; regras e leis que traduzem-se em uma barreira aos desejos instintivos deste individuo, visando uma melhor  organização da sociedade. A questão reside na responsabilidade sobre o descumprimento de uma norma de conduta estabelecida pela lei. Porém insta ressaltar que, em sede de direito de família, não é prevista nenhuma sanção ao cônjuge que descumpre tais normas de conduta, o que poderá acarretar, é a responsabilização civil, através do pedido indenizatório, por danos morais.

3.2. A Nova Lei do Divórcio e o fim da culpa na extinção da sociedade conjugal;

Após a consagração do Divórcio, com a Emenda Constitucional nº66/2010, que deu nova redação ao art. 226, §6º da Constituição Federal, vindo a permitir que os cônjuges pudessem divorciar-se a qualquer momento, sem precisar obedecer aos requisitos dos prazos e o da culpa pelo fim do casamento, como antes era previsto. A doutrina majoritária entende que não há mais discussão sobre a culpa pelo rompimento do casamento; vale ressaltar que tal discussão não tem nenhuma relação com a discussão da culpa em torno da responsabilidade civil. Evidencia-se, portanto que a mera ruptura da sociedade conjugal não gera indenização de danos morais, ninguém é obrigado a amar ninguém, porém se ocorre o descumprimento dos deveres conjugais, gerando danos ao cônjuge, poderá ser ajuizada ação indenizatória. Quanto à existência ou não da separação judicial e extrajudicial, divergem os autores; alguns entendem que a referida emenda aboliu tais separações, sendo derrogados todos artigos relativos a tal matéria; outros entendem que permanecem ainda em nosso sistema jurídico, tendo em vista não terem sido revogados expressamente, sendo a separação opcional. Não tem sentido este ultimo posicionamento, tendo em vista que os cônjuges poderão separar-se de fato, esta continuará a existir, isto porque a justiça, o direito, serve ao Estado, à sociedade, devendo solucionar os litígios de forma efetiva.

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Sobre a autora
Alana Plácido Caetano da Silva

Advogada. Pós graduada em Direito Civil e Direito do Consumidor.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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