Capa da publicação Laranja Mecânica e as abordagens das teorias sobre crime
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Artigo Destaque dos editores

As abordagens das teorias sobre crime.

Um diálogo com a obra Laranja Mecânica de Stanley Kubrick

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3 Os problemas encontrados no sistema prisional brasileiro

A regulamentação atinente à execução penal no Brasil encontra-se distribuída em parte da Constituição Federal de 1988, do Código Penal de 1940 e da Lei de Execução Penal (7210/84). Esse conjunto lega um amplo rol de direitos individuais ao condenado, bem de acordo com a ideia de Estado Democrático de Direito. Vamos nos deter um pouco no artigo 5º inciso XLIII: “A pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”.

Avaliando a realidade, obervamos que nem mesmo esse preceito que não requer maiores entraves à sua implementação é respeitado. O que ocorre é uma aglomeração de pessoas nas instituições penitenciárias desconsiderando-se esses critérios; apenados com diferentes idades e até de sexos distintos são aglutinadas ao acaso como denunciado na Delegacia de Abaetetuba no interior do estado do Pará em 2007.

Pelo teor do artigo 5º percebemos como o texto legal recebeu influência da Ideologia da Defesa Social, ficando clara a sua intenção de reinserir o apenado no mercado de trabalho e na convivência com a sociedade. Embora a idéia predominante entre os aplicadores da justiça seja de que a realização do prenunciado pelos textos legais é inviável, acreditamos sim, ser isto possível, através de mudanças estruturais e do investimento adequado nos recursos técnicos e humanos necessários; a resolução para as condições sub humanas em que se acham as penitenciárias brasileiras não carecem de mudanças legais, mas de mudanças político-administrativas.

A opção pela pena restritiva de liberdade é um fenômeno relativamente recente. Na Antiguidade, as principais sanções eram o banimento temporário ou vitalício, as penas físicas e o pagamento de multas. As prisões eram utilizadas apenas como garantia de execução das penas impostas.

Durante a Idade Média as sanções mais comuns eram os tormentos físicos e as punições executadas necessariamente de forma pública, para servirem como exemplo. O objetivo era a persecução do arrependimento, daí inclusive, originando-se o termo “penitenciário”, de penitência.

Nas sociedades modernas a diminuição dos crimes violentos e o aumento dos crimes econômicos, resultado indireto da propagação do capitalismo conduziu ao abandono gradativo das penas corporais e a sua substituição pelos trabalhos forçados, obedecendo aos moldes fabris. Surgem as chamadas prisões celulares, com exigência do silêncio e do isolamento, propostas por grupos religiosos protestantes. Ainda assim, algumas punições desumanas como as galés, utilizadas desde a Antiguidade continuaram persistindo principalmente em nações marítimas.

Nos modelos filadélfico e pensilvânico, o trabalho não visava fins lucrativos, mas tão somente manter ocupada a mente dos reclusos. Críticas severas foram dirigidas a esses sistemas, no tocante à questão do isolamento psicológico que constitui uma categoria de tortura. Ferri assinala que esse método prejudicava a ressocialização, ponto bem pertinente, já que é impensável ressocializar sem interagir com outrem; e mais uma vez o método centra-se no indivíduo, ignorando os fatores externos ao crime.

O sistema filadélfico entrou em declínio, contudo, devido às mudanças sócio-econômicas. Com o fim da escravidão e a expansão territorial norte-americana, houve incremento na procura por mão-de-obra, dando origem ao sistema das penitenciárias futuras, onde os prisioneiros produziam para o mercado. Assim, a noção de isolamento foi superada pelas próprias necessidades de comunicação que o trabalho sob esse novo modelo impunha.

Outro modelo proposto foi o progressivo, no qual era concedida a diminuição da pena privativa de liberdade mediante a colaboração do apenado através de boa conduta. Havia nele quatro fases:

1 – Isolamento celular e alimentação reduzida (expurgação e penitência, ainda como resquícios dos modelos prisionais anteriores);

2 – Trabalho diurno e reclusão celular noturna;

3 – Dedicação a atividades produtivas, recebendo remuneração e ficando relativamente livres para ter contato com o mundo externo;

4 – Liberdade controlada por algumas restrições.

A principal crítica a esse modelo foi a superficialidade da regeneração dos prisioneiros, já que a mudança comportamental pode ocorrer apenas pela acumulação de pontos para alcançar privilégios e não por uma ação consciente, pois o processo de mudança não é instantâneo nem homogêneo, pois cada indivíduo carrega valores e personalidades distintos. Antes de constituir-se em um autômato obediente ao Estado, o ser humano deve ter o benefício de fazer escolhas próprias.

De qualquer forma, desde o seu surgimento enquanto sanção individualizada, a privação de liberdade tem sido o recurso penal mais utilizado na atualidade, inclusive no Brasil que conta com a maior população carcerária da América Latina em números absolutos. Dados baseados nas pesquisas realizadas pela Human Rights Watch entre 1997 e 1998 em quarenta presídios espalhados em sete estados do país indicam que o retrato social dos detentos no país abrange principalmente os pobres, negros e com baixo nível de escolaridade.

Abordam também vários problemas recorrentes ao sistema como, por exemplo, a superpopulação nas celas, chegando ao ponto de em determinados locais, os presos amarrarem-se às grades, comprarem espaços ou até matarem-se para reduzir a superlotação como é mencionado na canção Cachimbo da Paz de Gabriel, o Pensador: “Tá rolando um sorteio na prisão, pra reduzir a superlotação/ Todo mês alguns presos devem ser executados e o índio dessa vez foi um dos sorteados”. Além disso, tal estado de coisas promove fugas e rebeliões, causando sério perigo à segurança pública.

As assistências previstas pela Lei de Execução Penal de 1984 não são observadas de acordo com as exigências nela contidas, dentre elas a assistência médica, ressaltando-se que boa parte das moléstias que vitimam os presidiários são causadas pela insalubridade e falta de higiene nas penitenciárias. O nível de infecção de doenças sexualmente transmissíveis entre a população carcerária brasileira é alarmante. A falta de médicos, tratamentos e medicamentos concluem o retrato do descaso.

Outro dispositivo cumprido apenas em parte é o referente às oportunidades de trabalho, educação e lazer. A própria superlotação nas instituições penitenciárias é um forte impeditivo para a educação e o treinamento profissional, dado dramático, especialmente quando o confrontamos com o fato que 87% dos presos ao redor do Brasil não possuem o ensino fundamental completo.

Fenômeno semelhante é constatado em relação às atividades recreativas dos detentos. Até mesmo o tempo dedicado a simples banhos de sol são extremamente reduzidos. O mais preocupante é a existência de um código de leis próprio obedecido pelos detentos e que se coloca acima da própria lei posta pelo Estado. Este código contra legem envolve vinganças pessoais, cobrança de espaços e uma clara hierarquia de comando entre os presos, bem como grupos de marginalizados, nos quais estão inclusos, os estupradores, homossexuais e caguetas (delatores).

A escassez de profissionais da área jurídica para prestação de assistência aos presos possibilita que muitos presos permaneçam em reclusão por um lapso de tempo bem maior do que o estabelecido em suas sentenças. O que se observa na prática é que a defesa seus interesses é feita apenas ao nível formal, não contando com o devido acompanhamento, atingindo sobremaneira aqueles acusados de baixa renda. Os prisioneiros acabam por ficar totalmente alheios aos processos nos quais são os maiores interessados.

A despeito dos mecanismos legais de correição e fiscalização cabíveis ao Ministério Público, os juízes e os Conselhos da Comunidade a efetividade de estratégias ressocializadoras está comprometida pela falta de recursos humanos. As visitas íntimas, consideradas um dos poucos pontos positivos do nosso sistema prisional são marcadas pelo constrangimento das revistas dos visitantes, pela falta de privacidade e de locais específicos. Ocorrem diferenciações preconceituosas entre presídios masculinos e femininos, onde raramente são permitidas. A falta de mecanismos de segurança da saúde, propagando a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis.

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O contexto penitenciário desfavorável ao processo ressocializador do presidiário no Brasil conduz à conclusão de que, enquanto não puderem ser modificadas as estruturas executoras do sistema penal, o mais lógico é a variação de penas que sejam priorizadas em detrimento da pena privativa de liberdade, colocando esta apenas como solução última aos indivíduos agentes de transgressões de maior gravidade.


4 CONCLUSÃO

As teorias sociológicas do crime constituíram-se em uma tentativa de explicação para determinar as motivações para o crime, relacionando-as a determinantes biológicas ou psicológicas inerentes ao próprio criminoso. Apesar de sofrerem duras críticas na atualidade, devemos considerar que cada teoria é fruto do seu próprio tempo, forjada pelo instrumental técnico da época e cada uma contribuiu para enriquecer as discussões sobre o crime.

Ao longo da história, a pena privativa de liberdade foi ganhando novas conotações. Passou de punição acessória e, apenas garantidora do pagamento de dívidas e da custódia dos acusados, ao patamar de principal medida punitiva nas sociedades contemporâneas. Seus propósitos são a compensação dos danos às vítimas e a ressocialização dos criminosos; contudo, o que se percebe, é que este último escopo não tem sido efetivado com sucesso, tornando-se as penitenciárias, meros repositórios de pessoas, já que perderam até mesmo seu efeito neutralizador de crimes e desvios e a prática demonstra a persistência da criminalidade dentro das próprias instituições prisionais.

Por meio das pesquisas utilizadas no desenvolvimento deste artigo, tivemos maior contato com a realidade do nosso sistema prisional e de suas limitações no tocante ao seu objetivo ressocializador, antes trazendo para os apenados a estigmatização, o que tem sido atestado pelas alarmantes estatísticas de reincidência desses indivíduos ao crime.

Todo esse contexto nos conduz à reflexão de que o cerne do problema não repousa na legislação, ou seja, as transformações necessárias à mudança dessa situação não implica alterações no direito penal, mas nas formas de execução das penas, especialmente das instituições penitenciárias, bem como promover a diversificação para outras formas de punição.

O debate sobre essas modificações não deve restringir-se ao meio acadêmico e aos juristas e aplicadores da lei, mas estender-se para toda a sociedade, que, aliás, só tem a lucrar com um processo concreto e vitorioso de ressocialização dos apenados, tendo ela própria, crucial participação nesse processo.

Assim, esperamos que esses diálogos venham trazer luz aos problemas discutidos ao longo do trabalho, a fim de que possamos formar indivíduos integrados, não somente através de penas ressocializadoras, mas também por meio de outros canais de socialização, notadamente as famílias e as escolas, instituições de extrema importância na formação da personalidade humana.


REFERÊNCIAS

BIBLIOGRÁFICAS:

BRASIL. Constituição da república federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2011.

COSTA, Cristina. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Moderna, 2005.

DOYLE, Arthur Conan. O arquivo secreto de Sherlock Holmes. Trad. De Antonio Carlos Vilela. São Paulo: Melhoramentos, 2004.

GIDDENS, Anthony. “Crime e Desvio” (cap. 8). In: Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.

MAGALHÃES, Carlos Augusto Teixeira. “Teoria sociológica, políticas públicas e controle do crime”. In: Caderno de Filosofia e Ciências Humanas, nº 11, out. 1998. Disponível em: <http://www.policiaeseguranca.com.br/teoria_soc.htm>.

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2009.

RIBEIRO, Cláudio Luiz Frazão. O mito da função ressocializadora da pena: a intervenção do sistema penal como fator de estigmatização do indivíduo criminalizado. São Luís: AMPEM – Associação do Ministério Público do Estado do Maranhão, 2006.

ROBERTO, Isabella. Crime e castigo em A Laranja Mecânica, de Anthony Burgess: abordagem criminológica de usos da violência. In: Via Panorâmica: Revista eletrônica de estudos anglo-americanos/an anglo-american studies journal 2. Ser. 1 (2008). P.59-82. Disponível em: <http://ler.letras.up.pt>. Acesso em: 12. out .2012.

ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1988.

SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica: introdução a uma leitura externa do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

FILMOGRÁFICAS:

A Laranja Mecânica. Direção: Stanley Kubrick, 1971. (2h 18 min).

UM sonho de liberdade. Direção: Frank Darabont, 2005. (142 min)

TRANSPOINTING – sem limites. Direção: Danny Boyle, 1996. (1h 36 min)

TROPA de Elite. Direção: José Padilha, 2007. (1h 18min).

TROPA de Elite 2: o inimigo agora é outro. Direção: José Padilha, 2010. (1h 55min).

FONOGRÁFICAS

GABRIEL, O PENSADOR. Quebra-cabeça. 1997. 1 CD, Faixa 1 (5min 32s)

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Sobre as autoras
Cleidmar Avelar Santos

Graduada em História Licenciatura pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) Pós-Graduada em Direito do Consumidor pela Universidade Estácio de Sá

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Cleidmar Avelar ; COIMBRA, Amanda. As abordagens das teorias sobre crime. : Um diálogo com a obra Laranja Mecânica de Stanley Kubrick. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4879, 9 nov. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53613. Acesso em: 18 abr. 2024.

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