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O delegado de polícia frente ao princípio da insignificância

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16/01/2017 às 11:05
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4. A ATIVIDADE DO DELEGADO DE POLÍCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

4.1. A POLÍCIA JUDICIÁRIA E O DELEGADO DE POLÍCIA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

Conforme ensina Mirabete (2006, p. 57), “a Polícia, instrumento da Administração, é uma instituição de direito público, destinada a manter e a recobrar, junto à sociedade e na medida dos recursos que dispõe, a paz pública ou a segurança individual”.

Tradicionalmente, a doutrina majoritária atribui à Polícia duas funções precípuas, quais sejam, a de Polícia Administrativa e a de Polícia Judiciária. Enquanto a primeira se relaciona à atividade de cunho preventivo e ostensivo, a qual objetiva evitar a prática de infrações penais, a Polícia Judiciária, no escólio de Brasileiro (2014, p. 110):

(...) cuida-se de função de caráter repressivo, auxiliando o Poder Judiciário. Sua atuação ocorre depois da prática de uma infração penal e tem como objetivo precípuo colher elementos de informação relativos à materialidade e à autoria do delito, propiciando que o titular da ação penal possa dar início à persecução penal em juízo. Nessa linha, dispõe o art. 4º, caput, do CPP, que a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.

Ressalte-se que, a despeito desta definição, Feitoza (2011, pp. 202-203), em posição adotada por este trabalho, entende que a Constituição Federal faz distinção entre as funções de Polícia Investigativa e de Polícia Judiciária. Isto porque, ao fazer referência às atribuições da Polícia Federal, a Carta Magna, no art. 144, §1º, I e II, outorga ao mencionado órgão atribuições para apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser na lei, bem como prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e descaminho. De outro lado, o inciso IV do mesmo dispositivo, estabelece que a Polícia Federal destina-se a exercer, com exclusividade, as funções de Polícia Judiciária da União.

De igual modo, quando a Carta Magna se refere à Polícia Civil, atribui a esta as funções de polícia judiciária e de apuração de infrações penais, nos termos de seu art. 144, §4º. Analisando esta diferenciação, Brasileiro arremata (2014, p. 111):

Como se percebe, a própria Constituição Federal estabelece uma distinção entre as funções de polícia judiciária e as funções de polícia investigativa. Destarte, por funções de polícia investigativa devem ser compreendidas as atribuições ligadas à colheita de elementos informativos quanto à autoria e materialidade das infrações penais. A expressão polícia judiciária está relacionada às atribuições de auxiliar o Poder Judiciário, cumprindo as ordens judiciárias relativas à execução de mandados de prisão, busca e apreensão, condução coercitiva de testemunhas, etc. Por se tratar de norma hierarquicamente superior, deve, então, a Constituição Federal, prevalecer sobre o teor do Código de Processo Penal (art. 4º, caput).

Extrai-se, pois, do texto constitucional, que as funções de polícia judiciária no Brasil são exercidas, em regra, pela Polícia Federal e pelas Polícias Civis dos Estados, estando as atribuições de cada uma delas bem delineadas pela Carta Magna, em seu artigo 144. Em relação às Polícias Civis, a Constituição exclui, expressamente, do âmbito de infrações por ela apuradas, as de natureza militar, nos termos do §4 do já mencionado dispositivo.

Do mesmo dispositivo constitucional, por fim, se conclui que as Polícias Civis dos Estados devem ser dirigidas por delegados de polícia de carreira, ou seja, que tenham ingressado na carreira de delegado de polícia por intermédio de concurso público de provas e títulos, tornando-se ocupantes de cargo efetivo.

4.2. A POLÍCIA CIVIL E O DELEGADO DE POLÍCIA NA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO

A Constituição Estadual de São Paulo trata da Polícia Civil em seu artigo 140 e páragrafos, inserindo-a no Título destinado à organização do Estado e em seção especialmente relacionada à Segurança Pública. O caput do dispositivo basicamente repete o dispositivo da Constituição Federal que versa sobre as polícias civis dos Estados, ressalvando, entretanto, que os delegados de polícia devem ser bacharéis de direito – o que demonstra, prima facie, a natureza jurídica do cargo –, como se vê in verbis:

Artigo 140 - À Polícia Civil, órgão permanente, dirigida por delegados de polícia de carreira, bacharéis em Direito, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

Entre os parágrafos subsequentes, devem ser destacados aqueles inseridos pela Emenda Constitucional nº 35, promulgada em abril de 2012, os quais analisaremos, um a um, a seguir.

O §3º reconhece a atividade de polícia judiciária como essencial à justiça, reconhecendo a importância do Delegado de Polícia, colocando em patamar igual ao dos Advogados, Defensores públicos, Promotores e Juiz diante do sistema de persecução penal. Ademais, estabelece que essa mesma atividade serve de instrumento para a propositura de ações penais. Abaixo, a transcrição do dispositivo:

§ 2º – No desempenho da atividade de polícia judiciária, instrumental à propositura de ações penais, a Polícia Civil exerce atribuição essencial à função jurisdicional do Estado e à defesa da ordem jurídica.

No entanto, a alteração constitucional mais substancial para a polícia judiciária bandeirante foi consagrada no §3º do artigo em comento. Conforme esse dispositivo, assegura-se ao delegado de polícia independência funcional e livre convicção nos atos de polícia judiciária, como se depreende pelo que se segue:

§ 3º – Aos Delegados de Polícia é assegurada independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária.

A independência funcional deve ser compreendida como uma garantia ao Delegado de Polícia de que, no exercício de suas atividades rotineiras, possa atuar sem qualquer ingerência hierárquica ou política em suas decisões, de modo que tenha relativa discricionariedade (nos limites da lei) para tomá-las. Para tanto, o delegado de polícia também tem garantida a livre convicção quando pratica atos de polícia judiciária. Ressalte-se que, a despeito da omissão do texto, essa livre convicção deve ser motivada e fundamentada à luz do Direito vigente, nos mesmos termos da livre convicção motivada deferida aos magistrados.

As alterações analisadas também incluíram no texto constitucional estadual a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases do concurso para ingresso na carreira de Delegado de Polícia e, ainda, a exigência de que o candidato, bacharel em Direito, tenha, no mínimo, dois anos de atividades jurídicas, em dispositivo semelhante ao requisito para ingresso nas carreiras da Magistratura e Ministério Público. Sublinhe-se que tal requisito, no concurso para Delegado de Polícia do Estado de São Paulo, pode ser substituído pela comprovação de dois anos de efetivo exercício em carreira policial-civil, como se depreende dos dispositivos abaixo transcritos:

§ 4º – O ingresso na carreira de Delegado de Polícia dependerá de concurso público de provas e títulos, assegurada a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, dois anos de atividades jurídicas, observando-se, nas nomeações, a ordem de classificação.§ 5º – A exigência de tempo de atividade jurídica será dispensada para os que contarem com, no mínimo, dois anos de efetivo exercício em cargo de natureza policial-civil, anteriormente à publicação do edital de concurso.

Verifica-se, destarte, que a reforma em tela consagrou, na Constituição Estadual de São Paulo e por meio de todos os dispositivos alterados, o reconhecimento de que a carreira de Delegado de Polícia possui natureza jurídica, assim como as decisões técnicas tomadas pela autoridade policial, que devem ser pautadas e fundamentadas no Direito.

4.3. LEI 12.830/2013: A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL CONDUZIDA PELO DELEGADO DE POLÍCIA

Em 20 de Junho de 2013, após aprovação pelo Congresso Nacional, a Presidente da República Dilma Rousseff sancionou a Lei 12.830, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia. O referido diploma trouxe importantes dispositivos para o aperfeiçoamento da investigação criminal, os quais passaremos a analisar a seguir.

O art. 2º da mencionada Lei estabelece o seguinte:

Art. 2o  As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado. 

Como se vê, o dispositivo em comento repete a distinção feita pela Constituição Federal em funções de polícia judiciária (polícia judiciária stricto sensu) e de apuração de infrações penais (polícia investigativa). Para aprofundamento do tema, remetemos o leitor ao tópico anterior, no qual analisamos a mencionada diferenciação.

Ainda, verifica-se que o legislador reconhece a natureza jurídica das atividades capitaneadas pelo Delegado de Polícia, sejam elas no exercício de suas funções de polícia judiciária ou na apuração de infrações penais. No escólio de Sannini Neto (2014, p. 45), “em outras palavras, o legislador reconhece que a autoridade de polícia judiciária é essencial para a Justiça, assim como os juízes, promotores e advogados/defensores públicos”.

Destaque-se, também, que o dispositivo legal em tela estabelece que as funções exercidas pelo Delegado de Polícia são exclusivas de Estado. De acordo com Sannini Neto (2014, p. 45):

Isso significa que o Estado chamou para si a responsabilidade pela investigação de infrações penais. Nada mais lógico e oportuno, afinal, a investigação criminal, por vezes, acaba restringindo direitos fundamentais, o que demanda a atuação de agentes estatais, que pautam suas ações pelo princípio da legalidade pública, só podendo fazer aquilo que está previsto em lei. Dessa forma, investigações realizadas por particulares são absolutamente ilegais, não podendo ser toleradas em nosso ordenamento jurídico, principalmente por não contarem com qualquer previsão legal. Reforçando esse entendimento, consignamos que procedimentos investigativos que não possuem perfeita regulamentação podem acarretar em abusos e violações aos direitos do investigado, prejudicando, inclusive, a correta apuração do crime.

O §1º do art. 2º do diploma analisado estabelece o que se segue:

§ 1o  Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.

Verifica-se, da interpretação deste dispositivo, que a expressão “autoridade policial” se refere ao delegado de polícia. Para Cabette (2013), o parágrafo em tela “reforça esse entendimento, impedindo que o Inquérito Policial ou o Termo Circunstanciado sejam presididos por outros policiais como, por exemplo, as Polícias Militares, Rodoviárias etc”.

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Interpretando o dispositivo, Sannini Neto (2014, pp. 46-47) assevera:

[...] podemos afirmar que cabe ao delegado de polícia a condução da investigação criminal, que, via de regra, se materializa por meio do inquérito policial, que, por sua vez, é o único procedimento de investigação criminal com regulamentação legal.

E arremata:

[...] insistimos que em se tratando de procedimento cujo objetivo exclusivo seja a apuração de infrações penais, essa atividade deve, por força de lei, ser conduzida por delegado de polícia. Desse modo, numa interpretação a contrario sensu, seria ilegal a investigação criminal conduzida pelo Ministério Público. A uma, porque ela é desenvolvida sem participação do delegado de polícia. A duas, porque essa investigação não possui qualquer previsão legal.

Da mesma forma, considerando que interceptações telefônicas e mandados de busca e apreensão têm por objetivo a apuração das circunstâncias, materialidade e autoria de infrações penais, tais procedimento, que são essencialmente investigativos, não podem ser conduzidos pela polícia militar, salvo em se tratando de crimes militares.

O dispositivo seguinte versa sobre o poder requisitório do delegado de polícia, como se vê, in verbis:

 § 2o  Durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos.

Este dispositivo autoriza que o delegado de polícia, na condição de presidente da investigação criminal determine as providências necessárias para cabal elucidação dos fatos. Como bem explica Cabette (2013):

Esse § 2º. não traz nenhuma grande novidade ao mundo jurídico, pois que trata da atividade de investigação já comumente e tradicionalmente deferida às Autoridades Policiais, inclusive nos termos dos artigos 6º.  e 7º., CPP até mais detalhadamente. O dispositivo, por óbvio, não vem a excepcionar as chamadas reservas de jurisdição constitucional e legalmente previstas. Por exemplo, continua o Delegado necessitando de ordem judicial para a realização de busca e apreensão domiciliar fora das exceções constitucionalmente previstas; o mesmo se pode dizer das interceptações telefônicas, quebras de sigilos bancário e fiscal etc.

Segundo Sannini Neto (2014, p. 48), ainda sobre o dispositivo, este possibilita às autoridades policiais a requisição de informações, por exemplo, às operadoras telefônicas, instituições financeiras, provedoras de internet e administração de cartão de crédito, desde que o conteúdo verse sobre a qualificação pessoal do investigado, filiação ou endereço. Entretanto, conforme o doutrinador, as informações protegidas pela cláusula de reserva de jurisdição continuam dependendo de autorização judicial, tais como quebra de sigilos bancários ou telefônicos.

O §3º do diploma legal estudado recebeu veto presidencial, sendo que dispunha, no projeto de lei, da seguinte redação:

 § 3o  - O delegado de polícia conduzirá a investigação criminal de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, com isenção e imparcialidade.

As “razões do veto” foram expostas na Mensagem Presidencial nº 251/2013, in verbis:

Da forma como o dispositivo foi redigido, a referência ao convencimento técnico – jurídico poderia sugerir um conflito com as atribuições investigativas de outras instituições, previstas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal. Dessa forma, é preciso buscar uma solução redacional que assegure as prerrogativas funcionais dos delegados de polícia e a convivência harmoniosa entre as instituições responsáveis pela persecução penal.

No entanto, em nossa visão, tal argumentação não merecia prosperar, já que o dispositivo em comento apenas consolidaria a tão necessária imparcialidade que deve reger o trabalho da autoridade policial, baseada em seu livre convencimento jurídico, sem que existam influxos e ingerências políticas nas decisões do delegado de polícia. Como bem explica, mais uma vez, Sannini Neto (2014, p. 49):

Considerando que o Delegado de Polícia possui uma formação essencialmente jurídica, devendo ser bacharel em Direito, sendo submetido a concursos públicos extremamente rígidos, assim como Juízes, Promotores, Defensores Públicos etc., é dever da Autoridade de Polícia Judiciária analisar o fato criminoso sob todos os aspectos jurídicos. Mais do que isso, na condução da investigação, que objetiva a perfeita elucidação dos fatos, o Delegado de Polícia pode coordenar as diligências de maneira discricionária, de acordo com a necessidade para a formação do seu convencimento sobre o caso. No mesmo sentido e reforçando o exposto nesse ponto, lembramos que a Constituição do Estado de São Paulo garante em seu artigo 140, §3°, que “aos Delegados de Polícia é assegurada independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária”.

Isso não significa, todavia, que a Autoridade Policial possa se eximir de atender uma requisição feita pelo Ministério Público. Muito pelo contrário. Como titular da ação penal, o Ministério Público pode requisitar diligências que sejam imprescindíveis para o exercício desse mister. O Delegado de Polícia, por sua vez, deve acatá-las não por subordinação ao Ministério Público, mas por respeito ao princípio da legalidade, que deve pautar toda a investigação criminal.

O §4º representa importante garantia ao trabalho do delegado de polícia, como se pode depreender da literalidade do texto legal:

§4º. O inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei em curso somente poderá ser avocado ou redistribuído por superior hierárquico, mediante despacho fundamentado, por motivo de interesse público ou nas hipóteses de inobservância dos procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia da investigação.

No escólio de Cabette (2013), o parágrafo em questão, além de representar uma garantia ao delegado de polícia, também “é uma garantia da sociedade, contra eventuais manipulações na fase investigatória”. Para o doutrinador, o dispositivo consolida o “princípio do delegado natural”, nos mesmos termos do “princípio do juiz natural”. E continua:

A partir de agora a avocação ou redistribuição discricionária, sem qualquer justificativa, não pode ser levada a efeito pela hierarquia superior da Polícia Civil ou Federal. A avocação ocorre quando uma Autoridade Policial hierarquicamente superior àquela que dá andamento ao feito por atribuição natural, chama para si o Inquérito ou outro procedimento (v.g. Termo Circunstanciado) e ela mesma (autoridade superior) passa presidi-lo. Na redistribuição essa autoridade superior irá retirar do Delegado Natural o procedimento e repassá-lo a outro Delegado designado para prosseguir nas apurações. Tudo isso, a partir de agora, somente pode ser levado a termo mediante a devida fundamentação, ou seja, a indicação transparente dos motivos que levam a essa alteração da atribuição natural. 

Prosseguindo na interpretação dos dispositivos da Lei 12.830/2013, passaremos à análise do §5º do mesmo artigo, que estabelece o seguinte: 

§ 5o  A remoção do delegado de polícia dar-se-á somente por ato fundamentado.

O parágrafo em tela também traz importante garantia ao delegado de polícia, a qual Sannini Neto (2014, p. 51) nomina de “inamovibilidade relativa”. De acordo com a redação, a autoridade policial não poderá ser removida de sua lotação sem prévia justificativa. Tal medida visa, mais uma vez, proporcionar isenção ao trabalho do delegado de polícia, evitando interferências externas e remoções políticas, que objetivem, por exemplo, tão-somente prejudicar o andamento de alguma investigação presidida por aquela autoridade.

O último parágrafo do dispositivo em testilha versa sobre o formal indiciamento. Vejamos:

§ 6o  O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.

Na lição de Cabette (2013), o indiciamento é a exteriorização da convicção da autoridade policial quanto às suas suspeitas em relação à autoria delitiva. Segundo o professor, o mencionado ato não possui qualquer carga acusatória, já que nem o Ministério Público e muitos menos o Judiciário estão atrelados à convicção do delegado de polícia.

Examinando especificamente o dispositivo em tela, Sannini Neto (2014, p. 51) declara:

Com a inovação legislativa, o indiciamento deve, necessariamente, ser precedido de um despacho fundamentado em que o delegado de polícia exponha todos os aspectos jurídicos utilizados na formação de seu convencimento. Demais disso, a autoridade policial deverá indicar a autoria, os indícios de materialidade do crime e todas as suas circunstâncias.

Verifica-se também que o indiciamento se torna, expressa e legalmente, ato privativo do delegado de polícia. Isso significa dizer que nem o membro do Ministério Público nem o magistrado podem determinar o formal indiciamento de determinado investigado, sob pena de interferência no convencimento técnico-jurídico da autoridade policial. Acerca do indiciamento, analisaremos o instituto mais detidamente no tópico subseqüente, ao qual remetemos o leitor.

Por fim, o art. 3º do novel diploma estabelece o seguinte:

Art. 3o  O cargo de delegado de polícia é privativo de bacharel em Direito, devendo-lhe ser dispensado o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados.

Como se conclui deste dispositivo, a lei 12.830/2013 exige que o ocupante do cargo de delegado de polícia seja bacharel em Direito, em consonância com o art. 2º do mesmo diploma, o qual prevê que as atividades exercidas pelo delegado possuem “natureza jurídica”. Ademais, tal requisito para ingresso do cargo vem ao encontro dos dispositivos já analisados na Constituição do Estado de São Paulo, que exigem, além de o delegado de polícia ser bacharel em Direito, que possua dois anos de atividades jurídicas.

No que concerne ao “tratamento protocolar”, apesar de desnecessária a previsão, por não trazer qualquer melhoria à eficiência da atividade policial, essa visa a corrigir antiga distorção, uma vez que, todas as demais carreiras jurídicas eram tratadas com o pronome “Excelência”, o que não se dava com o delegado de polícia.

4.4. O INDICIAMENTO E A PRESIDÊNCIA DO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE: ATOS PRIVATIVOS DO DELEGADO DE POLÍCIA

Como vimos no tópico anterior, a recente Lei 12.830/2013 trouxe tímida regulamentação acerca do instituto do indiciamento, como se repete a seguir:

Art. 2º, §6º - O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.

Conforme se nota, a lei em questão não trouxe qualquer definição do ato indiciamento, cabendo a sua conceituação à doutrina processual penal. Neste sentido, Távora e Alencar (2013, p. 126), entendem que o indiciamento:

[...] é a informação ao suposto autor de um fato objeto das investigações. É a cientificação ao suspeito de que ele passar a ser o principal foco do inquérito. Saímos do juízo de possibilidade para o de probabilidade e as investigações são centradas em pessoa determinada. Logo, só cabe falar em indiciamento se houver um lastro mínimo de prova vinculando o suspeito à prática delitiva. Deve a autoridade policial deixar clara a situação do indivíduo, informando-lhe a condição de indiciado sempre que existam elementos para tanto.

Trata-se, pois, de um ato de atribuição privativa da autoridade policial, por ela formalizado quando, ao longo da investigação, se convence no sentido de que há indícios mínimos de que um suspeito tenha praticado determinado crime (SANNINI NETO, 2014, p. 92). Constitui também garantia ao investigado, de modo que possa se defender das suspeitas que sobre ele recaem. Ainda, segundo este doutrinador, analisando o instituto do ponto de vista pragmático:

[...] durante a persecução penal, a certeza sobre a autoria de um crime varia de acordo com suas fases. Para que seja instaurado o inquérito policial, basta que se vislumbre a possibilidade de ter havido um fato punível, independentemente do conhecimento de sua autoria, já que uma das funções da investigação preliminar é descobrir seu autor.

O inquérito policial, portanto, nasce da possibilidade de autoria, mas busca a probabilidade. Constatada essa probabilidade, deve ser efetivado o formal indiciamento. A partir desse momento, o status do sujeito passivo da investigação criminal passa de suspeito/investigado para indiciado. Notem que nesse instante a certeza em relação à autoria já é maior que no início da persecução penal.

Entretanto, o formal indiciamento não vincula quaisquer das demais autoridades envolvidas na persecução penal, uma vez que deve ser respeitado o livre convencimento técnico-jurídico de cada um destes. Nada impede, por exemplo, que o membro do Ministério Público proponha o arquivamento de inquérito policial em que haja sujeito indiciado. De igual modo, se denunciado, o magistrado pode absolvê-lo ou condená-lo. Consoante ensinamento de Sannini Neto (2014, p. 94), “nenhum desses atos viola o princípio da presunção de inocência”, já que nessas fases vigora o princípio do in dubio pro societates.

Do art. 6º, §2º, da Lei 12.830/2013, se inferem três premissas básicas. A primeira delas se refere ao fato de que o indiciamento é ato privativo do delegado de polícia. Deste modo, em consonância com decisões dos Tribunais Superiores, não se revela possível que o membro do Ministério Público ou autoridade judiciária requisitem ao delegado de polícia o formal indiciamento do investigado, caso a autoridade policial não o tenha realizado, sob pena de interferência indevida no convencimento e nas atribuições deste. Nesse sentido, opinam Távora e Alencar (2013, p. 126):

[...] não é adequado que o ato de indiciar seja requisitado pelo juiz ou pelo Ministério Público. Tais autoridades podem determinar a instauração da investigação. Todavia, a definição subjetiva do foco investigativo é de atribuição do titular do inquérito.

Em segundo plano, o ato de indiciamento deve ser precedido de despacho fundamentado da autoridade policial. Esta exigência praticamente repete normativa interna da Polícia Civil do Estado de São Paulo (Portaria DGP nº 18/1998) e da Polícia Federal (Instrução Normativa nº 11/2011). Ademais, revela consonância com o princípio da publicidade, que deve reger todos os atos administrativos, previsto no art. 37 da Constituição Federal.

Por fim, ao determinar o indiciamento, o delegado de polícia deve apontar as razões jurídicas de seu convencimento, bem como indicar a suposta autoria, a materialidade e as circunstâncias do ocorrido.

De igual modo, a prisão em flagrante é regulamentada pelo Código de Processo Penal nos artigos 301 e seguintes, o qual impõe, sem qualquer sombra de dúvida, a necessidade de apresentação de qualquer indivíduo surpreendido em situação de suposto flagrante delito à autoridade policial. Sannini Neto (2014, p. 160), analisando a natureza jurídica da prisão em flagrante, entende que:

Trata-se de um ato jurídico-administrativo efetivado pelo delegado de polícia, que, analisando o caso concreto, ouvindo as testemunhas, a vítima e o conduzido (imputado), forma seu convencimento jurídico e, de maneira fundamentada, determina a formalização da prisão em flagrante ou não.

A jurisprudência também é remansosa no sentido de que a lavratura do auto de prisão em flagrante não deve ocorrer de forma automática, possuindo o delegado de polícia certo grau de discricionariedade. Deste modo, analisará os elementos que lhe são trazidos, sem prejuízo de outras diligências investigatórias que julgar necessárias e decidirá, fundamentadamente, pela lavratura ou não do auto flagrancial. Abaixo, algumas decisões sobre o tema, as quais, inclusive, afastam eventual incidência do crime de prevaricação quando a autoridade policial decide, de forma justificada, pela não lavratura do auto:

A determinação da lavratura do auto de prisão em flagrante pelo delegado de polícia não se constitui em um ato automático, a ser por ele praticado diante da simples notícia do ilícito penal pelo condutor. Em face do sistema processual vigente, o Delegado de Polícia tem o poder de decidir da oportunidade ou não de lavrar o flagrante. (RT, 679/351).

A autoridade policial goza de poder discricionário de avaliar se efetivamente está diante de notícia procedente, ainda que em tese e que avaliados perfunctoriamente os dados de que dispõe, não operando como mero agente de protocolo, que ordena, sem avaliação alguma, flagrantes e boletins indiscriminadamente. (RJTACRIM, 39/341).

Compete privativamente ao delegado de polícia discernir, dentre todas as versões que lhe sejam oferecidas por testemunhas ou envolvidos em ocorrência de conflito, qual a mais verossímil e, então, decidir contra quem adotar as providências de instauração de inquérito ou atuação em flagrante. Somente pode ser acusado de se deixar levar por sentimentos pessoais quando a verdade transparecer cristalina em favor do autuado ou indiciado e, ao mesmo tempo, em desfavor daquele que possa ter razões para ser beneficiado pelos sentimentos pessoais da autoridade. (RT, 622/296-7; RJTACRIM, 91/192).

Para configuração do crime previsto no art. 319 do CP é indispensável que o ato retardado ou omitido se revele contra disposição expressa de lei. Inexistindo norma que obrigue o Delegado de Policia autuar em flagrante todo cidadão apresentado como autor de ilícito penal, considerando seu poder discricionário não há se falar em prevaricação. (RT 728/540).

Inocorre o delito do art. 319 do CP, na conduta de Delegado de Polícia que deixou de lavrar auto de prisão em flagrante de acusado que nessa situação se encontrava, iniciando somente o Inquérito Policial, pois a regra da lavratura do auto de prisão em flagrante em situações que o exijam, não é rígida, sendo possível certa discricionariedade no ato da Autoridade Policial, que pode deixar de fazê-lo em conformidade com as circunstâncias que envolvem cada caso. (RDJTACRIM, 51/193).

O Delegado de Polícia não tem função robotizada. É bacharel em Direito. Submete-se a concurso público. Realiza, na própria Instituição, cursos específicos. Tem, na estrutura de sua função, chefias hierárquicas e órgão correcional superior. Não se pode, pois, colocar seu agir sempre sob a suspeita de cometimento de crime de prevaricação, caso não lavre o flagrante, principalmente quando esse seu agir pressupõe decisão de caráter técnico-jurídico, como o é no caso do auto de flagrante. Está na hora, pois, mormente neste momento em que se procura alterar o Código de Processo Penal, de se conferir ao Delegado de Polícia regras claras e precisas para que o exercício de sua função não seja um ato mecânico, burocrático, carimbativo, dependente, amedrontado ou heróico, enfim, não condizente com a alta responsabilidade e dever que a função exige, até para que se possa cobrar plenamente essa responsabilidade que lhe é conferida e puni-lo pelos desvios praticados. (TJSP, HC 370.792).

Ressalte-se que, de forma excepcional, permite-se que outras autoridades, que não o delegado de polícia, lavrem autos de prisão em flagrante. Sannini Neto (2014, p. 240) aponta quatro dessas hipóteses especiais, a saber: a) a mesa diretora da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal ou o parlamentar previamente indicado conforme o regimento interno, nos crimes praticados nas dependências destas Casas, nos termos da Súmula 397 do STF; b) as comissões parlamentares de inquérito nos crimes praticados durante suas sessões; c) o oficial militar indicado para função, quando se tratar de crime militar; d) a autoridade judiciária, quando o crime for cometido em sua presença ou contra sua pessoa, desde que esteja no exercício de suas funções, nos moldes do art. 307, CPP.

Arrematando este raciocínio, deve-se ter em conta que, ao dar voz de prisão em flagrante a determinado ou ratificar voz de prisão anteriormente dada por outro agente da autoridade ou qualquer do povo, o delegado de polícia, além de determinar a lavratura do auto de prisão respectivo, determinará o formal indiciamento do investigado, uma vez que, se há elementos que possibilitem o encarceramento do sujeito, presentes estão, ao menos, elementos mínimos de sua autoria, o que ensejará o seu indiciamento.

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Sobre o autor
Rafael Faria Domingos

É Delegado de Polícia no Estado de São Paulo. Especialista em Direito Penal e Processo Penal com Capacitação para Docência no Ensino Professor. Professor do Centro Universitário UNIFAFIBE (Bebedouro/SP) e do Centro Universitário UNIFEB (Barretos/SP), onde ministra a disciplina de Direito Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DOMINGOS, Rafael Faria. O delegado de polícia frente ao princípio da insignificância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4947, 16 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55049. Acesso em: 29 mar. 2024.

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