O Mestre disse: “Supremo, de fato, é o Caminho do Meio como virtude moral. Tem sido raro entre o povo há muito tempo”. (Confúcio)
INTRODUÇÃO
No decorrer das últimas horas, instalou-se uma desmedida discussão sobre o destino da Operação Lava Jato, que em tese correria riscos, após a confirmação da triste notícia de falecimento do Ministro Teori Zavascki, devido à queda de um jatinho particular no estado do Rio de Janeiro. Tamanho alvoroço se deve, principalmente, ao fato de que o referido magistrado homologaria, nos próximos dias, os acordos de delação de quase oitenta executivos da Odebrecht (Richter, 2016).
Explica-se: somente após a homologação, as informações fornecidas pelos delatores podem ser usadas nas investigações.
Homologação. 1. Direito processual civil. Decisão pela qual o magistrado aprova um acordo ou ato processual, levado a efeito, para que irradie consequências jurídicas. 2. Direito administrativo. Ato confirmatório emanado de autoridade pública competente, dando eficácia ou força executória a um outro, anterior. (Diniz, 2013).
Acrescente-se à tragédia, a notícia de que o então Presidente da República, Michel Temer, indicaria imediatamente o sucessor do falecido Ministro, “herdeiro” dos processos de seu gabinete, inclusive os oriundos da Operação Lava Jato (G1, 2017). Em outras palavras, seria escolhido um juiz para um caso preexistente, indicado e sabatinado por políticos suspeitos de envolvimento com o maior caso de corrupção da história recente.
A operação Lava Jato é a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro que o Brasil já teve. Estima-se que o volume de recursos desviados dos cofres da Petrobras, maior estatal do país, esteja na casa de bilhões de reais. Soma-se a isso a expressão econômica e política dos suspeitos de participar do esquema de corrupção que envolve a companhia. (MPF, 2016).
O objetivo do artigo é explanar sobre a sucessão por morte do Ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki e explicar as possibilidades de redistribuição dos processos que estavam em seu gabinete, demonstrando a inconstitucionalidade do art. 38, IV, “a”, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e apontando uma possível solução para o impasse.
Por meio da decretação do regime democrático deu-se o equilíbrio entre a sociedade e o Estado. Nesse sentido, houve mudanças sociais de grande relevância, como o surgimento do Estado democrático de direito e a decretação de direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1988. (Dalmas, 2015).
Note-se que, ao longo do texto, nos ateremos ao Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, RISTF, em uma interpretação ponderada, ora recorrendo à história, ora à literalidade, com o objetivo de nos mantermos coerentes com a Constituição Federal de 1988, sob a qual devem ser feitas todas as interpretações.
A FUNÇÃO DO MINISTRO ZAVASCKI NA LAVA JATO
Primeiramente, cabe o esclarecimento de que o Ministro Teori Zavascki era o relator dos processos da Operação Lava Jato no STF. Portanto, o primeiro responsável pela análise de denúncias, recursos e delações premiadas oriundos dessa Operação, em tramitação naquele Tribunal.
Relator. Ministro sorteado para dirigir um processo. Também pode ser escolhido por prevenção, quando já for o relator de processo relativo ao mesmo assunto. O relator decide ou, conforme o caso, leva seu voto para decisão pela turma ou pelo plenário. (STF, Glossário, 2017).
O REGIMENTO INTERNO DO STF
BRASIL IMPÉRIO E BRASIL REPÚBLICA
Embora tenha sido criado em 1824 e instalado poucos anos depois, o Supremo Tribunal Federal, que até a Constituição Republicana se chamava Supremo Tribunal de Justiça, teve seu primeiro Regimento Interno em 1891. Originalmente a Constituição de 1824 dizia o seguinte, transcrito em português da época:
Art. 163. Na Capital do Imperio, além da Relação, que deve existir, assim como nas demais Provincias, haverá tambem um Tribunal com a denominação de - Supremo Tribunal de Justiça - composto de Juizes Letrados, tirados das Relações por suas antiguidades; e serão condecorados com o Titulo do Conselho. Na primeira organisação poderão ser empregados neste Tribunal os Ministros daquelles, que se houverem de abolir.
Art. 164. A este Tribunal Compete:
I. Conceder, ou denegar Revistas nas Causas, e pela maneira, que a Lei determinar.
II. Conhecer dos delictos, e erros do Officio, que commetterem os seus Ministros, os das Relações, os Empregados no Corpo Diplomatico, e os Presidentes das Provincias.
III. Conhecer, e decidir sobre os conflictos de jurisdição, e competencia das Relações Provinciaes. (Carta de Lei de 25 de Março de 1824)
Ocorre que o primeiro regimento foi revogado por outro, em 1909; que por sua vez foi substituído em 1940. Naquela época, não havia a previsão de substituição de um ministro por causa de morte, mas apenas por impedimento em sentido amplo, como se pode verificar:
Art. 16. O Presidente de cada Turma será substituído, em seus impedimentos, pelo Ministro que, em antiguidade, imediatamente se lhe seguir, dentre os presentes. (RISTF, 1940).
Desse modo, mediante a compensação do número de processos e extensão dos respectivos prazos, evitava-se escolher o juiz para o caso já conhecido, o que seria um colossal absurdo. Ao invés disso, a antiguidade era o critério utilizado para substituir o impedido – temporariamente ou permanentemente.
SUPRESSÃO DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL NO REGIMENTO INTERNO DO STF (RISTF)
O princípio do juiz natural identifica-se como a proibição de tribunais de exceção e como garantia de juiz competente, garantindo principalmente a imparcialidade do julgador, além de garantir a segurança do povo contra os arbítrios estatais, a administração da justiça em um Estado Democrático de Direito. Desta forma, a consagração do princípio do juiz natural representa uma conquista importante da sociedade, portanto, não podendo ser violado. (Machado, 2007)
Em 1969, devido a graves problemas de saúde, o Presidente Marechal Costa e Silva precisou se afastar do governo e diante da ausência de previsão constitucional, o Brasil foi regido por uma Junta Provisória, composta pelos militares, General Aurélio de Lira Tavares, Almirante Augusto Rademaker e o Marechal-do-Ar Márcio de Sousa Melo. Ao final do mesmo ano, iniciou-se o mandato do General de Exército Emílio Garrastazu Médici, que vigorou até o ano de 1974.
Nesse contexto, durante um dos momentos políticos mais turbulentos da história latino-americana, o Princípio do Juiz Natural foi abandonado pelo Regimento Interno do STF, permitindo-se escolher através de critérios subjetivos o magistrado responsável por processos preexistentes:
Art. 37 — O relator é substituído:
IV — em caso de aposentadoria, renúncia ou morte:
a) pelo Ministro nomeado para a sua vaga; (RISTF, 1970)
Desse modo, ficou oficializado o tribunal de exceção no Supremo Tribunal Federal do Brasil. Bastaria o relator de um caso importante se aposentar ou renunciar (ou, em última hipótese, falecer). De pronto, designar-se-ia um magistrado para o processo, segundo as intenções políticas do indicador.
IMPORTÂNCIA DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL
A fim de oferecer o melhor resumo sobre um tema tão vasto, segue a citação de Marques, que explica em poucas linhas sobre os riscos para o Estado Democrático de Direito, quando se desrespeita o referido princípio, pois simultaneamente se admite uma afronta: 1- à teleologia da Constituição Federal; 2- ao direito de todo cidadão ser processado e julgado por juiz previamente competente; 3- à imparcialidade do julgador; 4- à liberdade de atuação do magistrado.
(...) o principio do juiz natural, inserido nos incisos XXXVII e LIII, do art. 5º, da Constituição Federal do Brasil de 1988, traz respaldo e garantia a todos os jurisdicionados brasileiros, garantia de serem processados e julgados por juízes previamente competentes, e competência advinda da Lei Maior, na forma da lei, esperando sempre que sejam imparciais, sendo proibida a designação de juízo ex ‘post facto’, como bem disse o professor Costa Machado. (...) Não podendo deixar de destacar que as garantias e vedações previstas no art. 95, da Constituição Federal de 1988, devem ser interpretadas também como um instrumento de proteção aos magistrados, capaz de lhes assegurar a independência necessária ao pleno desempenho das funções jurisdicionais, propiciando um julgamento justo e imparcial. (Marques, 2010).
ATUAL REGIMENTO INTERNO DO STF
O atual RISTF foi aprovado e oficializado no dia 15 de outubro de 1980 e publicado no Diário da Justiça em 27 de outubro do mesmo ano. A sua atualização manteve o assombroso item antidemocrático, que agora – em 2017 – está sendo evocado pela Presidência da República e apontado como solução por antigos membros do STF (G1, 2017). Vejamos:
Art. 38. O Relator é substituído:
IV – em caso de aposentadoria, renúncia ou morte:
a) pelo Ministro nomeado para a sua vaga; (RISTF, 1980)
SOLUÇÃO
Sabendo-se que os Regimentos Internos dos Tribunais devem ser lidos à luz da Carta Magna, e não o contrário, o Princípio do Juiz Natural precisa ser respeitado, para que não se coloque em dúvida mais uma vez e em tão pouco tempo, o aspecto democrático das instituições brasileiras. Mas, além do artigo 68 do RISTF, dedicado a situações excepcionais específicas, haveria outra possibilidade?
Uma declaração de um dos Procuradores da Operação Lava Jato, Deltan Dallagnol, realizada em 2016, revela indiretamente os riscos de se confiar no atual Congresso Nacional, para indicar o próximo Relator dos processos referentes à Operação.
Mude ou não o governo, continuaremos tendo muitos inimigos no poder, porque grande parte das pessoas que estão no Congresso e que potencialmente venham a assumir inclusive o poder Executivo são investigadas pela Lava Jato. (...) E temos um problema crônico no sistema de justiça criminal que estimula corrupção por não punir criminosos – basta ver que apenas 3% dos crimes de corrupção são punidos. (Dallagnol, In: Mendonça, 2016).
Uma possível solução, diante da ausência de uma norma condigna com a Constituição Federal, seria retornar ao procedimento que foi abandonado durante o Regime Militar e, aplicando-se o princípio da razoabilidade, impor a distribuição dos processos do ausente Ministro, àquele que o seguir em antiguidade, realizando a devida compensação em distribuições posteriores e promovendo a readequação dos respectivos prazos (RISTF, 1940).
Desse modo, evitar-se-ia, inclusive, impor ao Ministro recém-nomeado – e à Excelsa Corte – situações constrangedoras, capazes de amordaçar o Poder Judiciário, na medida em que podem limitar a atuação do magistrado, pois ele seria nomeado para um caso específico, preexistente, amplamente conhecido e de grande valia para a sociedade, como é a Operação Lava Jato.
No caso específico do falecimento do Ministro Teori Zavascki, que era o menos antigo de sua Turma de Julgadores, caberia ao decano Ministro Celso de Mello a sua substituição.
Respeitando-se a Carta Magna e o Princípio do Juiz Natural, o mesmo procedimento deveria ser tomado por padrão em todos os Tribunais do país, em situações nas quais há substituição permanente de juízes do segundo grau, sempre com a compensação das distribuições processuais e readequação dos prazos. Assim, promover-se-ia mais um passo no sentido da redemocratização das Instituições brasileiras, em especial do Poder Judiciário.
Notas
(*) Art. 68. Em habeas corpus, mandado de segurança, reclamação, extradição, conflitos de jurisdição e de atribuições, diante de risco grave de perecimento de direito ou na hipótese de a prescrição da pretensão punitiva ocorrer nos seis meses seguintes ao início da licença, ausência ou vacância, poderá o Presidente determinar a redistribuição, se o requerer o interessado ou o Ministério Público, quando o Relator estiver licenciado, ausente ou o cargo estiver vago por mais de trinta dias. ; § 1º Em caráter excepcional poderá o Presidente do Tribunal, nos demais feitos, fazer uso da faculdade prevista neste artigo. ; § 2º REVOGADO. ; § 3º Far-se-á compensação, salvo dispensa do Tribunal, quando cessar a licença ou ausência ou preenchido o cargo vago. (BRASIL, 2016).
BIBLIOGRAFIA
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