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A “audiência de custódia” na República Federativa do Brasil

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3.AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA NA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL: TRATADOS INTERNACIONAIS E O CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

3.1O CÓDIGO DE PROCESSO PENAL BRASILEIRO E A “AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA”

Findadas as considerações sobre as previsões análogas á Audiência de Custódia nos instrumentos internacionais de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), e Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, neste capítulo, trataremos das Audiências de Custódia e o Código de Processo Penal brasileiro.

Pelas tratativas expostas deve o leitor já ter percebido que as Audiências de Custódia na República Federativa do Brasil ainda não foram devidamente disciplinadas, diga-se, em termos legais internos.

No entanto, a par do projeto realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há quem discuta haver entre ela e as audiências de apresentação, previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente similitudes ímpares, consoante norma do artigo 171. (PAIVA, 2015, s/p).

Para outros, tais semelhanças estariam afetas a norma do artigo 236, §2º, do Código Eleitoral Brasileiro, que prevê uma espécie de audiência de “custódia” para disciplinar os casos relativos à prisão no período eleitoral. (PAIVA, 2015, s/p).

Similitudes e argumentos a parte, propriamente no Código de Processo Penal brasileiro não há qualquer menção a ela com a terminologia e nuances desenhadas pela doutrina e jurisprudência, quer sejam na norma do artigo 287, ou, na do 306.

Comentando o tema, Paiva (2015, s/p), salienta o entendimento de que embora não seja o assunto disciplinado de forma tão ampla como necessariamente deveria ser, a norma do artigo 287, do Código de Processo Penal brasileiro disporia acerca da apresentação do preso a autoridade policial para a verificação de questões legais. Neste sentido, reza a norma do artigo, in verbis:

Art. 287.

Semelhante ideia podemos atribuir a norma do artigo 306, do mesmo código, quando este disciplina que “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada”.

Como se vê, trata-se da soma de dois dispositivos que na prática corriqueira se mostram insuficientes e não garantem os direitos e a efetividade dos tratados e convenções as quais a República Federativa do Brasil aderiu voluntariamente, ainda que se observem questões ligadas a legalidade.

Assim, embora perceptíveis algumas finalidades da Audiência de Custódia mesmo sem previsão expressa no ordenamento jurídico brasileiro, seu conteúdo fica vazio se não for disciplinado por completo em atendimento ao compromisso assumido pela Republica Federativa do Brasil no plano internacional, fazendo-se um instrumento para uns e outros casos.

3.2AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA E O PROJETO DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ)

Comentada a imperiosa situação da falta de regulamentação das Audiências de Custódia no plano interno, com as devidas ressalvas ao que já prevê o Código de Processo Penal brasileiro, passaremos a ponderar sobre as Audiências de Custódia e o projeto do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Todavia, é interessante anotar segundo expõe Maria Canineu (2013, p. 03-04), que alguns países da América Latina já prevêem em seus manuais e leis a realização de “audiências de Custódia”, a exemplo, a Argentina, com o prazo fixado no patamar de 6 horas; o Chile, com o lapso temporal de 12 para apresentação ao promotor de justiça; a Colômbia, no prazo de 36 horas, e o México, em 48 horas sendo, nesse sentido, tardia na República Federativa do Brasil.

Quer seja em virtude da desídia do Legislativo ou por até mesmo por conta do caos vivenciado pelo sistema penitenciário e do qual, se envergonha a República Federativa do Brasil perante outros países, o Conselho Nacional de Justiça em parceria com o Tribunal de Justiça de São Paulo e o Ministério da Justiça resolveram lançar um projeto para disciplinar à realização de Audiência de Custódia. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2015).

Implementado em 6 de Fevereiro de 2015, o projeto inicialmente consistiria na oferta de  garantia da rápida apresentação do preso a um juiz nos casos de prisões em flagrante para se avaliar o aspecto legal da prisão, a necessidade, adequação da continuidade ou eventual concessão de liberdade sem ou com outras medidas cautelares. Ainda, a análise de maus tratos, tortura e irregularidades. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2015).

No plano secundário, regulamentaria a estruturação de centrais de alternativas penais, centrais de monitoramento eletrônico, centrais de serviços e assistência social e a câmara de mediação penal, em respeito aos compromissos internacionais firmados pela República Federativa do Brasil e que deve ser a regra em nossos Tribunais. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2015).

Em 9 de Abril de 2015, ganhando ajustes para uma melhor aplicação, o projeto teria em si embutido três acordos internos firmados entre os órgãos do Ministério da Justiça e o Instituto da Defesa do Direito de Defesa (IDDD). No primeiro deles para estabelecer uma conjugação de esforços com vistas a implantação das audiências pelo país, com apoio técnico e financeiro aos estados, cujos recursos serão repassados pelo ministério da justiça. No segundo, objetivando operar reais e significativas mudanças no cenário processual penal, visto pela sociedade com “maus olhos”, ampliar-se-ia o uso de alternativas a prisão, conciliação e mediação penal. E o terceiro, com meta de estabelecer diretrizes e promover política de monitoração eletrônica, busca-se incentivar o uso de tornozeleiras eletrônicas em duas situações: para monitorar as medidas cautelares em qualquer crime, exceto dolosos e os condenados com pessoa superior a 4 anos e monitorar as medidas protetivas de urgência aplicadas a acusados de crimes que envolva violência doméstica e familiar contra mulher, criança, idoso, enfermo ou deficiente. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2015).

Observe que o projeto não se volta apenas à garantia dos direitos do acusado preso, mas a semelhante preocupação com os rumos e a situação pela qual passa o sistema penitenciário e processual penal brasileiro.

No que tange ao procedimento, o projeto inseriu a realização de algumas fases a serem desempenhadas a partir da prisão, que ocorrendo em flagrante levará o autuado a ser apresentado a autoridade policial, que logo após formalizará o auto de prisão em flagrante (APF) e promoverá o agendamento de apresentação do mesmo, conforme pauta pré fixada pelo juízo e ato do qual seu advogado nomeado deverá ser avisado. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA).

Após o devido agendamento, realizar-se-á o exame de corpo de delito e clínico no autuado providenciando logo em seguida o seu envio ao centro de detenção provisória para aguardar a apresentação em juízo. Protocolizado o auto de prisão em flagrante e apresentado o autuado em juízo, hipótese na qual, já se digitalizou o APF e a juntada de certidão de antecedentes criminais, com liberação para consulta em audiência. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2015).

Em sede de audiência, o Ministério Público se manifestará sobre os fatos ocorridos, sendo logo após entrevistado o autuado, e seu advogado ou defensor nomeado no momento concedido manifestado a defesa técnica, e o juiz, por fim, decidirá por aplicar medidas judiciais ou medidas não judiciais. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2015).

Desta feita, o projeto do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), consubstancia-se em um procedimento simples e sem grandes solenidades a serem cumpridas pelas partes para reprimir ilegalidades, abusos de autoridades, garantir direitos e desabarrotar o sistema penitenciário e judiciário. Não há aqui usurpação de função legislativa.

3.3 A NATUREZA JURÍDICA DOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA (CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS) E O PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS

Perpassada a análise do projeto do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), neste último capítulo nos voltaremos à problemática questão envolta a natureza jurídica dos instrumentos internacionais que prevêem semelhante ideia à das Audiências de Custódia e os efeitos desta diante da falta de previsão expressa no Código de Processo Penal brasileiro.

A questão a primor pode nos parecer tola, sobretudo, se considerarmos o entendimento corroborado pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 349.703/RS, no qual restou o entendimento de que os tratados e convenções internacionais de direitos humanos não aprovados nos termos do §3º, da norma do artigo 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil têm natureza supralegal, estando acima das leis ordinárias e abaixo da Constituição.

No entanto, segundo relata Galli (2015, s/p), tal questão não aparece de forma tão clara diante do Poder Judiciário, quer seja pela falta de contingente pessoal, ou pela própria interpretação legal dada pelo Supremo Tribunal Federal. Neste sentido, retrata o caso de um juiz da seção judiciária da 1ª região da Justiça Federal, do Estado do Acre, que negou o pedido de audiência de custódia feito por uma pessoa presa em flagrante por crime de tráfico internacional, por entender que os tratados internacionais são equiparados á lei ordinária, devendo o Código de Processo Penal prevalecer ante a sua não existência no texto legal. Ainda em sede da decisão salientou o magistrado que não há explicitação ou maiores fundamentações sobre o assunto a ponto de inseri-la no campo processual penal.

Trata-se como se vê de argumentos retrógrados que não analisam a fundo a real proposta e concretização dos Direitos Humanos, bem como a crise institucional vivida pelos sistemas penitenciários brasileiros.

Não há, igualmente, considerando o argumento desfavorável aos tratados internacionais, qualquer argumento ou empecilho que torna as audiências de custódia inconstitucionais perante a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, pois suas finalidades são compatíveis com o devido processo legal, a presunção de inocência, a dignidade humana, a vedação a tortura, tratamento desumano e cruel.

Assim, o fim a que se propõe as Audiências de Custódia se sobrepõem a discussão sobre a natureza jurídica dos instrumentos internacionais em nossa órbita interna, pois uma vez voltadas a concretização dos direitos humanos e aderida pela República Federativa do Brasil sua realização e proposta não pode ser revogada.


4.CONCLUSÃO

Finalizamos essas poucas laudas afirmando que nossa pretensão não se voltou a esgotar o tema, mas a fomentar pontos que instiguem uma salutar discussão, sobretudo, considerando a importância assumida pelos direitos humanos nas últimas décadas.

Tampouco foi nossa intenção desmerecer os argumentos utilizados por grande massa de magistrados sobre a natureza jurídica e as reais fundamentações e explicitações da audiência de custódia na República Federativa do Brasil.

Em verdade nosso intuito foi de alertar ao leitor acerca de sua importância no cenário brasileiro e mundial, principalmente, diante da crise institucional vivida pelos sistemas penitenciário e judiciário e o próprio Estado.

No mais, para salientar mais uma vez que temos o velho hábito de nos comprometer internacionalmente, talvez para mostrar que somos solidários, mas que não conseguimos gerir nem ao menos nosso espaço interno.

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Realizar audiências de custódia não se trata de um benefício ao criminoso ou culpado, mas de um instrumento que pode corrigir mazelas, erros, desproporcionalidades tão comuns e corriqueiras em nosso país. Trata-se de um ato de humanização.


5.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em:<http://www.cnj.jus.br> Acesso em: 23. Jul. 2016.

____________.DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Audiência de Custódia. 2014. Disponível em: <www.defensoria.gov.br/dpesp/repositorio/23/documentos/custodia_folder_final2.pdf> Acesso em: 19. Jul. 2016.

_________.Decreto- Lei nº3.689, de 3 de Outubro de 1941. Dispõe sobre o Código de Processo Penal. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm> Acesso em: 09. Jun. 2016.

_________. Lei 12.403, de 4 de Maio de 2011.Altera dispositivos do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, relativos à prisão processual, fiança, liberdade provisória, demais medidas cautelares, e dá outras providências. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12403.htm> Acesso em: 12. Jul. 2016.

_________.Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5240/SP. Rel. Min. Luiz Fux.  Julgada em: 20/08/2015. Disponível em:<http://www.stf.jus.br> Acesso em: 01. Jun. 2016.

CANINEU, Maria Laura. O Direito á audiência de custódia de acordo com o direito internacional. In: Informativo Rede Justiça Criminal. Edição 05. Nº 03. 2013. Disponível em: < https://redejusticacriminal.files.wordpress.com/2013/07/rjc-boletim05-aud-custodia-2013.pdf> Acesso em: 24. Jul. 2016.

CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS. Disponível em:< https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm> Acesso em: 13. Dez. 2015.

GALLI, Marcelo. Juiz questiona pacto ao indeferir pedido de audiência de custódia. 2015. Disponível em: www.conjur.com.br/2015-out-15/juiz-questiona-pacto-indeferir-pedido-audiencia-custodia>Acesso em: 28. Jul. 2016.

MOREIRA, Rômulo de Andrade. A audiência de custódia, o CNJ e os Pactos Internacionais. 2015. Disponível em: www.romulomoreira.jusbrasil.com.br/audiencia-de-custodia-o-cnj-e-os-pactos> Acesso em: 21. Jul. 2016.

LOPES JUNIOR, Aury; PAIVA, Caio. Audiência de Custódia aponta para evolução civilizatória do processo penal. 2014. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2014-ago-21/aury-lopes-jr-caio-paiva-evolucao-processo-penal> Acesso em: 23. Jun. 2016.

PAIVA, Caio. Na Série “Audiência de Custódia”: Conceito, Provisão Normativa e Finalidades. 2015. Disponível em: <http://justificando.com/2015/03/03/na-serie-audiencia-de-custodia-conceito-previsao-normativa-e-finalidades/> Acesso em: 30.Jul. 2016.

PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS. Disponível em: <www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/pacto2.htm> Acesso em: 23. Jul. 2016.

VARGAS, José Cirilo de. Processo Penal e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 1992.

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Sobre a autora
Bruna Conceição Ximenes de Araújo

Advogada. Graduada em Ciências Jurídicas pelas Faculdades Integradas de Três Lagoas (AEMS). Pós- Graduada em Direito Constitucional pela Universidade Anhaguera-Uniderp.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Bruna Conceição Ximenes. A “audiência de custódia” na República Federativa do Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4979, 17 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55520. Acesso em: 28 abr. 2024.

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