Capa da publicação Trabalho do preso: vínculo empregatício é possível?
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A não configuração do liame empregatício do trabalho prisional extramuros em prol da iniciativa privada diante do Tribunal Superior do Trabalho.

A obrigatoriedade do trabalho prisional e a ressocialização através da laborterapia

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20/02/2017 às 13:42

Resumo:


  • O trabalho prisional é obrigatório e visa à ressocialização do detento, mas não está sujeito ao regime da CLT, conforme a Lei de Execução Penal (LEP).

  • Embora a LEP exclua o trabalho do preso do regime celetista, o consentimento do apenado para trabalhar com entidades privadas sugere a possibilidade de configuração de relação de emprego.

  • A jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST) não reconhece o vínculo empregatício do trabalho carcerário, mesmo quando prestado em regime semiaberto ou aberto, alegando a finalidade ressocializadora do trabalho e a legislação vigente.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A finalidade do trabalho carcerário

Motivo apontado para a falta do vínculo empregatício é a razão pela qual o trabalho carcerário é prestado, conforme defendido por Wueber Duarte Penafort e Alice Monteiro de Barros, assim como a argumentação utilizada pelo TST para a não configuração empregatícia, de acordo com as argumentações trazidas acima, respectivamente. Existe a ideia de que a laborterapia existe para duas finalidades específicas: a remição da pena e a ressocialização do trabalhador.

Inicialmente, a remição da pena é utilizada como pretexto doutrinário para o principal desejo do preso na execução laboral (pois quanto mais se trabalhasse, mais o tempo da pena diminuiria). Argumentam que o preso estaria trabalhando não em razão do pagamento dos salários, mas sim com intuito de obter a remição da pena, e dessa forma desvirtuaria o caráter oneroso do trabalho carcerário. Porém, de acordo com a LEP, nem se pode considerar que a remição seja efetivamente um benefício concedido em favor do trabalho prestado, pois, como pode ser também facilmente verificado no artigo 126,31 a remição não é um benefício concedido para os apenados ao regime aberto. Dessa forma, o chamado "benefício" levantado pela doutrina, na verdade, não existe para os apenados em que o trabalho é requisito. Assim, não se pode considerar a remição um benefício, e muito menos um motivo para o labor ser prestado e, consequentemente, marginalizado dos preceitos celetistas.

A remição não é um benefício, é um direito outorgado para os apenados que trabalharem ou estudarem. Tanto que não é um benefício específico para os trabalhadores, que inclusive quem estudar também será contemplado com a diminuição da pena. Ou seja, a remição não é um "benefício" decorrente exclusivamente do trabalho.

Já em relação à ressocialização almejada através do trabalho, há o argumento de que a laborterapia possui o viés de ressocialização do apenado. Inicialmente, é interessante mencionar as diretrizes expedidas pela ONU a respeito das Regras Mínimas para Tratamento dos Reclusos, em seu artigo 72, itens 1 e 2:

1) A organização e os métodos do trabalho penitenciário devem aproximar-se tanto quanto possível dos que regem um trabalho semelhante fora do estabelecimento, de modo a preparar os reclusos para as condições normais do trabalho em liberdade.

2) No entanto o interesse dos reclusos e da sua formação profissional não deve ser subordinado ao desejo de realizar um benefício por meio do trabalho penitenciário.

De acordo com a ONU, o trabalho deverá se aproximar do trabalho em liberdade, além do fato de que o trabalho não poderá ser prestado em troca de benefícios. A ressocialização se não for realizada da maneira certa, trará prejuízo, pois a noção ressocializatória só será adimplida se o trabalho for moldado dentro dos parâmetros de um trabalho com garantias e direitos trabalhistas. Tratar o trabalho prisional sem esse espírito transforma a situação em nociva, indo de encontro ao próprio sistema.

Nesse diapasão, Marco Antonio Bandeira Scapini enfatiza a importância do trabalho externo:

[...] o exercício da atividade laboral fora do estabelecimento prisional deve ser incentivado. Não há forma mais adequada de observar a finalidade primordial da execução de propiciar harmônica integração social do apenado. É convivendo com o mundo exterior através do exercício de atividade lícita, não no ambiente hostil e degradante do cárcere, que o condenado poderá aderir a valores predominantes da vida em sociedade e promover o próprio sustento da família.32

Rui Carlos Machado Alvim critica a doutrina defensora do trabalho prisional praticado similarmente ao trabalho em sociedade, mas que restringe os trabalhadores dos direitos trabalhistas:

Difunde-se a ideia que a promoção do trabalho prisional deve ser semelhante, na maior amplitude, à realização do trabalho em sociedade [...], sem entretanto, salientar-se, com o mesmo ímpeto, que esta identificação, para não malograr, deve passar também, pela assimilação dos direitos sociais.

Tal ponto de vista, sugerindo que apenas no terreno objetivo – da produção em si mesma – viabiliza-se a similitude, endossa o caráter mitológico da ressocialização, enquanto abandona seu escopo, o preso, subjetivado no conjunto de direitos decorrentes do trabalho realizado. Despercebe-se que esta marginalização destoa do interesse da própria sociedade, uma vez que a aproximação das igualdades (direitos razoavelmente iguais) para situações iguais (o trabalho) mune-se de importante passo no caminho do estímulo à reinserção social.

Porque, insistindo-se na ladainha da adaptação do preso às normas de convivência social sem a predisposição de uma concomitante outorga dos direitos inerentes aos membros desta sociedade, resulta no erguimento de uma barreira intransponível à plena reinstalação social do recluso, além de mostrar-se como um reflexo de que a própria sociedade também não está preparada à sua recepção.33

Defender o trabalho do preso em iguais circunstâncias ao trabalho livre, mas retirar os seus direitos trabalhistas é de tamanha incongruência que caminha para o caminho oposto ao da reinserção social. Isso demonstra um bloqueio para a reintegração do preso, além do fato de a sociedade não estar preparada para o retorno do delinquente. O doutrinador continua:

O Estado, pregando e disseminando o trabalho prisional como uma das principais passagens à ressocialização, não pode, ao mesmo tempo, estimular, na prática – pela negação das outorgas constitucionalmente postas –, a desvalorização deste trabalho [...]. Quem quer que o caminho ressocializante passe pelo trabalho há de querer que este trabalho seja dotado de meios – sua valorização dentro do mínimo legalmente estabelecido, respeitando a pessoa do preso enquanto trabalhador e, por isso mesmo, sujeito de direitos – conduzentes àquela finalidade. Senão, à ressocialização, subsiste, e com reflexos na desproteção da sociedade, a marginalização, posto o retorna à criminalidade [...].

A insistência em negar a esta espécie de trabalho tais características induz a refletir no posicionamento, para um tema confluente, do alemão Müller-Dietz – para quem a educação para a liberdade através da privação da liberdade é uma utopia pedagógica: – a persistência no trabalho presidiário, com a sistemática privação dos direitos sociais que lhe são inerentes, é uma utopia ressocializante. Mais uma.34

Afastar os direitos trabalhistas de pessoas que deveriam ser alcançadas por esse manto protetivo, principalmente para aqueles em fase de ressocialização, fez o autor criticar o papel do Estado, chamando o trabalho carcerário nos atuais moldes como uma "utopia ressocializante". Se a ressocialização passa pelo trabalho, esse trabalho deverá ser ditado de acordo com um empregado sujeito de direitos.

A doutrina é unânime em defender o trabalho como fim ressocializador da pena privativa de liberdade. A própria LEP35 tem por objetivo a harmônica integração social do condenado. Porém, qual o viés ressocializatório utilizado ao marginalizar os direitos trabalhistas? Um total contrassenso. A própria argumentação legitimadora do trabalho prisional, que no caso é a ressocialização, está desvirtuada. Qual seria o padrão de ressocialização dos presos no momento em que o mínimo positivado em lei não lhe é garantido?

A soma dos seguintes fatores: o apenado, como um ser já apartado da sociedade (assim como o estigma de egresso que encontrará no futuro), combinado com o fato de o trabalho ser um motivo ressocializante, leva ao resultado mais justo que seria a transformação do apenado como uma nova categoria de trabalhador dentro dos moldes da relação de emprego, até porque o preso, conforme demonstrado, pode cumprir as exigências para se enquadrar nesse conjunto.

No mesmo raciocínio, Jorge Luiz Souto Maior sinaliza sobre o caráter da ressocialização:

Se o trabalho servisse para recuperar o preso, essa recuperação só poderia ser imaginada com o respeito de sua condição de cidadão, pois, do contrário, ao se sentir vítima de uma exploração (uma autêntica discriminação), aceita pela sociedade, talvez nunca mais acredite nesta mesma sociedade e jamais recupere sua condição de cidadão por inteiro. Com a exploração do trabalho do preso não se recupera um cidadão, criam-se pessoas que cada vez mais se revoltam com a hipocrisia da sociedade.36

Isabella Monteiro Gomes partilha da mesma política sistemática de aplicação ressocializatória:

Para que a esperada ressocialização (ou reinserção) social do trabalhador preso seja mais contundente e natural, é razoável que se garanta a ele a percepção de todos os direitos decorrentes do reconhecimento da existência da relação de emprego e da incidência das normas constitucionais, especialmente as do art. 7º da CF/1988.37

Para os autores acima mencionados, para que seja conquistada a ressocialização, ela deverá guiar os ditames da vida em sociedade e, além disso, deverá ser respeitada a natureza e a qualidade dignas do trabalho executado à luz dos direitos consagrados a todos os empregados.

Rodrigo Garcia Schwarz critica a atual sistemática da LEP:

No entanto, o caminho ressocializante do trabalho deve atentar para a sua valorização dentro do mínimo constitucionalmente estabelecido, respeitando a pessoa do preso enquanto trabalhador e, por isso mesmo, sujeito de direitos condizentes com aquela condição.

Assim, é manifestamente abusivo o preceito contido na Lei de Execução Penal, segundo o qual o trabalho do preso não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho. A ideia de negar direitos do trabalhador livre ao preso, desde que compatíveis com a sua condição pessoal, viola os direitos fundamentais da pessoa, além de propiciar o enriquecimento sem causa do tomador dos respectivos serviços.38

O autor, além de depreciar a LEP e a marginalização celetista abusiva em todos os regimes prisionais, retoma os ensinamentos a respeito do dumping social ocasionado quando a mão de obra carcerária se torna um meio de diminuir os gastos trabalhistas propiciando o enriquecimento sem causa do tomador dos serviços.

Conforme demonstrado por Luiz Antônio Bogo Chies a respeito da temática do trabalho prisional e o seu modo de operação encarado diante da doutrina tem-se que:

Desta forma, inicialmente, e mesmo já fundamentado sob um argumento do discurso ressocializador da pena, o trabalho prisional ainda é entendido como elemento de punição e, portanto, prioritariamente enfocado sob seu aspecto retributivo e de prevenção, podendo, para tanto, ser aflitivo, humilhante e, até, desprovido de uma utilidade econômica ou individualmente profissionalizante, desde que pudesse manifestar-se enquanto elemento disciplinador do apenado.39

E, para ele, a solução para efetivamente encontrar-se a ressocialização seria:

A superação dessa distância, com a tendente equiparação prisional com o trabalho livre, não obstante as diversas legislações existentes e seus diferentes níveis de aproximação, decorre substancialmente das reinterpretações do próprio conteúdo do paradigma da recuperação, ou seja, do significado das noções implícitas no paradigma através, especialmente, das expressões ressocializar, reeducar, regenerar e reinserir e recuperar.40

E, por fim:

Assim, a noção de tratamento penitenciário, ao inserir o trabalho prisional dentro de suas formas de consecução, redimensiona também sua interpretação viabilizando que o mesmo alcance níveis de desenvolvimento que resgatassem não só um mínimo de dignidade à atividade laboral humana, mesmo quando realizado por indivíduos que ofenderam a ordem social estabelecida, mas também, e sobretudo, que o reenquadrasse dentro da perspectiva de execução da pena não como um elemento de punição, essencialmente retributivo, mas sim como um elemento destinado, ainda que mais teoricamente do que na prática, prioritariamente à reinserção humanizada do condenado no ambiente social livre.41

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O autor idealiza a solução para a atual problemática laboral do preso no Brasil, a tendente equiparação com o trabalho livre, justamente para se atingir reinterpretações dos paradigmas da recuperação do apenado. Para isso, a ressocialização deverá estar calcada de acordo com o princípio norteador da existência humana, o princípio da dignidade da pessoa humana. A dignidade da pessoa humana é insubstituível, intangível, ela é a própria razão de ser da vivência humana, e em razão disso possui seu caráter único de fundamento constitucional. Conforme disposto no caput do artigo 28 da LEP, é realmente necessária uma dignidade material, e não meramente formal, a respeito do trabalho carcerário.

A dignidade da pessoa humana não está à disposição dos legisladores e operadores do direito. O princípio pode e deve ser aplicado em todos os momentos da execução penal, principalmente no contexto do trabalho, pois é a forma encontrada para ressocializar os detentos. Para transformar a laboraterapia em um meio digno de tratamento, nada melhor do que conceder os direitos atinentes aos trabalhadores, visto que não há motivos para marginalizá-los das normas juslaborais.

Interessante o embasamento encontrado no acórdão abaixo, justamente, trilhando caminho nesse sentido, reconhecendo o vínculo empregatício:

O reclamante, cabe destacar, sofre pena restritiva de liberdade em regime semi-aberto [sic] (nos moldes do parágrafo único do artigo 8º da referida Lei), ou seja, não é preso em sentido estrito, mas apenas condenado. E o trabalho externo em prol de empreendedor privado tem finalidade lucrativa, ainda que paralelamente tenha a função ressocializadora. E para que tenha o cunho social e garanta a dignidade da pessoa humana, como disposto no artigo 28 supracitado, o trabalhador-condenado deve ter a mesma proteção de qualquer trabalhador, pois são vinculadas aos direitos sociais constitucionalmente protegidos. […] O fato de o trabalho resultar em redução da pena decorre da relação entre o apenado e o Estado, sem qualquer relevância na configuração da natureza do vínculo jurídico entre o reclamante e os réus. Portanto, admitida a prestação de serviços em benefício do primeiro reclamado, impõe-se reconhecer que foi nos moldes dos artigos 2º e 3º da CLT.42

Ou seja, os desembargadores reconheceram a aplicação celetista ao apenado em função da atividade lucrativa do empregador, mesmo que, paralelamente, ocorra a função ressocializadora. Embasando tal entendimento, os magistrados se valem do princípio da dignidade da pessoa humana, concedendo a gama da proteção aplicada a qualquer trabalhador.

Dessa forma, os argumentos contra o vínculo de emprego em razão dos benefícios da remição e ressocialização, data venia, por mais que o trabalho, realmente, possua o objetivo de ressocialização, por si só, não são plausíveis para se admitir a exclusão dos direitos trabalhistas. Bem pelo contrário. A ressocialização será melhor aplicada caso sejam repassados aos presos os princípios, regras, condutas da vida livre.

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Sobre a autora
Laura Machado de Oliveira

Professora da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. Mestra pela UFRGS em Direito do Trabalho. Advogada especialista em Direito e Processo do Trabalho. Autora de diversos artigos trabalhistas. Citada reiteradamente em acórdãos do TST. Autora do livro "O direito do trabalho penitenciário" pela Lumen Juris.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Laura Machado. A não configuração do liame empregatício do trabalho prisional extramuros em prol da iniciativa privada diante do Tribunal Superior do Trabalho.: A obrigatoriedade do trabalho prisional e a ressocialização através da laborterapia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4982, 20 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55664. Acesso em: 23 dez. 2024.

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