- Introdução
O processo de cassação do mandato do então Presidente da Câmara dos Deputados, deputado Eduardo Cunha, foi motivado pela alegação de que ele teria quebrado o decoro parlamentar ao mentir em depoimento na CPI da Petrobrás sobre a existência de contas na Suíça em seu nome.
A defesa de Eduardo Cunha sustentou que o deputado não poderia ser cassado porque não teria havido quebra de decoro, visto que ele não teria mentido, pois o que havia na Suíça, em seu nome, não seriam contas bancárias, mas sim um trust fund, por ele instituído. Argumentou ainda a defesa que o referido trust foi constituído por patrimônio do deputado, mas que a ele não pertenceia.
Mas afinal, o que seria um trust? A que se destinaria? Por que a preocupação com o trust? Problemas e caminhos de investigação são levantados neste brevíssimo artigo.
2. O que é um trust
O termo trust possui duas acepções:
A primeira nos diz que trust “É a fusão de várias empresas de modo a formar um monopólio com o intuito de dominar determinada oferta de produtos e/ou serviços. Pode-se definir truste também como uma organização empresarial de grande poder de pressão no mercado. ” (Wikipedia). E essa primeira acepção não nos interessa neste trabalho.
A outra acepção é aquela prevista na Convenção de Haia “Sobre a Lei Aplicável ao Trust e a Seu Reconhecimento” (Convenção), realizada em 01/07/1985 com entrada em vigor 01/01/1992, do qual o Brasil não é signatário.
No artigo 2º da Convenção, temos que: “o termo trust se refere a relações jurídicas criadas – inter vivos ou após a morte – por alguém, o outorgante, quando os bens forem colocados sob controle de um curador para o benefício de um beneficiário ou para alguma finalidade específica.” (grifo nosso)
Da definição acima se percebe que o trust é um fundo estabelecido por meio de contrato e pode ser entendido como a terceirização da administração de bens e direitos mediante a transferência da titularidade destes, e envolve 03 (três) partes, a saber: o settlor, ou outorgante ou ainda instituidor, é quem cede seu patrimônio para a constituição do trust; o trustee, ou curador, o administrador do trust; e o beneficiário (beneficiary), quem receberá os frutos, os benefícios advindos da administração do trust.
Segundo Francisco Rezek:
“O instituidor dá ao curador as diretrizes de administração e utilização do patrimônio, cuja propriedade ele então transfere ao curador.
O curador pode ser pessoa natural ou coletiva (muitas vezes uma casa bancária ou empresa congênere), após a transferência, passa a ser titular da propriedade do patrimônio, devendo, a seu critério, administrá-lo e torná-lo produtivo, mas sempre em benefício das pessoas ou propósitos indicados pelo instituidor.
O beneficiário, por sua vez, é pessoa natural ou coletiva, causa ou propósito específico, indicado vestibularmente pelo instituidor. Não se exige nenhuma espécie de manifestação de concordância da parte do beneficiário que, fato singular, pode até mesmo não ter consciência dessa sua condição. É normal, entretanto, que a tenha, sobretudo quando vinculado ao instituidor por laços de família. (Parecer da Defesa de Eduardo Cunha).
O curador ou trustee geralmente é uma pessoa jurídica especializada conhecida como Trust Company:
"é uma empresa, especialmente um banco comercial, organizada para realizar a gestão fiduciária de fundos e agências. É normalmente propriedade de um dos três tipos de estruturas: uma parceria independente, um banco, ou um escritório de advocacia, cada um dos quais é especializado em ser um administrador de vários tipos de relações de trust e em gestão de propriedades.”[1] (Wikipedia, tradução livre)
3. Características de um trust
Ainda de acordo com o art. 2º da Convenção, temos que o trust possui as seguintes características:
“a) os bens constituem um fundo separado e não são parte do patrimônio do curador;
b) títulos relativos aos bens do trust ficam em nome do curador ou em nome de alguma outra pessoa em benefício do curador;
c) o curador tem poderes e deveres, em respeito aos quais ele deve gerenciar, empregar ou dispor de bens em consonância com os termos do trust e os deveres especiais impostos a ele pela lei.”
No contrato de estabelecimento do trust estão definidos os limites e a forma de administração dos bens do outorgante. Constitui-se um fundo separado que não faz parte dos bens que são propriedade do curador, embora o(s) título(s) dos bens em trust estejam em nome do curador ou em nome de outra pessoa por conta do curador. É o curador quem tem o poder e o dever de empregar ou dispor dos bens de acordo com a legislação aplicável.
O curador pode ser revogado se não for satisfatório e isso não significa a cessação do trust. Além disso, pode haver uma quinta pessoa, conhecido como o protetor: este é semelhante a um conselho de supervisão de empresas, supervisiona o curador na execução das instruções recebidas do instituidor.
Temos ainda que o trust pode ser revogável (permitindo assim que o instituidor possa denunciá-lo a qualquer momento) ou irrevogável. O trust também pode ser simples (quando a renda produzida pela propriedade colocada em trust deva ser distribuída como e quando ele for concluído) ou discricionária, isto é, quando o administrador tem o poder para acumular renda e determina a sua política de distribuição de renda para o beneficiário.
Qualquer propriedade pode ser objeto de uma relação de trust, desde que seja identificável com certeza. Bens imoveis, bens móveis, títulos, dinheiro ... qualquer bem.
4. Do ponto de vista fiscal, porque o trust interessa?
O trust é um meio de gestão de riqueza privada, gestão de sucessão ao longo de várias gerações, é uma ferramenta de investimento. Os efeitos do trust são numerosos e interessa para meios de tributação, principalmente em quatro casos:
a) O beneficiário de uma doação ou herança no termo final de um trust pode ser residente no Brasil; o mesmo vale para o outorgante, que faz assim, um(ns) bem(ns) sair(em) do seu patrimônio. Como fica então a transferência dessa(s) propriedade(s)?
b) Contribuintes com domicílio fiscal no Brasil e assim, domicílio tributável sobre sua renda mundial, podem se beneficiar de produtos de trust. Como é que se exige essa tributação?
c) A propriedade objeto do trust pode estar em território brasileiro.
d) Como é que se trata os proventos de ativos transferidos para fora do Brasil nas mãos de trust constituído por brasileiros?
5. Evasão Fiscal, Evasão de Divisas e Lavagem de dinheiro
Alem do interesse de arrecadação tributaria, ha na verdade, outros três interesses principais para a fiscalização da instituição de trusts.
Um é o interesse fiscal, qual seja, evitar a evasão fiscal, pois ao se constituir um trust o instituitor pode escapar da totalidade ou de parte dos impostos sobre herança e sobre a renda, seja por meio da omissão de informações, de falsas declarações ou da produção de documentos que contenham informações falsas ou distorcidas.
Os outros dois são interesses do direito penal econômico.
- A evasão de divisas (art 22, lei 7.492/86) é crime contra a ordem financeira e tutela a execução da política cambial, consistindo em operações ilegais de câmbio e de remessas sem autorização legal, de moeda ou divisa para o exterior, ou se nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente (Banco Central).
- A lavagem de dinheiro (lei nº 9.613/98) consiste na ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação, ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime.
Diferentemente da evasão de divisas, a lavagem depende da prática de um crime antecedente e o bem jurídico penalmente protegido é a ordem econômica.
6. Autotrust
Segundo Francisco Rezek:
Não é raro que o próprio instituidor encabece o rol dos beneficiários, ou nele figure adiante. Tudo quanto a doutrina ainda controverte é a questão de saber se o settlor pode ser ele próprio o beneficiário único do trust. (Parecer da Defesa de Eduardo Cunha).
Muitas vezes, o que é observado em várias operações de lavagem e ocultação de bens é que o trust, na maior parte dos casos, é revogável. Então do ponto de vista legal brasileiro, dentro do direito romano-germânico, a doação não se deu.
Então, quando o instituidor transfere dentro de um regime anglo-saxão uma conta bancária para uma instituição administrar este rol de bens ou este valor, ele transfere apenas para uma custódia por um determinado período.
Quando este instituidor constitui um trust e se autoindica como beneficiário, não há de se falar como transferência de bem para um terceiro, porque o beneficiário passa a ser o próprio instituidor. Então fica aqui um autotrust ou um trust que pode ser revogado a qualquer tempo como um benefício ao instituidor.
Dessa forma temos que nos trusts revogáveis ou que indiquem o instituidor como beneficiário não teríamos a doação do bem, propriamente dita. Ou seja, o bem permanece sob a titularidade do instituidor e será ele o único a declarar. Então um autotrust se configura como caso de alta probabilidade de ocultação de patrimônio.
7. Conclusão
Por todas estas razões, e especialmente pelo montante de dinheiro envolvido, a lei fiscal brasileira não pode ignorar o trust. Mas o direito anglo-saxônico por vezes é pouco compreendido por nós, neste caso é como se estivéssemos diante de uma herança que não tem dono, e este contrato no Brasil não é de fácil entendimento.
A singularidade do trust com respeito ao critério de propriedade é tal que levanta em vários aspectos séria incerteza sobre as disposições fiscais aplicáveis pois há lapso na doutrina e tímidas e escassas são as soluções judiciais.
A constituição de trusts nem sempre objetiva salvaguardar bens de origem lícita; por ser instituto nao reconhecido pela lei brasileira, só é possivel de ser instituido no exterior. Sendo por vezes utilizado como refinada manobra para acobertamento de patrimonio e/ou ocultacao de sua origem ilicita.
No Brasil, em termos fiscais, as exigências para a declaração, perante a Receita Federal, de um trust são distintas daquelas para declarar um bem em nome da pessoa física. Daí resta a dúvida: deveria ser o trust, neste caso, simplesmente desconsiderado pelo declarante, sendo os bens e as movimentações financeiras declaradas diretamente pelo instituidor? Esta é uma pergunta ainda sem solução.
REFERÊNCIAS
ABREU, Jorge de. A Natureza Jurídica do “Trust”, Planificação Fiscal e Âmbito Sucessório, disponível em: http://www.amsa.pt/xms/files/A_Natureza_Juridica_do_TRUST_Planificacao_Fiscal_e_Ambito_Sucessorio.pdf.
FABRIS, Oswaldo André. Trust: uma Visão de Garantia no Ordenamento Político Social Jurídico e Econômico Nacional, disponível em: http://up.mackenzie.br/stricto-sensu/direito-politico-e-economico/teses-e-dissertacoes-detalhada/artigo/trust-uma-visao-de-garantia-no-ordenamento-politico-social-juridico-e-economico-nacional
HAIA. Convenção Sobre a Lei Aplicável ao Trust e a Seu Reconhecimento, disponível em: https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/full-text/?cid=59
MARTINS, Rafael Manhães. Análise da “Aclimatação” do Trust ao Direito Brasileiro: O Caso da Propriedade Fiduciária, disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/viewFile/9593/7426.
REZEK, Francisco. Parecer da Defesa de Eduardo Cunha. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/parecer-rezek-defesa-cunha.pdf
WIKIPEDIA. Truste. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Truste.
WIKIPEDIA. Trust Company. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Trust_company.
[1] “A trust company is a corporation, especially a commercial bank, organized to perform the fiduciary of trusts and agencies. It is normally owned by one of three types of structures: an independent partnership, a bank, or a law firm, each of which specializes in being a trustee of various kinds of trusts and in managing estates.”