A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus nº. 118.770/SP, cassando liminar concedida pelo Ministro Marco Aurélio, "acolheu a tese de que a condenação no júri abala fortemente a presunção de inocência (uns 8 graus na escala Richter, eu diria) e, com isso, fica autorizado o imediato início da execução penal, logo após a leitura da sentença. A razão de ser desse precedente do STF está no princípio da soberania dos veredictos. O min. Luiz Roberto Barroso, autor do voto divergente, consagrou essa posição, que tem assento constitucional (art. 5º, XXXVIII, letra c)."[1] (grifamos, com risos).
Esse entendimento do Supremo Tribunal Federal, aliás, na esteira do que fora decidido no Habeas Corpus nº. 126.292/SP, viola flagrantemente a Constituição Federal, especialmente porque faz tábula rasa do princípio do estado de inocência assegurado a todo acusado em processo criminal.
Nada obstante, surpreende esta decisão pela ousadia demonstrada em desafiar a Constituição de uma maneira tão vergonhosa. Afinal de contas, como uma decisão condenatória do Júri pode autorizar a execução imediata da pena?
Onde terá sido mesmo que o Ministro Barroso estudou? Pela idade, certamente não foi em uma dessas "fabriquetas" de bacharéis em Direito que pululam hoje em dia no Brasil. Portanto, há algo entre o Direito (Constitucional) e a Corte Suprema do Brasil que a nossa vã ingenuidade desconhece ("há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia", não é William?).
Para sermos fiéis aos fatos e à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, é bem verdade que no julgamento das Ações Diretas de Constitucionalidade nºs. 43 e 44, o Ministro Roberto Barroso já havia sinalizado a sua posição contra a Constituição Federal, renegando o seu papel de Magistrado de uma Suprema Corte (de ser, por exemplo, contramajoritário), a saber:
“A condenação pelo tribunal do Júri em razão de crime doloso contra a vida deve ser executada imediatamente, como decorrência natural da competência soberana do júri conferida pelo art. 5º, XXXVIII, d, da CF”.
Agora, a tese defendida pelo Ministro Barroso, que sempre se mostrou, antes de assumir a função de Ministro da Suprema Corte, um defensor dos direitos e garantias fundamentais, foi acolhida no julgamento do Habeas Corpus nº. 118.770/SP: “A prisão de réu condenado por decisão do Tribunal do Júri, ainda que sujeita a recurso, não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou não-culpabilidade (sic).”
A tese é absurda, pois viola a Constituição Federal, transgride o princípio da presunção de inocência e tergiversa com a liberdade humana, ignorando os princípios de um Processo Penal Democrático. Aproxima-se de um Processo Penal fascista e autoritário. Uma lástima!
O argumento de que "o tribunal de apelação não pode alterar o veredicto dos sete jurados. Ou seja, o tribunal togado não pode substituir a vontade do colegiado popular pela sua vontade"[2] é fragilíssimo!
Claro que pode, cara-pálida! Pode anular o julgamento e determinar a realização de um outro julgamento, afirmando ter sido a decisão manifestamente contrária à prova dos autos. É pouco?
Utilizar-se da soberania popular para tergiversar acerca da presunção de inocência é de uma ignorância ímpar. Ou má-fé, conforme o sujeito. A propósito, vejam o que escreveu Aury Lopes Jr., que conhece muito mais de Processo Penal que o Ministro Barroso:
"Não há como aceitar tal expansão da ´soberania` a ponto de negar a presunção constitucional de inocência. A soberania diz respeito à competência e limites ao poder de revisar as decisões do júri."[3]
Aliás, o próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus nº. 89544, tendo como relator o Ministro Cezar Peluso, assentou não haver violação à soberania popular a proibição da reformatio in pejus, decisão repetida no Habeas Corpus nº. 136.768. Boa lição...
A soberania popular aproveita ao réu, não à acusação! Não esqueçamos, outrossim, que as decisões do Tribunal do Júri são imotivadas. Sequer se exige grau de instrução aos jurados (confira-se o Código de Processo Penal). Como, então, podemos admitir que alguém, condenado pelo Conselho de Justiça, sem estarem presentes os requisitos da prisão preventiva, seja imediatamente forçado a cumprir uma pena? E se o Tribunal de Justiça ou o Tribunal Regional Federal anular o julgamento por entender, à vista das provas juntadas aos autos, que houve uma decisão manifestamente contrária à prova dos autos (portanto, não se trata apenas de análise de questão de Direito)? E se, depois do segundo julgamento, quando não mais haverá possibilidade de recurso sob o mesmo fundamento (art. 593, parágrafo terceiro do Código de Processo Penal), o réu for absolvido, quem arcará com o erro judiciário? Algum Ministro, certamente, colaborará com a indenização.
Sugiro ao Ministro Barroso a leitura de um clássico (os clássicos são sempre importantes, especialmente na literatura, ainda que haja o passar canalha dos tempos...):
"O Júri, consagrado que está como garantia constitucional, é um órgão judiciário que a Constituição considerou fundamental para o direito de liberdade do cidadão. (...) Foi para garantir o direito de liberdade que o Júri acabou mantido pela Constituição vigente. Sendo assim, o que marca de maneira específica e própria, como órgão judicante, a atividade jurisdicional, é a sua qualificação de instituto destinado a tornar mais sólido e inquebrantável o direito individual de liberdade."[4]
Será mesmo que, "doravante, ocorrerão com menor frequência as lamentáveis situações em que homicidas condenados pelos jurados saem pelas portas do tribunal do júri ao lado de seus julgadores e dos familiares de suas vítimas"?[5] Mas, quem os disse homicidas? Já existe uma decisão judicial transitada em julgado? Eis a questão!
Notas
[1] https://vladimiraras.blog/2017/03/12/a-soberania-do-juri-e-a-execucao-penal-imediata/
[2] https://vladimiraras.blog/2017/03/12/a-soberania-do-juri-e-a-execucao-penal-imediata/
[3] Direito Processual Penal, São Paulo: Saraiva, 2015, 12ª. edição, p. 792.
[4] José Frederico Marques, A Instituição do Júri, Campinas: Bookseller, 1997, p. 100.
[5] https://vladimiraras.blog/2017/03/12/a-soberania-do-juri-e-a-execucao-penal-imediata/