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Ativismo judicial e o transporte público individual

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3. ATIVISMO JUDICIAL E O TRANSPORTE DE PASSAGEIROS

Mesmo havendo divergência doutrinária em relação ao ativismo judicial, o que se verifica há algum tempo na jurisprudência nacional é sua aplicação na tutela de direitos fundamentais, como por exemplo no casos de regulamentação de greve no serviço público[38] ou a polêmica Fidelidade partidária.

Neste último caso, não havia nenhuma regra explícita a respeito do tema. Os Ministros do STF, com base no princípio democrático (um dos eixos do moderno constitucionalismo) criaram uma regra: quem mudar de partido depois da eleição perde o mandato. Para Luiz Flávio Gomes “Isso não estava explícito em nenhum lugar, logo, houve ativismo judicial.”[39]

O que se pretende analisar aqui é a utilização do ativismo judicial para outros tipos de relação. Embora não tão polêmico quanto aos demais, ainda assim se pergunta: Poderia o Poder Judiciário, através do ativismo judicial, autorizar o uso de transporte individual remunerado de passageiros por veículos que não possuem permissão legal para operar?

Ocorre que, nas mais diversas cidades do Brasil, o ativismo judicial vem sendo aplicado, para permitir o uso de aplicativos de transporte remunerado individual de passageiros não regulamentados. Um exemplo ocorreu no Rio de Janeiro, onde no dia 14/8/2015, o Juiz de Direito Bruno Vinícius da Rós Bodart, da 1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca do Rio de Janeiro deferiu antecipação de tutela e assim proferiu:

[...] determino que o Presidente do Departamento de Transportes Rodoviários do Estado do Rio de Janeiro (Detro/RJ) e o Secretário Municipal de Transportes do Rio de Janeiro, bem como órgãos ou agentes que lhes sejam subordinados ou lhes façam as vezes, abstenham-se de praticar quaisquer atos que restrinjam ou impossibilitem que o impetrante exerça a atividade de transporte remunerado individual de passageiros, em especial por meio da imposição de multas, da apreensão de veículo ou da retenção da carteira de habilitação do condutor, sob pena de multa no importe de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) por ato de recalcitrância no cumprimento desta decisão, sem prejuízo da configuração do crime de desobediência (art. 330 do Código Penal)”. E complementa: “[...] nosso Estado Democrático de Direito, bem assim a ordem econômica brasileira, tem como fundamento a livre iniciativa. Trata-se de indiscutível liberdade fundamental garantida a todos os indivíduos pelos artigos 1º, IV, e 170 da Carta Magna. Como densificação dessa garantia, figura também na Constituição o direito ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, estabelecido no inciso XIII do artigo 5º”. [40]

Situação similar ocorreu no Mandado de Segurança concedido pelo Juiz de Direito Hélio do Valle Pereira, da 1ª Vara de Fazenda Pública de Florianópolis (SC). O magistrado aduziu que: “O Brasil está precisando conviver com a liberdade”. E mais adiante complementa:

(...) essas divagações etéreas são convenientes para perpetuar o serviço de táxi em regime monopolizado. Deixa-se de lado o óbvio, que é refletir sobre o melhor para a população para se teorizar sobre serviço público, regulação, fiscalização; na realidade, distorce-se o ponto essencial para desviar a solução evidente. [41]

Não se pretende aqui questionar as decisões judiciais, mas sim efetuar uma análise das mesmas.

O art. 1º, IV, da Constituição Federal, determina como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Por seu turno, o art. 5º, XIII, assim determina: “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.[42]

Da mesma forma, o art. 5º, XIII, consubstancia-se em norma de eficácia contida. Da mesma forma que um bacharel em direito, por mais conhecimento jurídico que tenha, esteja impedido de exercer a advocacia sem o registro da Ordem dos Advogados do Brasil; igualmente, um bacharel em medicina não poderá exercer a profissão sem o registro no Conselho Regional de Medicina; por corolário, nos parece que não pode, sob o pálio do aludido dispositivo jurídico, um motorista exercer o transporte público individual remunerado de passageiros sem a respectiva autorização do órgão competente, no caso a “Licença de Tráfego”.

Isso porque a liberdade não é absoluta e se submete às necessidades sociais, elencadas na lei. No caso dos taxistas, como visto anteriormente, a política de mobilidade urbana  e as preocupações com o impacto econômico sobre a realidade das cidades, podem ser elencadas.

É que o Estado também tem este dever, de limitar as liberdades em vistas aos interesses sociais, o que geralmente se possibilita via legislativo conforme bem explica Vasconcelos:

A atuação do Estado na área econômica vem com o intuito de equilibrar e proteger não só a efetivação dos princípios como também corrigir eventuais abusos que possam afetar a ordem econômica do país.

 (...)

Essa liberdade de iniciativa não deve ser entendida como total, mas de forma parcial no sentido de que cabe ao empresário individual ou coletivo o livre-arbítrio de decidir o que e como produzir, a forma e o local desta produção e onde os bens serão distribuídos com vistas ao público consumidor, porém sem se esquecer de que por trás dessa liberdade existe uma mão invisível que direciona a atividade econômica, limitando-a aos fins e interesses sociais.[43]

Ou como magistralmente aduz Humberto Ávila magistralmente:[44]

Na sociedade atual, em que se asseguram as variadas manifestações da liberdade, não só existe uma pluralidade de concepções de mundo e de valores, como, também, há uma enorme divergência com relação a modo como essas concepções de mundo e de valores devem ser realizadas. Vale dizer, há divergência com relação aos valores e com referência ao modo de realização desses valores. A rigor, não há uma solução justa para o conflito e para a realização desses valores, mas soluções que precisam, por algum órgão, ser tomadas para pôr fim ao infindável conflito entre valores e às intermináveis formas de realiza-los. Pois bem, o Poder onde, por meio do debate, se pode respeitar e levar em consideração essa pluralidade de concepções de mundo e de valores, e o modo de sua realização, é o Poder Legislativo. Por meio dele é que, pelos mecanismos públicos de discussão e votação, se pode obter a participação de todos e a consideração da opinião de todos, em matérias para as quais não há uma solução, mas várias soluções para os conflitos de interesses, não um só caminho para a realização de uma finalidade, mas vários caminhos para a sua promoção.

Por fim, sobre o argumento apresentado no segundo julgado, “refletir sobre o que é melhor para a população”, mister ressaltar que o Poder Judiciário é o único dos três Poderes no qual seus membros não são eleitos democraticamente. Destarte, os anseios populares deveriam ser atendidos pelos Poderes Executivo e Legislativo. Essa é a regra num estado democrático de direito, conforme bem exemplifica Costa:

(...) verificamos que a evolução do direito constitucional permitiu que os cidadãos pudessem fazer parte, mais concretamente, dessa democracia participativa, não apenas escolhendo seus governantes, mas principalmente podendo atuar diretamente para que tenham seus anseios respondidos. Para tal os mecanismos de participação popular ensejam ao povo a oportunidade de participar mais diretamente no cotidiano das decisões estatais. São institutos que, quando bem estruturados, dão força de voz à soberania popular.[45]

  Portanto, se os anseios populares são no sentido de mitigar o “monopólio” dos táxis, através da autorização de outros aplicativos de transporte individual remunerado, que isto seja feito pelo processo legislativo, com a consequente normatização dos serviços.

A regulamentação dos aplicativos por parte do poder público mitigaria alguns dos maiores problemas apresentados e possibilitaria maior segurança jurídica a todos os envolvidos.

Imperioso frisar que [46]“a descrição daquilo que é permitido, proibido ou obrigatório diminui a arbitrariedade e a incerteza, gerando ganhos em previsibilidade e em justiça para a maior parte dos casos”.

Mesmo quando se cuida de relações privadas, como as relações de consumo, a regulamentação se faz necessária, como bem lembra FERRAJOLI:[47]

Piénseseenlos lugares de trabajo, enlafamilia, enlas mil formas de dependencia que se originanen todos los aparatos burocráticos y enlas diversas sujeciones y opresiones económicas que se desarrollanenlas relaciones de mercado. Pero piénsese, sobre todo, enla falta de reglas idóneas para limitar, enlaactualglobalización, a los grandes poderes económicos transnacionales. Estos poderes sinreglassoninevitablementefuentes de limitación de laslibertades y de multiplicación de las desigualdades. También para los poderes privados vale enefectolatesis de Montesquieu de que el poder, a falta de límiteslegales, tende a acumularseen formas absolutas.

Casos complexos, como o em testilha neste artigo, necessitam de grande debate popular e doutrinário, além de regulamentação. O ativismo judicial, quando aplicado na tutela de direitos fundamentais, como por exemplo o direito à saúde ou à educação, apesar das divergências doutrinárias, é, de certa forma, compreensível. Mas quando o fenômeno é aplicado em relações de consumo, uma maior cautela é exigida, uma vez que a decisão afeta economicamente toda uma categoria (neste caso, os taxistas).

Tratando-se de casos complexos, como o caso em tela, melhor seria não se inventar novos direitos  conforme destaca Pereira:

É a partir dos aportes teóricos de Ronald Dworkin que se afirma a reprobabilidade da discricionariedade judicial e, notadamente, a falta de controle desta. Ora, permitir que o magistrado decida de modo inovador e irrestrito qualquer matéria a seu crivo (mesmo as de índole tipicamente legislativa ou política) pode representar a chancela do arbítrio da coerção estatal. É com Dworkin que se apreende que os Tribunais, ao julgar um novo caso, devem respeito à história institucional da aplicação daquele instituto e, para facilitar sua fala, o autor faz uma metáfora: a do romance em cadeia. [...] o magistrado, conquanto diante, por exemplo, de um caso complexo, tem por dever descobrir quais são os direitos das partes, e não de inventar novos direitos, mesmo porque, para o autor sob enfoque, a tarefa da jurisdição não é criar direitos, mas promover sim uma tarefa hermenêutico-investigativa. É preciso que se reconstrua, como dito anteriormente, a história institucional de determinada sociedade, respeitando-se o passado, à luz, claro, das particularidades do caso presente, que é sempre aberto a horizonte futuro. Logo, deparando-se com um caso concreto o magistrado deve reconstruir “o” direito e não “um” direito. [48]

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Em outras palavras, o magistrado deve, em cada caso que apreciar, se considerar como parte de um “complexo empreendimento em cadeia”, ao passo que as diversas “decisões, estruturas, convenções e práticas são a história”. Dar continuidade a esta história faz parte de suas atribuições. Cabe ao juiz interpretar esta história, uma vez que deve dar continuidade a esta incumbência e não caminhar em uma nova direção[49].


CONSIDERAÇÕES FINAIS

É cristalino que existe, no cenário jurídico, um receio de que, utilizando-se do ativismo judicial, o Poder Judiciário se transforme em um “super-poder”, ferindo a harmonia entre os três poderes. Destarte, o ativismo judicial deve ser utilizado em situações eventuais e respeitando alguns limites. Sua aplicação na efetividade de direitos fundamentais constitucionalmente tutelados parece ser mais aceito pela doutrina (mesmo pela doutrina contra o ativismo). Sua aplicação nas relações de consumo, como o assunto em testilha neste artigo, parece exagerada e descabida.

Como se vê, trata-se de tema polêmico, ao passo que divide não só doutrina e jurisprudência, mas também os próprios integrantes do Poder Legislativo, como constatado na tentativa de regulamentação dos aplicativos em Florianópolis, quando a Câmara de Vereadores local optou por retirar o projeto da pauta de urgência, alterando para o trâmite normal, justamente pela necessidade de maior debate em relação ao projeto. Enquanto isso não ocorre, os aplicativos continuam em pleno funcionamento, em função do Mandado de Segurança mencionado neste artigo.

O que se observa é que a questão é bastante delicada e polêmica. Além de envolver opinião pública, imprensa, etc, trata-se de assunto que implica em mudanças socioeconômicas. A profissão de taxista é antiga e tradicional, o que não isenta a classe das mudanças macro e microeconômicas da sociedade atual, como ocorre em qualquer outra atividade econômica. Os taxistas devem se adequar às transformações trazidas pela modernidade e pela globalização, buscando sempre oferecer o melhor serviço possível à população. Mas não se pode olvidar que algumas práticas como o dumping são ilegais e devem ser combatidas pelo poder público.

A profissão de taxista tem gerado empregos há muito tempo, sendo, em alguns casos, passada de geração para geração. Muitas são as famílias que dependem desta atividade para sobreviver. Em Florianópolis, são mais de 700 táxis, o que implica no emprego direto de em torno de 2000 pessoas, isso sem contar os empregos indiretos (como serviços de plotagem de veículos, venda e manutenção de taxímetros, etc). Em cidades maiores, como por exemplo o Rio de Janeiro, o número de táxis sobe para 58000, ou seja, há mais taxistas no Rio de Janeiro do que habitantes na maioria dos municípios do Brasil.

 Destarte, a questão necessita de regulamentação legislativa, de forma que os anseios da população sejam tipificados nas legislações municipais. Mas mesmo a regulamentação deve ser bastante discutida e analisada sob vários pontos de vista, pois cada linha do texto legal implicará mudanças significativas na vida de todas as pessoas envolvidas com o serviço. A estipulação de um preço mínimo ou um preço padrão, por exemplo, impede a prática do dumping, que se consubstancia na prática comercial de prestação de serviços com preços exageradamente abaixo dos praticados no mercado, com o intuito de prejudicar e eliminar os concorrentes locais, para adquirir o monopólio do produto ou serviço.

Esta prática deve ser combatida em todos os setores econômicos. No caso em tela, qualquer tipo de normatização deve prever um preço mínimo ou padrão para combater esta prática. Aliás, a grande maioria dos passageiros que utilizam os aplicativos de transportes individuais remunerados não-regulamentados, só o fazem em função do preço ser menor do que o praticado pelos serviços regulamentados. Ou seja, com a padronização dos preços o consumidor poderá realmente avaliar e optar pelo melhor serviço prestado.

Provavelmente a melhor opção de regulamentação seria que os aplicativos permitissem que somente os táxis, devidamente cadastrados junto ao órgão gestor municipal, pudessem se cadastrar nos aplicativos, ao passo que os veículos particulares e locados estariam proibidos. Afinal de contas, os aplicativos não efetuam o transporte de passageiros (ainda não foi inventado o teletransporte), eles só fazem o intermédio entre passageiros e motoristas. Ou seja, o aplicativo, teoricamente, poderia funcionar em qualquer meio de transporte (basta um celular para “receber” os pedidos de corridas).

O aplicativo apenas “chama” o motorista disponível mais próximo do passageiro. Este motorista poderia ser estar utilizando qualquer meio de transporte: táxi, carro particular, moto, bicicleta e até elevador. Supondo que só fosse permitido o cadastramento de táxis nos aplicativos. No caso, aos aplicativos seria reservado o direito de exigir dos táxis que pretendessem se cadastrar uma série de requisitos, como por exemplo um padrão mínimo de carro (motorização e largura interna, por exemplo), itens de conforto (banco de couro e ar condicionado, por exemplo), além de um sistema de feedback, através do qual os usuários avaliariam o atendimento e o padrão do veículo, de forma que os motoristas/veículos mal avaliados teriam seu cadastro no aplicativo revogado. Esta solução “forçaria” os taxistas a se adequarem aos padrões exigidos pelos usuários, uma vez que se o veículo não cumprir os requisitos mínimos, não poderá se cadastrar no aplicativo e se o motorista não prestar um atendimento adequado terá seu cadastro revogado.

Independentemente do modelo que será adotado, a normatização dos aplicativos será inevitável, cabendo aos membros do poder legislativo o encargo de analisar qual a melhor opção. A regulamentação certamente é o melhor caminho, até para não deixar aberta a solução para uma posterior ponderação por parte do aplicador.

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Sobre os autores
Eliane Pavanello

Graduação em Ciências Jurídicas pela Universidade da região de Joinville- UNIVILLE. Especialização em Direito Processual Penal pela Escola do Ministério Público de Santa Catarina em parceria com a UNIVILLE. Especialização em Direito Constitucional pela Escola Superior da Magistratura de Santa Catarina em parceria com a Univille e Mestranda do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica – PPCJ/UNIVALI.

Rafael Nunes Pires Rudolfo

Mestrando do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica – PPCJ/UNIVALI. Especialista em Direito Processual Civil. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Especialista em Gestão de Negócios Financeiros (MBA). Graduação em Direito. Graduação em Sistemas de Informação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAVANELLO, Eliane ; RUDOLFO, Rafael Nunes Pires. Ativismo judicial e o transporte público individual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5128, 16 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57229. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

Trabalho elaborado para o curso de Mestrado em Ciência Jurídica da Univali.

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