O Código de Processo Civil vigente (Lei 13.105/15) introduziu, no ordenamento jurídico, diversos institutos buscando atender aos fins sociais, promover a dignidade da pessoa humana e observar os princípios da proporcionalidade, razoabilidade, legalidade, publicidade e eficiência, consoante o artigo 8º.
Dentre várias normas inseridas no texto, chama atenção a norma prevista no artigo 927 (do Título “Da Ordem dos Processos e dos Processos de Competência Originária dos Tribunais”) que estabelece parâmetros a serem observados por juízes e tribunais no julgamento dos processos, ou seja, a lei processual introduziu um novo dever aos magistrados: o de respeitar as súmulas comuns dos tribunais. Vale mencionar que parcela minoritária da doutrina considera que o dispositivo traz uma mera recomendação, ao passo que a doutrina majoritária o considera norma cogente (obrigatória). Não bastasse, a lei processual consagrou também no artigo 926, o dever dos tribunais de segunda instância de uniformizar a jurisprudência pátria.
A despeito da regra do artigo 927 do Código de Processo Civil, o presente artigo busca compreender a norma do inciso IV. A referida norma expressamente diz que os juízes e tribunais observarão os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional. A redação é clara, sendo que o verbo utilizado no tempo futuro induz a dever de seguir as súmulas e não a uma mera possibilidade. De outro modo, a norma adjetiva atribuiu às súmulas comuns ou persuasivas o caráter vinculante (eficácia vinculante formal).
A súmula, tradicionalmente, representa a consolidação da jurisprudência de um tribunal. Após inúmeros julgamentos em determinado sentido, o tribunal aprova o enunciado sumular que solidifica determinado entendimento, o qual servirá de base a juízes e ao próprio tribunal na análise de futuros casos que se adequarem aos precedentes que deram origem à súmula. Destaca-se que, sendo súmula comum ou persuasiva, até o advento do artigo 927, IV, do CPC, os magistrados não estavam vinculados àquele entendimento, podendo proferir decisão em sentido contrário. De outro lado, há no ordenamento jurídico brasileiro, a súmula vinculante, introduzida pela emenda constitucional n. 45/2004, representativa de entendimentos em matéria constitucional. Conforme art. 103-A da Constituição Federal, a súmula vinculante, uma vez editada, vincula o Poder Judiciário e a Administração Pública direta e indireta, federal, estadual e municipal. O constituinte reformador optou, aos moldes do sistema estadunidense, tornar obrigatórios os entendimentos do Supremo Tribunal Federal para os demais órgãos do Judiciário brasileiro.
Em razão da existência de outra modalidade de súmula, é crucial distingui-las. A súmula vinculante decorre do texto constitucional e vincula não só o Judiciário, mas a Administração Pública direta e indireta, federal, estadual e municipal. De outra vertente, a súmula comum ou persuasiva com eficácia vinculante, por força do art. 927, IV, do Código de Processo Civil, vincula somente o Poder Judiciário. Ademais, registra-se que a eficácia vinculante da súmula comum só ocorrerá nos casos de matéria constitucional (STF) e matéria infraconstitucional (STJ). Se porventura, o STF editasse súmula relativa à matéria infraconstitucional não haveria qualquer dever de observação por parte dos juízes e tribunais.
Feitas tais considerações iniciais, há de trazer outras reflexões significativas sobre o instituto criado, a saber: seria ou não possível que a lei ordinária pudesse atribuir eficácia vinculante às súmulas persuasivas ou comuns? E haveria ou não inconstitucionalidade?
Quanto à possibilidade da lei ordinária prever o instituto, não se encontra qualquer óbice. É matéria que está na competência legislativa privativa da União (art. 22, inciso I, CF) – direito processual, tendo sido observados todos os trâmites procedimentais. O fato de a Constituição Federal ter inserido a eficácia vinculante às súmulas vinculantes e às decisões de controle concentrado de constitucionalidade (artigos 102, §2º e 103-A), não impedem em nada o legislador ordinário de trazer nova possibilidade no Código de Processo Civil. Ademais, é razoável e faz sentido que as Cortes Superiores zelem pela coesão e homogeneidade das decisões judiciais. Caso contrário, enfrentar-se-ão situações conflitantes que desprestigiam o Poder Judiciário, afetando a estabilidade e a segurança jurídica. A esse respeito, segue a ementa de julgado do Superior Tribunal de Justiça, cujo relator foi o Ministro Humberto Gomes de Barros, vejamos:
“PROCESSUAL – STJ - JURISPRUDÊNCIA - NECESSIDADE DE QUE SEJA OBSERVADA. O Superior Tribunal de Justiça foi concebido para um escopo especial: orientar a aplicação da lei federal e unificar-lhe a interpretação, em todo o Brasil. Se assim ocorre, é necessário que sua jurisprudência seja observada, para se manter firme e coerente. Assim sempre ocorreu em relação ao Supremo Tribunal Federal, de quem o STJ é sucessor, nesse mister. Em verdade, o Poder Judiciário mantém sagrado compromisso com a justiça e a segurança. Se deixarmos que nossa jurisprudência varie ao sabor das convicções pessoais, estaremos prestando um desserviço a nossas instituições. Se nós – os integrantes da Corte – não observarmos as decisões que ajudamos a formar, estaremos dando sinal, para que os demais órgãos judiciários façam o mesmo. Estou certo de que, em acontecendo isso, perde sentido a existência de nossa Corte. Melhor será extingui-la. (AgRg nos EREsp 228.432/RS, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, CORTE ESPECIAL, julgado em 01/02/2002, DJ 18/03/2002, p. 163)
A ementa apresenta exatamente aquilo que se espera do Judiciário: segurança jurídica nas decisões. Casos iguais com decisões diametralmente opostas não devem ser admitidos. Registra-se que há crítica quanto à introdução do inciso IV do artigo 927 do Código de Processo Civil, no sentido de que implica em “engessamento” da atuação dos magistrados. Com o devido respeito, o objetivo maior da sistemática processual vigente não é outro senão primar pela harmonia da jurisprudência e pela celeridade processual, a fim de louvar a isonomia, a estabilidade e a segurança jurídica. O legislador busca, assim, que os Tribunais respeitem sua jurisprudência e que essa sirva de paradigma aos seus membros. Decisões conflitantes sobre o mesmo caso somente geram descrédito e desconfiança ao Judiciário.
E mais. Salienta-se que o Código de Processo Civil de 2015 retirou o “livre-convencimento motivado” consoante a redação do artigo 131 do CPC/73. Hoje, vigora o “convencimento motivado” (art. 371, CPC), isto é, o magistrado firma seu convencimento a partir das provas colhidas nos autos do processo e da jurisprudência dos tribunais, especialmente, dos tribunais superiores (STJ e STJ), pois são tais órgãos que dão a última palavra em matéria constitucional e infraconstitucional, respectivamente.
Sobre a observância das súmulas comuns ou persuasivas, o professor José Miguel Garcia Medina enfatiza que: “[...] Isso não significa, porém, que as súmulas “não vinculantes” possam ser ignoradas, pelos juízes e Tribunais. O mesmo se deve dizer em se tratando de orientação firmada na jurisprudência. A essa conclusão se chega não apenas pelo que dispõe o art. 927 do CPC/2015 (LGL\2015\1656), mas, também, ao se considerar a regra prevista no art.489, § 1.º, V e VI e no art. 1.022, parágrafo único, I do CPC/2015”.
Ressalta-se, ainda, que, em termos práticos, a observância da jurisprudência evitará a propositura de inúmeras ações, por vezes, infundadas que abarrotam o Judiciário, ou seja, as denominadas “aventuras jurídicas” patrocinadas sem que haja o mínimo razoável de fundamentação para os pleitos.
Com efeito, juízes e tribunais devem observar as súmulas comuns que estão dotadas de eficácia vinculante, sendo mister a correta adequação e análise do caso concreto aos casos que originaram a súmula. Se não fizerem, haverá nítido “error in judicando”, com a incorreta aplicação do dispositivo, o que poderá ser reformado pelos tribunais em segunda instância e pelas Cortes Superiores pelo manejo dos recursos competentes. Outra possibilidade é a ocorrência de superação (“overruling”) ou de distinção (“distinguishing") entre o caso julgado e o entendimento sumular. Mas neste caso, cabe a devida fundamentação pelo magistrado. Tanto é verdade que o artigo 489, §1º, incisos V e VI do CPC[6] disciplinam exatamente esse ponto.
Não se pode olvidar que, embora vinculem os julgadores, a súmulas podem ser alteradas, ou seja, o entendimento dos tribunais é passível de modificação. É claro que, por questões de segurança jurídica, a mudança não pode ocorrer de modo abrupto, mas demanda estudo, reinterpretação e reflexão, bem como a demonstração do surgimento de uma nova realidade fática. Nestes termos, cita-se brilhante consideração da lavra do saudoso Ministro Victor Nunes Leal a respeito das súmulas: “(...) É um instrumento flexível, que simplifica o trabalho da justiça em todos os graus, mas evita a petrificação, porque a Súmula regula o procedimento pelo qual pode ser modificada (...). Apenas exige, para ser alterada, mais aprofundado esforço dos advogados e juízes. Deverão eles procurar argumentos novos, ou aspectos inexplorados nos velhos argumentos, ou realçar as modificações operadas na própria realidade social e econômica.”[7]
Dessa forma, ficam aqui os argumentos em favor da constitucionalidade da norma do artigo 927, IV, do Código de Processo Civil. Todavia, há outra questão a ser discutida: o marco temporal da eficácia vinculante da súmula comum. Considerando que a legislação processual passou a viger em 16 de março de 2016, todas as súmulas comuns editadas (anteriores e posteriores) são dotadas de eficácia vinculante? Ou somente as aquelas editadas após entrada em vigor terão tal efeito?
Conquanto sejam possíveis ambas as possibilidades, tendo em vista a segurança jurídica e a razoabilidade e proporcionalidade, entende-se que a segunda hipótese deve prevalecer, ou seja, somente as súmulas posteriores ao CPC/15 devem ser dotadas da eficácia vinculante. Curioso notar, entretanto, que tal conclusão leva ao surgimento de três modalidades de súmulas em nosso ordenamento: (i) súmulas vinculantes; (ii) súmulas comuns com eficácia vinculante e; (iii) súmulas comuns editadas antes do CPC/15 (sem eficácia vinculante).
Por último, não se pode olvidar que a reclamação constitucional só é cabível em face de súmula vinculante, por previsão expressa do art. 103-A, §3º, CF e Lei n. 11.417/06, não sendo medida contra súmulas comuns, ainda que dotadas de eficácia vinculante.
Enfim, o tema da eficácia vinculante das súmulas persuasivas ou comuns é de grande relevância para o estudo do Direito Constitucional e Processual Civil. Como se demonstrou há posicionamentos favoráveis e contrários à sua aplicação. Nada obstante, advoga-se aqui pela constitucionalidade da norma, bem como a aplicação da eficácia vinculante apenas aos enunciados editados, posteriormente, à vigência do Código de Processo Civil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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WAMBIER, Tereza Arruda Alvim. Por que respeitar os precedentes? Matéria publicada na Gazeta do Provo, São Paulo, em 16/10/2015.
Notas
[1] Alexandre Freitas Câmara (O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015).
[2] Cassio Scarpinella Bueno (Manual de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 545); Guilherme Marinoni (Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil, São Paulo: RT, 2015, p. 2.077); Humberto Theodoro Júnior (Novo CPC – fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.309).
[3] Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na decisão, os motivos que lhe formaram o convencimento.
[4] Art. 371. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.
[5] MEDINA, José Miguel Garcia, “Integridade, Estabilidade e Coerência da Jurisprudência no Estado Constitucional e Democrático de Direito: O papel do precedente, da jurisprudência e da Súmula, à luz do CPC/2015”, Revista dos Tribunais | vol. 974/2016 | p. 129 - 154 | Dez / 2016DTR\2016\24518;
[6] Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
[7] LEAL, Victor Nunes, “Passado e futuro da súmula do STF”, disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43387. Acesso em 28.03.17