IV) Da insegurança jurídica decorrente dos entendimentos judiciais analisados
Com o objetivo de se ressaltar o profundo impacto que a tese da revogação da Portaria Interministerial SDH/MPS/MF/MPOG/AGU nº 1/2014 traria para as políticas das pessoas com deficiência, caso fosse adotada de forma irrestrita pelo Poder Judiciário, procurou-se explicitar, ao longo deste trabalho, o extenso caminho normativo percorrido até se instituir o IF-BrA, instrumento que, conforme visto, concretiza a difícil tarefa de estabelecer critérios técnicos que possibilitem a avaliação e a identificação da deficiência a partir de uma perspectiva funcional/social, em respeito ao previsto na Convenção da ONU.
Ao se afirmar que a LC nº 142/2013 carece de regulamentação, sem fundamento idôneo a justificar a revogação da Portaria que aprova o IF-BrA, exsurge verdadeira situação de insegurança jurídica, tanto para os segurados quanto para o INSS, uma vez que se desconsidera a necessidade de proteção da confiança e da isonomia na aplicação da LC nº 142/2013.
A norma previdenciária, em especial, quando dispõe sobre regras excepcionais e diferenciados tal como ocorre com a aposentadoria da pessoa com deficiência, não pode prescindir de mecanismos concretos que permitam direcionar a sua aplicação àqueles que fazem jus a essa política. Desse modo, naturalmente, a principal dúvida que se coloca é em torno de qual instrumento pericial o INSS e o Poder Judiciário deveriam se utilizar caso se admitisse a revogação do IF-BrA.
Nesse particular aspecto, não seria adequado substituir a perícia funcional do INSS por uma perícia médico pericial, ainda que no âmbito do Poder Judiciário. Tampouco se poderia admitir que, sem a devida fundamentação adequada, o juiz pudesse decidir acerca da deficiência ou do seu grau. Em ambas as situações, haveria o risco potencial de um indesejado retrocesso ao modelo médico para fins avaliação da deficiência.
Além disso, não se pode olvidar que a definição de “impedimento de longo prazo” também se encontra unicamente na Portaria Interministerial SDH/MPS/MF/MPOG/AGU nº 1/2014.
Por isso, com todo o devido respeito a eventual entendimento contrário, tem-se que o argumento de que a Portaria Interministerial AGU/MPS/MF/SEDH/MP nº 1/2014 fora revogada não pode ser utilizado com o único propósito de permitir a revisão das conclusões da perícia multidisciplinar promovida pelo INSS. Conforme apontado anteriormente, tal entendimento se pauta em premissas equivocadas e enseja insegurança jurídica para todas as partes envolvidas.
Por evidente, deve-se admitir a contestação e revisão das conclusões da perícia funcional do INSS, tal como já ocorre em processos administrativos e judiciais nos quais se discute o direito a benefício cuja concessão dependa de pronunciamento técnico da perícia do INSS; por exemplo, o direito a concessão de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez.
Nesse sentido, caso o Poder Judiciário entenda de forma justificada pela necessidade de reavaliar a deficiência do segurado, será possível promover perícia judicial que se paute pelos critérios da LC nº 142/2013 e com a aplicação do IF-BrA. Porém, conforme dito, considera-se criticável a substituição das conclusões da perícia multidisciplinar do INSS por decisão do juízo sem amparo em prova pericial ou com base em laudo da perícia judicial que não se paute por critérios de deficiência funcional.
A avaliação de deficiência para fins de acesso de determinado grupo de indivíduos a políticas públicas específicas é complexo e desafiante. Para garantir justiça social e segurança neste processo é fundamental que as regras de acesso e os instrumentos de avaliação estejam totalmente aderentes aos preceitos legais e que sejam baseados no conhecimento científico sobre o tema. Nesse contexto, a construção do IF-BrA incorpora o conceito de deficiência trazido pela Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, a qual possui status de Emenda Constitucional, bem como se pauta em conhecimento acadêmico robusto, desenvolvido e validado por especialistas altamente reconhecidos pela academia, possibilitando a transposição de questões qualitativas em expressões quantitativas de forma técnica e segura.
Discordâncias de eventuais enquadramentos realizados no âmbito administrativo ocorrerão e são fundamentais para a constante evolução da política pública, permitindo capturar desvios e aperfeiçoar os instrumentos utilizados. Questões como essas são comuns sempre que a discussão verse sobre elementos de cunho subjetivo, pois a percepção da deficiência se dá tanto por terceiros quanto pela própria pessoa com deficiência, as quais podem ter definições distintas para uma mesma situação, motivo pelo qual a construção de padrões claros facilitam a harmonização e o entendimento dos conceitos legais.
A alteração do modelo biomédico da deficiência, o qual tinha como foco único o corpo do indivíduo que “portava” a deficiência para um modelo biopsicossocial, o qual parte de uma perspectiva inclusiva, tirando o foco do indivíduo e transpondo-o para o ambiente que circunda essa pessoa que por não estar adaptado impede que a participação me igualdade de condições, representa uma conquista das pessoas com deficiência e destaca a importância de toda a sociedade e o Estado atuarem no sentido de diminuir estas barreiras, garantindo a efetiva participação de todos. Entretanto, esta alteração é recente, sendo sua implementação um desafio global. A difusão e incorporação deste novo conceito levará tempo e demanda o esforço constante de todos os órgãos públicos, em especial aqueles que decidem em última instância sobre a interpretação das leis.
Assim, sempre que conflitos surgirem, é necessário que todos conheçam e estejam aderentes ao conceito de deficiência trazido pela Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, garantindo o pleno cumprimento dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
V) Conclusões
A partir das considerações acima apresentadas e tendo em vista a finalidade a que se propõe o presente artigo, qual seja, apresentar argumentos normativos e científicos que fundamentaram a edição da Portaria Interministerial AGU/MPS/MF/SDH/MP nº 1/2014, e analisar as decisões judiciais que negam vigência ao referido instrumento, é possível extrair duas importantes conclusões.
A primeira é no sentido de que a referida Portaria está em vigor e em momento algum deixou de produzir seus efeitos, haja vista que a competência para dispor sobre o instrumento de avaliação da deficiência para fins de concessão do benefício previsto na LC nº 142, de 2013, é conjunta de cinco Órgãos Públicos, não podendo o ato de um único Ministro tornar sem efeito a publicação do ato conjunto. Ademais, de uma simples leitura, é possível concluir que a Portaria nº 30 da SDH, publicada no Diário Oficial da União de 10 de fevereiro de 2015, torna sem efeito a republicação realizada no Diário Oficial na União de 09 de fevereiro de 2015, Seção 1, página 1, conforme expresso no ato, não afetando a validade da publicação da Portaria Interministerial SDH/MPS/MF/MPOG/AGU nº 1, de 27 de janeiro de 2014, realizada no Diário Oficial da União de 30 de janeiro de 2014.
A segunda conclusão relevante é no sentido da evidente necessidade de pautar eventual perícia judicial para aferição da deficiência nos critérios estabelecidos pela Portaria Interministerial SDH/MPS/MF/MPOG/AGU nº 1, de 27 de janeiro de 2014, considerando que o IF-BrA possui amparo normativo no conceito de deficiência trazido pela Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, a qual possui status constitucional, bem como possui a robustez científica necessária para garantir segurança na concessão da aposentadoria regulamentada pela LC nº 142/2013. O IF-BrA foi elaborado e validado por profissionais altamente qualificados e especializados, permitindo que a percepção subjetiva da deficiência seja adequadamente objetivada, garantindo justiça social e idênticos parâmetros na concessão do benefício.
Assim, os profissionais da medicina e do serviço social indicados pelo juízo para promover uma nova avaliação devem estar adequadamente qualificados para aplicar o IF-BrA e alinhados ao conceito de deficiência definido pela legislação pátria, sob pena do expert captar a sua percepção pessoal de deficiência, subjetivando a concessão de um direito e trazendo insegurança de desigualdade nas regras para aferição do benefício, distanciando os critérios utilizados em ações judiciais daquele definido para a concessão administrativa do direito e configurando, em última hipótese, uma substituição do órgão responsável pela normatização, regulamentação e promoção da política pública. Não é suficiente, para avaliação do direito ao benefício previsto na LC nº 142/2013, a simples indicação de um profissional de determinado ramo para realizar a avaliação, pois diversos outros aspectos estão envolvidos, inclusive a necessidade de utilizar um instrumento uniforme e consistente para garantir justiça na avaliação realizada.
Notas
[1] Foram analisados oito recursos cíveis, dos quais 5 acolhem a tese de que a Portaria Interministerial SDH/MPS/MPOG/AGU nº 1/2014 estaria revogada: 1) Recurso Cível nº 5007563-18.2014.404.7114/RS; 2) Recurso Cível nº 5020333-61.2014.404.7205/SC; 3) Recurso Cível nº 5009587-28.2014.404.7208/SC; 4) Recurso Cível nº 5017148-15.2014.404.7205/SC; 5) Recurso Cível nº 5016269-71.2015.404.7205/SC; 6) Recurso Cível nº 5019633-85.2014.404.7205/SC; 7) Recurso Cível nº 5019633-85.2014.404.7205/SC; e 8) Recurso Cível nº 5028046-02.2014.404.7201/SC.
[2] Conforme informações disponibilizadas pelo Comitê da ONU para os Direitos das Pessoas com Deficiência, instituído pelo Artigo 34 da Convenção. Disponível em: http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/CRPD/Pages/CRPDIndex.aspx.
[3] Com relação à conceituação de deficiência, é preciso observar que apesar da opção expressa dos elaboradores da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, sabe-se que esse é um campo de estudo historicamente complexo, inserido em um contexto maior de constante formulação e reformulação teórica e prática.
[4] DINIZ, Débora. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2007.
[5] LOPES, Laís de Figueirêdo de. Artigo 1: Propósitos. In: Novos Comentários à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR)/Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD). Brasília, 2014.
[6] Anteriormente à CIF, a OMS utilizava do documento “International Classification of Impairments, Disabilities, and Handicaps” – ICIDH, pressupondo um modelo médico (DINIZ, Débora; BARBOSA, Lívia; e SANTOS, Wederson Rufino dos. Deficiencia, Direitos Humanos e Justiça. Revista Internacional de direitos humanos, V.6, n. 11, dez. 2009. Disponível em: http://www.conectas.org/pt/acoes/sur/edicao/11.).
[7] Com efeito, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e seu Protocolo Facultativo representa a única norma internacional incorporada pelo rito especial instituído pela EC nº 45/2004.
[8] Sabe-se que a Constituição de 1988 contempla a igualdade formal no “caput” do art. 5º e a igualdade material. Inclusive, especificamente com relação às pessoas com deficiência, é possível destacar diversos dispositivos que visam assegurar o acesso igualitário a direitos e as medidas que efetivamente possibilitem a sua concretização mediante tratamento diferenciado, conforme se constata nos arts. 7º, XXXI; 23, II; 24, XIV; 37, VIII; 40, § 4º, I; 201, § 1º; 203, IV e V; 208, III; 227, § 1º, II; e § 2º, e 244 da Constituição.
[9] Com relação aos servidores públicos, a EC nº 47, de 2005, também alterou o § 4º do art. 40 da Constituição, para estabelecer a necessidade de aposentadoria com critérios e requisitos diferenciados às pessoas com deficiência titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações. No entanto, esse dispositivo carece de regulamentação infraconstitucional, tal como já ocorria com a aposentadoria especial dos servidores públicos que exercem suas atividades sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física. Nesse particular, registre-se que a Súmula Vinculante nº 33 do Supremo Tribunal Federal – STF faz referência expressa apenas a hipótese de aposentadoria especial do servidor público com base no inciso III do § 4º do art. 40 da Constituição para determinar que se aplicam ao servidor público, no que couber, as regras do regime geral da previdência social sobre aposentadoria especial. Porém, a orientação jurisprudencial do STF tem se firmado no sentido de que também aos servidores públicos com deficiência deveriam ser aplicadas analogicamente as regras do RGPS, no que couber (MI 1.885 AgR, rel. min. Cármen Lúcia, j. 22-5-2014, P, DJE de 13-6-2014; e MI 5126 AgR, rel. min. Luiz Fux, j. 27-09-2013, P, DJE de 02-10-2013). Inclusive, em 2016, iniciou-se julgamento da Proposta de Revisão da SV nº 33 formulada pelo Procurador-Geral da República, a fim de que contemple também a situação dos servidores públicos com deficiência.
[10] A LC nº 142/2013 se originou, em especial, de duas proposições legislativas: os Projetos de Lei Complementar – PLP nº 277/2005; e o nº 280/2005. O PLP nº 277/2005 tratava da concessão de aposentadoria com redução variável do tempo de contribuição e da idade de acordo com a deficiência considerada leve, moderada ou grave. No entanto, o PLP nº 280/2005, apensado à proposição principal, disciplinava esse benefício apenas com a redução de cinco anos nos requisitos de tempo de contribuição e de idade. Quando da análise desses projetos de lei na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, ainda em 2005, o Congresso Nacional passou a tratar desses critérios visando compatibilizar as duas propostas, ou seja, com manutenção da redução de cinco anos nos requisitos de tempo de contribuição e de idade, assim como com possibilidade de redução maior de acordo com a deficiência considerada leve, moderada ou grave.
[11] Disponível em: http://www.who.int/disabilities/data/mds/en/.
[12] SABARIEGO, Carla. Avaliação da Deficiência Após a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência: Estudo Comparativo entre os Instrumentos Utilizados para a Efetivação de Direitos Previdenciários no Brasil e na Alemanha. 2016. Disponível em http://www.previdencia.gov.br/wp-content/uploads/2016/09/sausegtrabestudos.pdf.
[13] FARIAS, Norma; BUCHALLA, Cássia Maria. A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde da Organização Mundial de Saúde: Conceitos, Usos e Perspectivas. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbepid/v8n2/11.pdf. Acesso em 02.02.2017.
[14] Riberto M, Miyazaki MH, Jucá SSH, Sakamoto H, Pinto PPN, Battistella LR. Validação da Versão Brasileira da Medida de Independência Funcional . Acta Fisiátr. 2004;11(2):72-76.
[15] Franzoi AC, Xerez DR, Blanco M, Amaral T, Costa AJ, Khan P, et al. Etapas da elaboração do Instrumento de Classificação do Grau de Funcionalidade de Pessoas com Deficiência para Cidadãos Brasileiros: Índice de Funcionalidade Brasileiro - IF-Br. Acta Fisiátr. 2013;20(3):164-170.
[16] BRASIL. Portaria Interministerial SDH/MPS/MF/MPOG/AGU nº 1, de 27 de janeiro de 2014. Publicada no Diário Oficial da União de 30 de janeiro de 2014.
[17] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013.
[18] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27ª ed. São Paulo. Atlas, 2014.
[19] Com a Lei nº 13.341, de 2016 (conversão da MP nº 726, de 12 de maio de 2016), o Ministério da Previdência Social foi incorporado ao Ministério da Fazenda e, com a MP nº 768, de 2017, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República se transformou no Ministério dos Direitos Humanos.