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Análise crítica da teoria formalmente vinculante dos precedentes

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19/07/2017 às 15:50
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3. A Teoria dos Precedentes: O stare decisis e o papel das súmulas

O precedente é fonte formal no direito contemporâneo brasileiro e tendencialmente existem razões para adotar os precedentes como fontes do direito mesmo em ordenamentos jurídicos de civil law[56]. Diante desta situação é que é possível afirmar que a doutrina sempre esteve voltada ao estudo de percepção da realidade do processo e da aplicação do direito. Vejamos o que a este respeito afirma Pontes de Miranda:

“Tempos houve em que o processo, em vez de realizar, criava o direito. Ainda hoje ele cria. É de esperar-se que, dentro das futuras planificações econômicas, a sua criação, dentro delas, seja enorme. O que lhe é essencial é aplicar o direito. Não há só aplicação de direito preexistente. Aplica-se, também, o direito que se revela no momento, coincidindo então incidência e aplicação judicial, como coincidem incidência e aplicação espontânea quando a lei manda que no dia tal se pratique o ato tal e as pessoas sujeitas a ela, obedecem”[57]

Diversas são as decisões que emanam do Poder Judiciário no direito brasileiro que possuem ou podem vir a possuir efeito vinculativo, entre estas as súmulas. As súmulas surgiram no direito brasileiro em 1963, por emenda regimental do Supremo Tribunal Federal, em 30 de agosto de 1963, sendo que os primeiros 370 enunciados foram publicados apenas em 1º de março de 1964[58].

A primeira proposta de súmulas no direito brasileiro veio no projeto de Constituição do Instituto dos Advogados Brasileiros com inspiração nos assentos do direito português. Essa primeira tentativa, entretanto, não teve resultados o que torna incorreto assimilar as súmulas aos assentos do ponto de vista histórico[59]. À guisa de conhecimento vale conferir o ensinamento de Thomas Bustamante sobre os motivos que fizeram o Estado Português eliminar os assentos do sistema jurídico português: “Foram duas, portanto, as principais razões pelas quais os assentos com força vinculante foram eliminados do sistema jurídico português: o seu efeito vinculante e o seu caráter estático e irrevogável”[60].

A proposta que vingou no Supremo Tribunal Federal foi elaborada pela Comissão de Jurisprudência do Tribunal, constituída pelos Ministros Gonçalves de Oliveira, Victor Nunes Leal e Pedro Chaves[61]. A proposta original pretendia as súmulas como um método de trabalho, proporcionando maior estabilidade à jurisprudência e simplificando o julgamento das questões mais frequentes no tribunal[62].

O Ministro Aliomar Baleeiro, Ministro do Supremo Tribunal Federal à época, alerta que a proposta que vingou teve por modelo o stare decisis e não os assentos. Vejamos: “Essa fórmula do stare decisis et non quieta movere custou muito a ser aceita pelo nosso Supremo Tribunal Federal que, afinal, em 1963, atacou o problema decididamente com a Súmula, em que se compendiam os pontos de jurisprudência predominante”[63].

Muito embora tenha sido esta a história oficial, é bom refletir que, na cultura brasileira, os tribunais acabaram aplicando a súmula como se assentos fossem, com caráter abstrato e genérico, sem se preocuparem com nenhuma relação das súmulas com os fatos dos casos concretos que lhes deram origem ou com a regra individual neles determinada (ratio decidendi/holding)[64].

Neste momento é necessário que façamos as devidas diferenciações entre decisões judiciais, jurisprudência e precedentes. Precedentes consistem no resultado da densificação de normas estabelecidas a partir da compreensão de um caso e suas circunstâncias fáticas e jurídicas[65]. De sorte que não se confundem com a jurisprudência, porque obrigam o próprio Tribunal que decidiu em uma tendência de manutenção e estabilidade. A jurisprudência atua de forma persuasiva o que não faz o menor sentido, quando estamos a falar dos precedentes, pois estes possuem tanto poder vinculativo horizontal, quanto vertical - temos aí, portanto, uma diferença qualitativa entre jurisprudência e precedentes.

Por seu turno, as decisões judiciais, mesmo quando proferidas por Tribunais ou por Cortes Supremas, poderão não constituir precedentes. Não será precedente, a decisão que simplesmente aplicar um caso-precedente já existente, ou a decisão que não tiver conteúdo de enunciação de uma regra jurídica ou de um princípio universalizável. De igual forma, não se tem por precedente, a decisão que apenas se dedicar a indicar a subsunção de fatos ao texto legal, sem apresentar conteúdo interpretativo relevante para o caso-atual e para os casos-futuros[66].

Ainda neste contexto, um outro conceito importante de ser observado é o de stare decisis. Stare decisis é uma expressão latina reduzida de stare decisis et non quieta movere, que, literalmente, significa “mantenha-se a decisão e não se moleste o que foi decidido”[67]. Um sistema que orientado pelo stare decisis significa que os julgadores são instruídos e zelosos em suas ações no respeito a hierarquia das decisões e da formação das normas conforme o já decidido pelas Cortes Superiores. Isto é o mesmo que orientar o ordenamento jurídico na medida adequada (vinculação vertical e horizontal, ônus argumentativo forte em prol dos precedentes etc) da Teoria dos Precedentes.

Em tais sistemas (e este é o caso do ordenamento jurídico brasileiro desde o Código de Processo Civil de 2015) os precedentes devem ser tratados como normas – fonte do direito primária e vinculante – e, por isso, não se confundem com Jurisprudência ou Decisões Judiciais. Isso ocorre seja pela natureza distinta do direito jurisprudencial (reiteradas decisões dos tribunais que exemplificam o sentido provável da decisão, sem caráter obrigatório e vinculante), seja porque não se podem confundir precedentes com decisões de mera aplicação de lei ou de reafirmação de casos-precedentes[68].


4. Análise dogmática da Teoria dos Precedentes no Direito brasileiro: O Código de Processo Civil de 2015

A produção do Código de Processo Civil de 2015 atendeu as exigências que a doutrina apontava como necessárias a construção de um sistema de precedentes normativos formalmente vinculantes. Para tanto demonstraremos a seguir quais as prescrições utilizadas nesse instrumento normativo que consignou as normas gerais para o direito processual civil lato sensu.

Conforme afirmado anteriormente, a maior de todas as prescrições foi a que alterou o paradigma processual, fazendo com que o processo civil tivesse que ser orientado em conformidade com a Constituição Federal. É o que vemos nitidamente no artigo do novel diploma legislativo. Decorre diretamente desta mudança de paradigma, por exemplo, a vedação a decisão surpresa, conforme previsto no artigo 10 do CPC/15: “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”[69]. Com base neste artigo, mas também orientados pelos artigos 926 e 927, o Fórum Permanente de Processualistas Civis, realizado na cidade de Vitória no Espírito Santo, publicou o Enunciado de número 458 que afirma que “para a aplicação de ofício, de precedente vinculante, o órgão julgador deve intimar previamente as partes para que se manifestem sobre ele”[70].

Ocorre que não apenas o princípio do contraditório, previsto constitucionalmente no artigo 5º, inciso LV, foi atendido pelo CPC/15, mas também a regra que exige motivação das decisões prevista no artigo 93, inciso IX. Para tanto o artigo 489 estabeleceu primariamente quais os requisitos essenciais da sentença, deixando para o §1º a listagem de uma extensa lista exemplificativa de decisões que não são consideradas fundamentadas.

Neste sentido, Hermes Zaneti dá especial relevância a dois aspectos da fundamentação da sentença que se correlacionam com a aplicação dos precedentes e estão listados no §1º do artigo 489. São eles: primeiro, que os precedentes são aplicados de forma distinta das leis, exigindo a demonstração da identidade de fundamentos determinantes (unicidade da questão fático-jurídica, ratio decidendi ou holding, pela qual as circunstâncias de fato de um caso devem ser conectadas à solução jurídica dada), que deve ser visualizada entre o caso-precedente e o caso-atual, inclusive quando se trate de enunciados de súmula (art. 489, §1º, V, c/c art. 926, §2º)[71].

Segundo, mas de relevância tal qual o primeiro, versa sobre a obrigatoriedade de motivar a decisão, especialmente, quando da não aplicação de precedentes ou enunciados de súmulas invocados pela parte. Situação na qual será obrigatória a demonstração da distinção do caso em julgamento ou da superação do entendimento sumulado.

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Estes aspectos são fundamentais na aplicação dos precedente e, em especial, das súmulas e esta importância é visível quando analisamos o artigo 489, II, que determina como elemento essencial da sentença a descrição dos fundamentos, descrição na qual o Juiz analisará as questões de fato e de direito, e a este dispositivo acrescemos o disposto no artigo 489, §1º, V e VI, que prescrevem que decisões que se limitem a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos ou que deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento não poderão ser consideradas decisões fundamentadas. A conclusão da junção destes dois dispositivos, considerando o previsto no artigo 93, IX da CF/88, é que nestes casos a decisão judicial deverá ser considerada nula.

Além do princípio da contraditória e da regra da motivação o CPC/15 preocupado com a uniformidade, integridade, estabilidade e coerência de suas decisões e em decorrência do sistema hibrído do ordenamento jurídico brasileiro optou por estabelecer um sistema de precedente formalmente vinculantes de forma que estabelece no artigo 927 quais as decisões para as quais o novel diploma legislativo dá força de caráter vinculante as cortes judiciais[72].

Na hercúlea tarefa de demonstrar as novas tratativas dadas pelo Código de Processo Civil de 2015 ao microssistema dos precedentes, enfim, concluímos o núcleo central com as prescrições expostas nos artigos 926 e 927. O artigo 926, §2º adentra o sistema jurídico processual brasileiro para modificar a forma cultural pela que as súmulas obtiveram na aplicação prática nos tribunais. Conforme já tratado anteriormente, as súmulas adentraram o sistema jurídico brasileiro com a ideia do stare decisis, mas foram aplicadas em moldes semelhantes aos dos assentos portugueses. Em outras palavras, elas foram prescritas para atentarem as circunstâncias de fato e de direito nas quais foram produzidas, mas acabaram por serem utilizadas de maneira genérica e geral como se normas abstratas fossem.

Esta é a razão para que o artigo 926, em seu parágrafo segundo prescreva que ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação. Entendemos que a possibilidade de que as súmulas publicadas antes da entrada em vigor do CPC/15 permaneçam em vigência, depende diretamente da modificação da forma como estavam sendo aplicadas, com o fito de que não careçam de ilegalidade. Tal vício de legalidade subsiste ainda contra as súmulas vinculantes, que possuem expressa previsão constitucional. Isto ocorre, porque não é tão somente a respeito da produção da súmula que se exige atenção aos fatos e ao direito discutido, mas também em relação a sua aplicação/interpretação. É certo, entretanto, que tal vício apenas subsiste nos casos em que o microssistema procedimental seja o processual civil ou a ele recorra como subsidiário e não haja regra em sentido contrário (é o caso dos processos do trabalho ou dos processos tributários).

Outro relevante aspecto que também necessita ser levado em consideração é que o trazido à baila pelo artigo 8º do CPC/15 (Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência[73]) que deve ser combinado com o artigo 5º, II da Constituição Federal. O artigo 8º é um claro sinal de que o modelo de precedentes no Brasil não significa o abandono da observância da lei escrita, mas seu complemento necessário, na integração entre a atividade do legislador e a atividade do juiz[74].

Quanto à Teoria dos Precedentes, outros três aspectos ainda se destacam como essenciais ao novel entendimento trazido pelo CPC/15. O primeiro deles é que foi agravado e transformado em mais rigoroso o controle de precedentes formalmente vinculantes normativos fortes (de jure), por exemplo, por meio de “ação de reclamação”, prevista no artigo 988 e que tem cabimento quanto a proteção dos precedentes constitucionais nos casos expressos em lei, através do Supremo Tribunal Federal. O segundo aspecto é a previsão do artigo 1035, com especial relevo em seu §3º, de que constitui repercussão geral e, portanto, atende ao requisito para Recurso Extraordinário, quando a decisão impugnada tenha atingido súmula ou precedente do STF. Por último, a previsão de “agravo extraordinário”, art. 1042, para fazer subir às Cortes Supremas brasileiras os recursos sobrestados em julgamento de recursos especiais e extraordinários repetitivos. Note-se, aqui, especialmente, que o modelo projetado permite a alegação de distinção e de superação do precedente tomado como paradigma para a inadmissibilidade do recurso agravado (art. 1042, §1º, II do CPC/15)[75].

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Sobre o autor
Markson Valdo Monte Rocha

Mestrando em Jurisdição e Processos Constitucionais pela UFPE Pós-graduando em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes - Curso Fórum. Graduado na Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Centro de Ciências Jurídicas - CCJ. Faculdade de Direito do Recife - FDR.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Markson Valdo Monte. Análise crítica da teoria formalmente vinculante dos precedentes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5131, 19 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58499. Acesso em: 24 abr. 2024.

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