8. A QUANTIFICAÇÃO DO DANO MORAL E A RATIO DECIDENDI.
Uma das grandes críticas existentes no tema referente à quantificação do dano moral envolve o seu tabelamento. Os críticos que apresentam forte resistência à liberdade do magistrado em arbitrar o valor do dano moral defendem a existência de uma tabela previamente determinada para cada um dos casos reconhecidos como passíveis de indenização. Seria, no dizer de Wesley de Oliveira Louzada Bernardo “o nirvana dos magistrados, livres, agora, de uma das mais árduas tarefas de sua profissão”[36].
Pelo tabelamento, haveria uma relação de valores agregados a determinado tipo de comportamento que seria disponibilizado para a consulta pelo julgador. Este, por sua vez, não necessitaria adentrar em aspectos subjetivos do agressor, do agredido e até mesmo do dano para identificar o valor correto. Assim como numa lista de compras, bastaria escolher o “produto” e aplicar o seu preço.
A ideia não é nova e, mesmo assim, até os dias atuais ainda recebe fortes críticas da doutrina brasileira. “Estou convencido, todavia, de que não há mais nenhum limite legal prefixado, nenhuma tabela ou tarifa a ser observada pelo juiz, mormente após a Constituição de 1988”[37]. Apesar da maioria da doutrina refutar a questão do tabelamento, esta ameaça surge com a adoção do sistema de precedentes vinculatórios pelo Novo Código de Processo Civil. A pergunta que se faz é a seguinte: o valor arbitrado pelo magistrado prolator do caso paradigma deverá vincular o julgador do processo em que o precedente será utilizado?
É inegável que casos semelhantes abarrotam os cartórios espalhados pelo País, porém, há também muitos que, a prima face, desenham-se como idênticos, mas em seu cerne, apresentam peculiaridades. O fato é que a determinação de montantes estanques pode acarretar na estipulação de valores ínfimos que, sob o manto da cautela para evitar o enriquecimento sem causa, sirvam como estímulo para a prática de novos comportamentos ensejadores de danos. A redução dos sofrimentos humanos à homogeneidade é um comportamento absolutamente inviável
Observando casos extremos como aqueles que envolvem o direito supremo à vida é possível verificar que a investigação de condições pontuais deve ser levada em consideração. Questiona-se qual a razão que justifica considerar justa a condenação no montante de 500 salários mínimos, em média, por morte de filho, conforme prática do STJ? Para aquele pai, por exemplo, que não possui qualquer contato com seu filho, ou que apresenta avenças em relação a ele, provavelmente este valor poderia ser considerado ideal, porém, para o outro genitor que vê em seu único filho a fonte de sua subsistência material e emocional – companheiro de todas as horas – certamente este valor é ínfimo para o tamanho da dor sofrida.
Judith Martins-Costa defende uma espécie de tabelamento mais flexível com o “estabelecimento de grupos de casos típicos” conforme o interesse extrapatrimonial concretamente lesado e consoante a identidade ou similitude da ratio decidendi, em torno destes, construindo a jurisprudência certos tópicos ou parâmetros que pudessem atuar, pela pesquisa do precedente, como amarras à excessiva flutuação do entendimento jurisprudencial.”[38]
Neste mesmo sentido, André Gustavo Corrêa de Andrade coloca que qualquer limitação infraconstitucional às indenizações por danos morais seria inconstitucional, uma vez que a consagração do direito a este tipo de indenização é estabelecida na Carta Magna.[39] Defende, entretanto, o referido autor, certos tipos de tabelamento, conforme dispõe:
O estabelecimento de regra que combinasse a previsão de limites indenizatórios suficientemente altos com a fixação de exceções que possibilitassem a flexibilização da regra, admitindo a elevação dos montantes indenizatórios quando demonstrado que o ofensor obteve ganhos financeiros superiores com o ato ilícito ou que os valores preestabelecidos não seriam suficientes, no caso concreto, para exercer as funções de retribuição e dissuasão. Uma norma como essa, se bem elaborada, constituiria, na verdade, um reforço a finalidade dissuasória do instituto, uma vez que a indicação dos valores a que estariam sujeitos os ofensores exerceria considerável força intimidadora em relação a maioria das pessoas, enquanto a cláusula de exceção constituiria um acréscimo de coerção em relação aos demais potenciais ofensores.[40]
Denominando-o de tarifação, Carlos Roberto Gonçalves critica a utilização deste instituto, sustentando que a partir do conhecimento prévio do valor a ser pago os agressores teriam plena condição de analisar o montante indenizatório e compará-lo com as possíveis vantagens decorrentes da prática do ato danoso, concluindo, em alguns casos, que seria mais vantajoso adotar tal comportamento.
E não se invoque casos de condenações absurdamente altas ou em valores irrisórios como suporte para o critério do tabelamento. As decisões dos tribunais têm o caráter de definitividade (em ultima instância) mas, nem por isso assume o status de infalíveis. Ainda que já não caiba mais recurso, tornando-se a regra interpretada concretamente definitiva e de cumprimento obrigatório, não há garantia de que se trate de interpretação correta. Ou seja, se aberrações há no sistema onde prevalece o arbitramento judicial não há garantidas de que o novo sistema essas serão erradicadas.[41]
É evidente que o juiz possui maior capacidade para delinear o valor referente ao dano moral do que o legislador. Por ser uma tarefa que demanda a observação específica do caso prático, ao magistrado incumbe a cautela de ater-se às entranhas do caso concreto para, de lá, retirar o fundamento necessário à estipulação do valor indenizatório. O julgador prolator do caso paradigma não terá como acessar as provas e outras questões subjetivas para conseguir estipular um montante ideal.
O que se espera de um precedente, ou seja, a sua capacidade de estabilizar a compreensão de questão jurídica e de assegurar segurança jurídica, previsibilidade e igualdade, não pode constituir privilégio das soluções definitivas dadas a cada um dos casos. Em princípio, todas as questões, envolvidas e presentes de uma ou outra maneira nos vários processos jurisdicionais, devem contar com os benefícios da teoria dos precedentes.[42]
Sendo assim, acredita-se que esta não seja a melhor maneira para liquidar o dano moral, na medida em que se configura como uma agressão de repercussões íntimas com variações individuais. A análise do montante a ser fixado deve ser arbitrada pelo juiz observando as peculiaridades de cada caso, incluindo-se também a análise do ofensor e do ofendido. A padronização não é adequada para o enfrentamento de questões como esta.
9. CONCLUSÃO.
Conforme observado dos argumentos apresentados, não é possível sustentar a possibilidade do valor arbitrado a título de danos morais servir como caráter vinculativo do precedente para aplicação em outro âmbito. Na decisão que exprime a condenação em danos morais, a linha de vinculação a ser utilizada como precedente encerra-se no reconhecimento da conduta danosa como passível de indenização. Este é o ponto final que imporá ao julgador do caso futuro a observância dos parâmetros adotados pelo prolator do acórdão vinculativo.
No que se refere à indenização, ainda que se utilize de precedente para efetivar uma prestação jurisdicional mais célere e mais justa, o magistrado deverá aglutinar elementos subjetivos e singulares de cada demanda para quantificar o valor devido a título de indenização. Pensar de outra forma seria ofender – neste caso especificamente – a segurança jurídica.
Exemplifica-se a partir da seguinte questão: retornando ao exemplo do precedente do abandono afetivo, naquele caso, o STJ determinou que o sujeito agressor arcasse com uma indenização de R$ 450.000,00 (quatrocentos e cinquenta mil reais). Efetivamente, para se alcançar esse montante, houve análise da capacidade econômica do ofensor, quando foi possível observar que tal montante não causaria inviabilidade da sua vida, mesmo sendo uma quantia considerada como elevada.
Sendo este precedente vinculativo, os juízes de primeiro e segundo grau que se deparassem com causas com o mesmo meritum causae devem reconhecer o dever de indenizar face ao dano moral sofrido. Sem sombra de dúvidas, porém, o julgador não pode considerar o valor como vinculativo, pois, imaginando que no próximo caso o pai abandonador ganhasse cinco salários mínimos por mês, ele não teria qualquer condição de arcar com o valor arbitrado.
Diante disso, sem sombra de dúvidas, a quantificação expressada por um magistrado não pode ser utilizada como parâmetro vinculativo ao outro, essa discricionariedade é inerente à análise específica do magistrado, que deverá abordar a peculiaridade existente entre o ofensor e o ofendido, até mesmo porque se trata de uma demanda que atinge direitos personalíssimos. A indenização deve seguir o ideal de compensação pela extensão do dano e pela capacidade econômica do ofensor, o que, conforme cada caso, variará caso a caso.
É verdade que, o que foi arbitrado pelo magistrado no caso paradigma poderá ser utilizado como mero aspecto inspirador ou mesmo motivador do aumento do valor indenizatório. Na quantificação do dano moral, um dos elementos que resultem no alcance do valor indenizatório está na reiteração da conduta danosa, o que significa dizer que o montante arbitrado inicialmente pode ser considerado pelo julgador do novo caso como insuficiente, pois reiterada a conduta e, por consequência, majorado.
Reitere-se, por fim, que não há possibilidade de haver o caráter vinculativo da quantificação por dano moral no precedente anterior. Esta “fatia” da decisão não compõe a ratio decidendi, razão esta que afasta a possibilidade de sua utilização como modelo de aplicação imediata que cabe apenas à tese jurídica de reconhecimento da conduta como danosa.
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