A eleição direta pelo voto popular de um detentor de mandato é a mais bela expressão do exercício pleno da democracia, não sendo crível que o mandato possa servir para a prática de atos déspotas por parte daquele que foi alçado ao cargo pela vontade do povo.
Os escândalos passaram a estampar as páginas dos jornais diariamente, o que exige certa maturidade da democracia para que as instituições possam funcionar com a independência e harmonia preconizada no texto constitucional.
Em razão dos escândalos de corrupção que envolveram diretamente o Presidente da República, várias denúncias (impeachment) foram protocoladas perante a Secretaria Geral da Mesa da Câmara dos Deputados, cabendo destacar que a denúncia é permitida a qualquer cidadão, naqueles casos em que seja imputada ao Presidente da República a prática de crime de responsabilidade, a teor do que dispõe o art. 218, caput, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.
Ocorre que as denúncias não tiveram o devido encaminhamento pelo Presidente da Câmara dos Deputados, provavelmente por equívoco na interpretação do parágrafo segundo do artigo 218 do Regimento Interno daquela casa, que assim dispõe:
´´(...)
§ 2º Recebida a denúncia pelo Presidente, verificada a existência dos requisitos de que trata o parágrafo anterior, será lida no expediente da sessão seguinte e despachada à Comissão Especial eleita, da qual participem, observada a respectiva proporção, representantes de todos os Partidos.´´(grifou-se).´´
Desse modo, a omissão do Presidente da Câmara dos Deputados em dar andamento às denúncias recebidas naquela casa acaba por violar a essencialidade do Estado Democrático de Direito, haja vista que torna inócua a iniciativa popular quanto à formulação de acusação nos casos de cometimento de crimes de responsabilidade,
Insta salientar que Presidente da Câmara está a interpretar, de forma equivocada, o regimento interno daquela casa, haja vista que o referido regimento deve ser interpretado em cotejo com a Constituição Federal, que delimita, em seu Art. 51 e 52, as atribuições de cada casa do Congresso Nacional em relação ao processo de impedimento.
Importante salientar que o processo de impeachment definido pela Constituição Federal estabelece, de forma cristalina, o sistema bifásico, o qual é composto por uma fase preambular, denominada de juízo de admissibilidade do processo, que é realizado pela Câmara dos Deputados, e por uma fase final, em que ocorre o processamento e julgamento, este realizado pelo Senado Federal.
Dessa feita, a Constituição Federal, em seu art. 51, I, reserva à Câmara dos Deputados, a competência privativa para autorizar a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado.
Já o art. 52, I, da CF, é expresso em atribuir ao Senado Federal a competência privativa para processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, competindo ao Senado Federal a instauração do processo de impedimento e o RECEBIMENTO da denúncia no processo de impeachment.
Portanto, não obstante competir ao Senado Federal o RECEBIMENTO da denúncia, o Presidente da Câmara dos Deputados se valeu de interpretação extensiva para fins de sub-rogar nos poderes conferidos ao Senado Federal (recebimento da denúncia) para fins de se omitir na prática do ato referente à leitura da denúncia no expediente da Câmara dos Deputados ou, se for o caso, no indeferimento das denúncias protocoladas naquela casa.
Cabe destacar que o termo ´´recebida a denúncia´´, positivado no art. 218 do RICD, e que é mera reprodução da literalidade do art. 19 da Lei nº 1.079/50, deve ser interpretado com restrição e de acordo com o texto constitucional, haja vista que a própria Constituição Federal atribuiu ao Senado Federal a competência para PROCESSAR e JULGAR o Presidente da República nos crimes de responsabilidade, sendo que o recebimento da denúncia é apenas um dos atos praticados exclusivamente pelo Senado Federal e após a instauração do processo de impedimento no caso de crimes de responsabilidade.
O art. 19 da Lei nº 1.079/50 foi redigido ainda sob a égide da constituição de 1946, que atribuiu à Câmara dos Deputados a competência para a instauração e PROCESSAMENTO do processo de impedimento do Presidente da República. Em razão disso, estabeleciam-se duas deliberações pelo Plenário da Câmara: a primeira quanto à admissibilidade da denúncia e a segunda quanto à sua procedência ou não.
Com a nova sistemática adotada pela Constituição Federal de 1988, a competência da Câmara dos Deputados restou delimitada em apenas autorizar ou não a instauração do processo (condição de procedibilidade).
Portanto, o Presidente da Câmara dos Deputados não tem o superpoder de receber a denúncia em seu sentido técnico, haja vista que nem mesmo à Câmara dos Deputados a Constituição Federal conferiu a competência para a prática desse ato, cuja competência, conforme já ressaltado, é do Senado Federal.
Conforme já salientado, a Câmara dos Deputados tem sua atuação restrita ao âmbito pré-processual, como condição de procedibilidade da acusação.
Ao se admitir que o Presidente da Câmara dos Deputados possa praticar ato consubstanciado no recebimento da denúncia em seu termo técnico, haverá o necessário, e lógico, esvaziamento das competências atribuídas ao Senado Federal (crimes de responsabilidade) e ao Supremo Tribunal Federal (crimes comuns), no que concerne ao recebimento da denúncia, o que é um absurdo!
Ora, se à Câmara dos Deputados a Constituição Federal delimita sua competência à autorização para a instauração do processo de impedimento, se mostra destemperada a interpretação que queira atribuir ao Presidente da Câmara dos Deputados a competência para o RECEBIMENTO DA DENÚNCIA em seu termo técnico, haja vista que isso significaria uma total violação das balizas procedimentais que se abstrai da interpretação sistemática da Constituição Federal em cotejo com a Lei nº 1.079/50 e, ainda, com o Regimento Interno da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Portanto, necessário concluir que no processo de impeachment traçado pela Constituição Federal, e demais normas aplicáveis ao caso, não há espaço para a prática de dois atos de RECEBIMENTO DA DENÚNCIA, razão pela qual o termo ´´recebida a denúncia´´, previsto na parte inicial do parágrafo segundo do artigo 218 do RICD deve ser interpretado como simples ato de fazer chegar às mãos do Presidente da Câmara – Autoridade Coatora – a denúncia protocolada perante a Secretaria Geral da Mesa da Câmara dos Deputados.
Conforme dito alhures, o processamento e julgamento do Presidente da República nos crimes de responsabilidade compete ao Senado Federal, sendo que o RECEBIMENTO DA DENÚNCIA é um dos atos praticados pelo Senado Federal dentro do rito procedimental inerente ao PROCESSAMENTO da denúncia em face do Presidente da República, o que concretiza, assim, a instauração do processo de impedimento por esta casa (art. 86, §1º, II, CF/88).
Portanto, o que se abstrai do art. 19 da Lei nº 1.079/50 c/c art. 218 do RICD, é a imposição para que o Presidente da Câmara dos Deputados proceda com a leitura da denúncia no expediente da sessão seguinte após receber em suas mãos a denúncia ou indefira a denúncia, mas dentro do prazo de uma sessão, sob pena de que sua omissão seja atentatória ao princípios que norteiam o Estado Democrático de Direito.