Capa da publicação Incorporação imobiliária e a diferença de metragem com o anúncio e o memorial descritivo
Artigo Destaque dos editores

A incorporação imobiliária à luz do Código de Defesa do Consumidor.

A vinculação da oferta quanto à diferença de metragem entregue em relação ao previsto no memorial descritivo e no material publicitário

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23/11/2017 às 15:20
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2.PROLEGÔMENOS ACERCA DA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA

A expansão nos centros urbanos trouxe às grandes metrópoles a necessidade das edificações em condomínios como solução dos problemas da habitação e de concentração comercial, ensejando, de acordo com o entendimento de Orlando Gomes, “o exercício de uma atividade profissional através de relações contratuais tão freqüentes e importantes que determinaram a tipificação do negócio jurídico denominado, na lei, contrato de incorporação imobiliária”.[54]

Por intermédio deste contrato, obriga-se alguém a promover a construção de edifício dividido em unidades autônomas para distintos adquirentes da respectiva fração ideal do terreno, sob o regime de condomínio especial.

Ainda conforme lição do supramencionado Orlando Gomes, conceitualmente, dispõe que “o contrato de incorporação tem como objeto a operação jurídica de venda de uma unidade autônoma de edifício construído, em regime de condomínio especial, por pessoa habilitada”.[55]

Os principais aspectos jurídicos sobre a incorporação imobiliária encontram-se disciplinados na Lei nº 4.591/64 regulamentada pelo Decreto 55.815/65 e modificada pela Lei nº 4.864/65.

 O espírito da criação da Lei supramencionada era coibir abusos praticados pelos empreiteiros, denominação utilizada antes da existência jurídica do instituto da incorporação imobiliária, que por diversas vezes promoviam o lançamento de projetos de edificação sem quaisquer condições de levá-lo adiante e, consequentemente, prejudicavam consideravelmente os candidatos à aquisição das unidades residenciais.[56]

De acordo com o entendimento de Rodrigo Azevedo Toscano de Brito:

a Lei de condomínios e incorporações tem um caráter cogente e atua dirigindo a atividade do incorporador e os contratos por ele levados a cabo, inclusive com escopo de equilibrar a relação contratual, tendo em vista a hipossuficiência econômica e técnica, na maioria das vezes, do adquirente em relação ao incorporador.[57]

O Código Civil Brasileiro de 2002 disciplina em seu texto legal o instituto do condomínio edilício nos artigos 1.331 a 1.358, sem comprometer em nada a vigência da Lei de Condomínios e Incorporações nº 4.591/64 em relação ao regramento das incorporações. Isto, porquanto, o advento do Código Civil não revogou a parte concernente às incorporações imobiliárias.

Entende-se por incorporação imobiliária, de acordo com o artigo 28 da Lei nº 4.591/64[58], o negócio jurídico celebrado, de um lado, pelo incorporador que se obriga a realizar, por si ou por terceiros, a construção de determinadas unidades imobiliárias em edificação coletiva bem como proceder a transmissão da propriedade e da posse dessas unidades aos respectivos adquirentes, e de outro lado, em contrapartida, os adquirentes que possuem o dever jurídico de pagar o preço referente às unidades se comprometeram a adquiri-la.

Economicamente, a incorporação é um empreendimento que visa obter, pela venda antecipada dos apartamentos, o capital necessário para a construção do prédio/ condomínio horizontal.

Nesta toada, o contrato de incorporação pretende a promoção e a construção de condomínios horizontais, compostos de unidades autônomas destinadas à alienação em momento anterior ao término da obra, tratando-se primordialmente da compra de uma promessa de coisa certa e futura.

Condomínio é o instituto jurídico que ocorre quando existe um domínio de mais de uma pessoa simultaneamente sobre o mesmo bem, ou parte do mesmo bem.

A formalização desse negócio jurídico se dá mediante celebração de diferentes contratos, como por exemplo, o compromisso de compra e venda e o contrato de construção, os quais, embora tenham autonomia funcional, guardam estreita correlação, na medida em que exercem suas funções de maneira articulada para consecução da finalidade última da incorporação.[59]

Nos dizeres de Melhim Namem Chalhub

O negócio jurídico da incorporação tem como causa a produção de um bem imóvel e a constituição de um direito de propriedade, promovendo a mutação do direito de propriedade incidente sobre o terreno num outro direito de propriedade, que terá como objeto unidades autônomas assentadas em planos horizontais sobre esse terreno, fragmentando a propriedade do terreno em frações ideais, que passarão a incidir também sobre as partes da edificação que têm vocação para a propriedade em comum. Essa é a causa do negócio jurídico da incorporação: a constituição de direito de propriedade sobre a edificação, em frações ideais, e sobre as unidades imobiliárias integrantes dessa edificação, atribuindo o direito sobre essas unidades àqueles que, nos termos dos respectivos títulos, vierem a se tornar titulares de direito de propriedade sobre elas.[60]

O objetivo principal desta figura jurídica é, sobretudo, a conclusão do edifício e a transferência definitiva da titularidade das unidades autônomas aos respectivos adquirentes das frações ideais e, por conseguinte, a constituição do condomínio sobre as áreas de utilização comum com a consequente averbação da construção no Registro de Imóveis.

Para que a incorporação imobiliária se aperfeiçoe de acordo com as nuances legais, há a expressa exigência do registro do memorial de incorporação, sendo que, após tal providência, fica estabelecido ius in re oponível erga omnes, delineando as obrigações das partes contratantes que devem atender as peculiaridades do negócio jurídico consistente na entrega de coisa futura da forma como consta no memorial descritivo levado a registro.

Cabe ressaltar que o memorial descritivo, assim como o projeto, é parte integrante e indispensável do compromisso de compra e venda de unidade autônoma e, como consequência de tamanha importância, pontua Alexandre Guerra que, ao lado do construtor, o incorporador é também responsável pela fiel execução do projeto e do constante no memorial de incorporação com todas as suas especificações.[61]

Conforme elucida o artigo 31 da Lei de Condomínios e incorporações[62], nenhuma incorporação poderá ser posposta à venda sem a indicação expressa do incorporador. Diante disto, deve a identificação do incorporador permanecer indicada ostensivamente no local da construção e, independente da forma por que seja constituída, toda incorporação terá um ou mais incorporadores solidariamente responsáveis.

Alexandre Guerra verbera que o incorporador tem a faculdade de optar pela fixação de um prazo de carência. Neste sentido, caso utilize desta faculdade, poderá desde que dentro deste prazo desistir do empreendimento, apenas havendo que restituir as prestações eventualmente pagas pelos adquirentes, devidamente corrigidas. Entretanto, não optando por essa permissiva legal ou desistindo do empreendimento fora do referido prazo, o incorporador terá que restituir não apenas as quantias pagas, mas, igualmente deverá indenizar os pretensos adquirentes das unidades autônomas.

A intenção de desistência deverá ser comunicada por escrito a todos os adquirentes devendo também ser averbada no Cartório de Registro de Imóveis no qual a incorporação foi previamente registrada.[63]

Tal autorização legal justificável, conforme entendimento de Hamid Charaf Bdine Junior afasta a incidência do artigo 51, IX do Código de Defesa do Consumidor que veda ao fornecedor a possibilidade de reservar-se o direito de não concluir o contrato, sem que direito igualitário seja conferido ao consumidor adquirente, ainda que o CDC tenha plena aplicação às incorporações imobiliárias.[64]

Adiante, Hamid Charaf Bdine Junior elucida que

A desistência, nesses casos, tem o condão de afastar o perigo de o adquirente ver-se vinculado a um contrato de êxito duvidoso. Mesmo que o risco ficasse a cargo do incorporador, que seria obrigado a ressarcir os consumidores se o avaliou mal, não se pode desconsiderar a afirmação de que ao adquirente não convém o contrato que o empreendedor considera de baixo índice de viabilidade. Vale dizer, a regra do art. 34 permite ao incorporador evitar riscos para ele, mas também para o consumidor, o que efetivamente se deseja.[65]

Nesse cenário, a incorporação imobiliária se extingue como bem salientado por Alexandre Guerra, pela conclusão da obra, pelo adimplemento das obrigações, por acordo das partes ou pelo inadimplemento por qualquer dos contratantes, podendo ser desde o atraso de pagamentos das prestações ajustadas contratualmente, até a não execução ou entrega da obra.[66]

Orlando Gomes leciona que o contrato de incorporação imobiliária resolve-se, como todo contrato sinalagmático, por inexecução oriunda do inadimplemento de obrigação essencial por uma das partes. Nessa perspectiva, aponta como mais frequente a resolução por atraso no pagamento das prestações, que segundo o indigitado autor, tem como consequência

[...] a dificuldades na condução do empreendimento, atingindo seu interesse legítimo e justificado de receber “opportuno tempore”, de todos, tais prestações. Eis porque, constituindo-se, pode o incorporador intentar a ação resolutória na qual se restituem as partes ao “status quo ante”. Assim sendo, desconstitui-se, com a resolução, a aquisição da fração ideal do terreno, se operada com pagamento total do preço, resolvendo-se, pela mesma razão, a relação jurídica de construção, se o atraso se der em relação às prestações do preço da mesma fração. O contrato é único, não se admitindo propriedade de unidade autônoma sem propriedade do terreno, e vice-versa. Aplica-se, em resumo, a regra “resoluto jure dantis resolvitur jus accipientis”. Se a resolução houver sido causada, no caso de atraso no pagamento da fração ideal do terreno, pelo adquirente ou promissário comprador, perderá quanto empregou na aquisição da unidade autônoma, no caso contrário, terá direito a exigir, do incorporador alienante, o reembolso do que pagou.[67]

Quanto à extinção pela conclusão da obra, o que definirá a conclusão será a expedição do habite-se, que consiste em um ato administrativo emanado de autoridade competente que autoriza o início da utilização efetiva de construções ou edificações destinadas à habitação. Alexandre Guerra pontua sobre este tema que

ainda que o prédio se encontre fisicamente terminado, a obrigação legal imposta ao incorporador não se encerrará até que obtenha, assim cumprindo mais uma prestação contratual que lhe é imposta. Ainda, convém salientar que após a obtenção do Habite-se, o incorporador tem, ainda, a obrigação de requerer a averbação da construção do prédio perante o Registro de Imóveis, objetivando a individualização e discriminação das unidades.[68] 

Embora apenas o habite-se encerre a incorporação, a atividade do incorporador se encerra com o término da obra e a entrega das chaves aos adquirentes das unidades autônomas da edificação, a fim de que estes sejam investidos na posse e na propriedade do bem, efetivando as promessas dos que tenham liquidado seus preços por meio das escrituras de compra e venda.

Conforme assevera Alexandre Guerra, deve-se convocar os adquirentes a procederem à vistoria nas unidades com o recebimento das chaves:

Nota-se que as chaves poderão ser recebidas ainda que verificadas irregularidades nesta vistoria, desde que o faça com ressalvas, podendo os adquirentes das unidades, se assim desejarem, adiar o recebimento até o cumprimento das obrigações e irregularidades apontadas. Impende consignar que a vistoria e o recebimento das chaves não significam, necessariamente, a quitação prestada em favor do construtor. Logo, não desonerará, por si só, o incorporador/construtor de responsabilidades decorrentes de vícios ocultos.[69]

Por fim, antes de adentrar ao próximo item deste estudo, necessário trazer à baila a Lei nº 10.931/04 que, objetivando afastar dos adquirentes de unidades os riscos intrínsecos a incorporação imobiliária, instituiu um regime jurídico com o intuito maior de proteger o acervo patrimonial correspondente às incorporações imobiliárias, atribuindo aos adquirentes meios efetivos de solução de problemas decorrentes de falência ou recuperação judicial da empresa incorporadora, de modo que todo o conjunto de direitos e obrigações do empreendimento fica efetivamente vinculado à consecução do negócio.

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O regime da afetação patrimonial na incorporação imobiliária foi introduzido no direito positivo brasileiro através da Medida Provisória 2.221, de 04.09.2001, com o objetivo maior de resgatar a confiança dos consumidores no mercado imobiliário, abalado por grave crise de credibilidade desencadeada pela decretação da falência da Encol S.A. Engenharia, Indústria e Comércio, visando, sobretudo, assegurar direitos aos adquirentes de unidades autônomas de edifício em construção no caso de falência ou insolvência civil do incorporador.[70]

Segundo Alexandre Guerra, conceitualmente.

patrimônio de afetação é a segregação patrimonial de bens do incorporador para uma atividade específica. Visa assegurar a continuidade e a entrega das unidades em construção aos adquirentes futuros, mesmo caso ocorra a falência ou insolvência do incorporador. Constitui-se mediante registro de um termo no memorial de incorporação [...] A doutrina diz que a natureza jurídica de garantia real instituída fica limitada ao comprometimento exclusivo da operação de crédito, cujo produto será integralmente destinado à consecução da edificação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes, como informa o parágrafo 3º do artigo 31-A da Lei nº 4.591/64.[71]

De acordo com os ensinamentos de Mauro Antônio Rocha, no regime da afetação, o incorporador constitui patrimônio de afetação, pelo qual o terreno, as acessões e os demais bens e direitos vinculados à incorporação são apartados no seu patrimônio geral e destinados exclusivamente à construção do empreendimento. Deste modo, os bens e direitos afetados respondem apenas pelas dívidas e obrigações da incorporação, e não se comunicam com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio do incorporador.[72]

Portanto, os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem o patrimônio de afetação constituído na incorporação imobiliária.

Conclusivamente, a afetação torna indisponíveis os bens e direitos segregados do patrimônio, que somente poderão ser objeto de garantia real em operações de crédito para captação de recursos integralmente destinados à consecução do empreendimento.[73]

2.1.O contrato de compromisso de compra e venda de unidade futura

O compromisso de compra e venda é uma das modalidades contratuais mais amplamente utilizadas nas incorporações imobiliárias, sua tipificação em nosso ordenamento jurídico pátrio se deu, sobretudo, com o advento do Decreto-Lei 58/37.

Acerca do contexto histórico legislativo, pontua Eduardo Tristão que

[...]o compromisso de compra e venda surgiu no ordenamento jurídico brasileiro inserido num contexto de crescente desenvolvimento urbano. Dentro de tal conjuntura, a alta demanda por imóveis para moradia atraiu o interesse da iniciativa privada em parcelar o solo urbano em lotes, oferecendo-os ao público, para aquisição. Até a promulgação do citado Decreto-lei, os lotes eram ordinariamente alienados por intermédio da chamada promessa de venda, negócio jurídico desenvolvido a partir de figura análoga do direito uruguaio, cujas flagrantes imperfeições frequentemente expunham os promitentes compradores ao mais completo desamparo.[74]

Seja na compra e venda, seja no compromisso sempre que se falar em coisa futura, há que se distinguir a emptio spei (compra de uma esperança) da emptio rei speratae (compra de uma coisa esperada).

Na emptio spei, a coisa futura, objeto do negócio, pode não vir a existir; o objeto é a esperança; mesmo assim, o contrato não é viciado, aperfeiçoando-se de imediato, se revestindo de natureza aleatória, ou seja, quando a prestação pode deixar de existir em virtude de um acontecimento incerto e futuro, que de acordo com a explicação de Fran Martins, a contraprestação somente será devida se ocorrer este evento futuro, contrato comumente celebrado nas relações securitárias.[75]

Nesta outra, emptio rei speratae, a coisa futura deve vir a existir, sob pena de desfazimento do contrato com as consequentes reparações civis. 

No tema vertente, é fora de dúvida que a coisa futura é da espécie emptio rei speratae, ou seja, compra de uma coisa esperada.

Até a edição do supramencionado Decreto-Lei que introduziu a figura do compromisso de compra e venda no universo jurídico, aos adquirentes somente se atribuía direitos obrigacionais decorrentes da celebração de um contrato com o incorporador imobiliário.

Orlando Gomes justifica maior regulamentação pela necessidade de proteção daqueles que adquiriam terrenos loteados em prestações, uma vez que, anteriormente, caso o compromissário comprador deixasse de efetuar o pagamento de uma parcela pactuada, perdia de imediato o direito a todas as parcelas já adimplidas, além de que não haveria nenhuma medida capaz de forçar o adimplemento do compromitente-vendedor para a celebração do contrato definitivo, de modo que a relação se encerrava apenas com o direito a indenização por perdas e danos.[76]

A Lei 649/49 estendeu o regime geral das promessas de compra e venda aos imóveis não loteados, desde que não se pactuasse arrependimento e estivesse devidamente registrado o compromisso no cartório de registro de imóveis.

Com o advento da Lei do parcelamento do solo, nº 6.766/79, o artigo 25 previu que os compromissos de compra e venda que atribuam direito à adjudicação compulsória são irretratáveis, gerando direitos reais oponíveis contra terceiros, se devidamente registrados, celebrados tanto por escritura pública quanto por instrumento particular. 

Conforme esposa Paulo Dias de Moura Ribeiro, promessas de compra e venda sem a previsão de cláusula de arrependimento, desde que levadas a registro no Cartório de Registro de Imóveis competente, dão ao promissário comprador direito real à aquisição do imóvel, o que não está apenas previsto no artigo 1.417 do CC/02, como também está lançado no rol taxativo do artigo 1.225 do mesmo diploma legal. Na visão do indigitado autor:

Segue da leitura das regras apontadas que tais promessas devem sempre ser irretratáveis para que possam ser qualificadas como um direito real, que assegure àquele que se compromete a adquirir uma titularidade sobre um determinado bem imóvel. [77]

Maria Helena Diniz, ao entender que o compromisso de compra e venda aproxima-se de uma espécie de contrato preliminar, conceitua o compromisso de compra e venda como sendo:

[...] o contrato pelo qual o compromitente-vendedor obriga-se a vender ao compromissário-comprador determinado imóvel, pelo preço, condições e modos avençados, outorgando-lhe a escritura definitiva assim que ocorrer o adimplemento das obrigações; por outro lado, o compromissário-comprador, por sua vez, ao pagar o preço e satisfazer todas as condições estipuladas no contrato, tem direito real sobre o imóvel, podendo reclamar a outorga da escritura definitiva, ou sua adjudicação compulsória, havendo recusa por parte do compromitente-vendedor ou a terceiro, a quem direito deste foram cedidos. Do que se infere esse novo contrato aproxima-se do pré-contrato ou contrato preliminar de venda, por que seu resultado prático é adiar a transferência do domínio do bem compromissado, até que preço seja totalmente pago.[78]

Com tal posicionamento concorda Paulo Dias de Moura Ribeiro ao elucidar que “nem poderia ser de outra forma, porque a promessa de compra e venda de imóvel sem cláusula de arrependimento é um contrato preliminar pelo qual os contratantes assumem a obrigação de celebrar um contrato definitivo de compra e venda”.[79]

Embora detenha alguns aspectos similares à modalidade de pré-contrato, não se pode atribuir essa nomenclatura ao compromisso de compra e venda. Isto, porquanto, o contrato preliminar gera tão somente obrigações em âmbito obrigacional, gerando uma obrigação de fazer consistente na celebração de um contrato definitivo, daí ser o compromisso uma modalidade diversa de contrato, por estar arrolada taxativamente com um direito real oponível erga omnes.

Neste sentido, Eduardo Tristão aduz:

A tendência atual é a de conferir ao direito real do compromissário comprador tratamento cada vez mais próximo ao do titular do direito de propriedade. Na realidade, deve-se frisar que a posição contratual do compromissário comprador com contrato registrado é mais forte mesmo do que a do mero comprador, sem contrato registrado.[80]

Conforme se pode notar, o compromisso de compra e venda contém os elementos caracterizadores do contrato de compra e venda, entretanto, as partes contratantes por conveniência e oportunidade não efetuam de imediato o contrato definitivo, como é o caso da venda de coisa futura consistente na construção de unidades de apartamento, onde o bem em si ainda não existe no mundo fático.

A aquisição da fração ideal do terreno, ou a constituição, nessa cota-parte, de direito real de promitente comprador, é conditio juris para a aquisição da unidade autônoma como propriedade isolada. Constitui obrigação indeclinável do incorporador, a ser incluída no contrato de incorporação, a de transmitir ao adquirente a propriedade dessa fração ideal.

Vale ressaltar que, nulo é o contrato de incorporação imobiliária no qual não se constitua direito real, não valendo, por conseguinte, quando a promessa de venda contenha cláusula de arrependimento. Somente a promessa irretratável, averbado à margem do registro da incorporação confere incontestável e plena eficácia ao contrato de incorporação imobiliária. Embora a venda ou a promessa irrevogável de venda da fração ideal do terreno não sejam contratos autônomos em relação ao de incorporação imobiliária, mas simples elementos do conteúdo da relação jurídica a que dá vida, aplicam-se as regras desses dois contratos que não se choquem com as que regem prestações típicas de outros contratos presentes também no seu contexto.[81]

É mister se destacar que o compromisso de compra e venda que contenha cláusula de arrependimento não constituirá direito real, de modo que poderá o compromitente-vendedor voltar atrás e desfazer o negocio jurídico, desde que pague a indenização de perdas e danos sofridas pelo compromissário-comprador.

 Nos dizeres de Maria Helena Diniz

[...] todavia, pela súmula 412 do STF, no compromisso de compra e venda com cláusula de arrependimento, a devolução do sinal, por quem o deu, ou a sua restituição em dobro, por quem recebeu, exclui indenização maior, a título de perdas e danos, salvo juros moratórios e encargos do processo. Se não constar no compromisso essa cláusula, ou se pactuada a cláusula de irrevogabilidade e assentado o compromisso no registro imobiliário, o vendedor não poderá arrepender-se, tendo o comprador direito de proceder judicialmente para obter a adjudicação compulsória do imóvel compromissado, havendo recusa da outorga da escritura definitiva. [82]

Os efeitos jurídicos que um compromisso de compra e venda, sem que seja pactuada cláusula de arrependimento, são, de forma sintetizada, os mesmos efeitos dos direitos reais, ou seja, oponibilidade erga omnes, pois todo direito real é oponível contra terceiros; transmissibilidade aos herdeiros; direito de sequela, pois uma vez vinculado ao imóvel, o compromissário tem poder de buscar o bem das mãos de quem quer que injustamente o detenha; e a imissão na posse e adjudicação compulsória.

Nesta toada, Maria Helena Diniz bem preceitua que o compromisso de compra e venda se cumpre

Pela escritura definitiva, que não é instrumento de outro negócio, mas a forma de um ato devido que expressa o cumprimento da obrigação oriunda de contrato no qual o intento negocial das partes foi definido e a atribuição patrimonial, determinada.[83]

Pela complexidade da incorporação imobiliária, além do contrato de incorporação propriamente dito, diversos outros contratos podem ser celebrados, como por exemplo, o contrato de permuta ou promessa de permuta de terreno e unidades autônomas do empreendimento imobiliário, ou o contrato de financiamento, tanto pelo próprio incorporador para realização da obra do empreendimento, quanto pelos adquirentes para obtenção de crédito e, consequentemente, adquirir a unidade pactuada, dentre outros, não se limitando apenas ao compromisso de compra e venda, ainda que este seja um instrumento fundamental para que a relação se aperfeiçoe. 

Conforme os ensinamentos de Eduardo Tristão, para a transferência do direito real de domínio do bem imóvel avençado mediante compromisso de compra e venda basta o pagamento integral das parcelas do preço, tal qual ocorre com os bens móveis submetidos ao regime da compra e venda com reserva de domínio. A averbação do instrumento de quitação serve justamente para consolidar no patrimônio do compromissário comprador um direito que economicamente já lhe era próprio, independentemente da celebração ulterior de qualquer avença contratual.[84]

Em outras palavras, reconhece-se que o compromisso de compra e venda não tem por objeto a celebração futura de um contrato definitivo de compra e venda, de modo que as declarações negociais nele inseridas destinam-se imediatamente à alienação de bem imóvel, uma vez quitado o preço de aquisição, e, trazendo ao tema específico deste estudo, uma vez também concluída a obra pelo incorporador imobiliário.

2.2.O registro imobiliário da incorporação e o memorial descritivo

O registro imobiliário brasileiro é regulamentado pela Lei nº 6.015/73, denominada Lei de Registros Públicos, republicada com as alterações trazidas com advento da Lei nº 6.140/74 e Lei nº 6.216/75. A atividade registrária, atribuída aos Ofícios de Registro de Imóveis, está subordinada às normas de serviços extrajudiciais editadas pela Corregedoria Geral de Justiça. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do poder público e detém fé pública.

A Lei nº 6.015/73 tem por finalidade determinar a forma de escrituração dos atos translativos ou declaratórios de propriedade imóvel e demais atos constitutivos de diretos reais, desta forma, o objetivo maior que se busca com registro imobiliário é a segurança jurídica, trazendo autenticidade para a produção de efeitos dos atos jurídicos que se desenvolverão em torno do imóvel a ser incorporado, gerando no ordenamento jurídico uma presunção relativa de veracidade quanto ao teor do declarado e transcrito.

O Registro de Imóveis, partindo desta contextualização, opera como um sistema que visa garantir a segurança das operações imobiliárias. No caso das incorporações cumpre funções de extrema importância, haja vista que as incorporações encerram grande densidade social e têm como traço marcante a oferta pública de imóveis.

Por este motivo, conforme o entendimento de Melhim Namem Chalhub, o legislador constituiu proteções peculiares a esta espécie de negociação jurídica, ajustadas à especificidade dessas situações, atento, sobretudo, aos riscos a que possam sujeitar-se os adquirentes:

A incorporação imobiliária está vinculada a esse sistema, pois, tendo como causa a constituição de direito de propriedade sobre determinada edificação e suas unidades imobiliárias, resulta claro que é para o Registro de Imóveis que haverão de convergir todos os contratos e demais atos relativos à incorporação que digam respeito à especialização do imóvel, com a constituição da nova modalidade de propriedade gerada pela incorporação, bem como os atos que digam respeito à atribuição dessa propriedade ao adquirente da unidade imobiliária assim gerada.[85]

Ainda, neste mesmo sentido:

Com efeito, todos os atos relativos a direitos reais imobiliários, decorrentes da incorporação, têm que ser registrados ou averbados no Registro de Imóveis, a saber: averba-se a demolição do imóvel que eventualmente estiver construído no terreno sobre o qual será erigido o edifício; registra-se o memorial de incorporação; averba-se o instrumento particular de ajuste firmado pelo incorporador e pelo pretendente à aquisição; registra-se a hipoteca ou a propriedade fiduciária constituída para garantia de eventual financiamento da construção; registram-se as promessas de compra e venda de unidades; averba-se a construção da nova edificação; registram-se a individualização e discriminação das unidades, inclusive a instituição do condomínio especial e, enfim, assentam-se todos os demais atos que digam respeito à constituição desses direitos reais relativos à edificação e às suas unidades, bem como as mutações que sofrerem esses direitos.[86]

Antes de ser efetuado o registro no Cartório, é imprescindível que o projeto da construção tenha sido definitivamente aprovado pela prefeitura local e expedido o alvará de construção, sendo certo que este não supre de forma alguma o registro no ofício de imóveis e sua não efetivação constitui contravenção penal punível na forma da Lei.

A Lei assegura a todos o acesso ao Registro de Imóveis independentemente de qualquer formalidade, com o propósito de examinar os atos constantes de qualquer matrícula constante em seus registros, conferindo, portanto, plena visibilidade e publicidade a todos os direitos reais incidentes sobre os imóveis.

Ressalta-se que a Lei dispensa aos adquirentes o regime protetivo do Código de Defesa do Consumidor, como se verá. O incorporador somente está autorizado a proceder a comercialização das unidades autônomas após levar o memorial descritivo ao arquivamento no Registro de Imóveis, conforme preceitua o artigo 32 da Lei de Condomínios e Incorporações, não sendo possível cogitar a possibilidade de cláusula contratual que preveja a dispensa de tal exigência por parte do incorporador. [87]

Nesta perspectiva, para proteção do adquirente é essencial que sejam examinadas as peças do Memorial de Incorporação, para que se certifique da regularidade da titulação relativa ao imóvel, entre outros aspectos de natureza jurídica, técnica e econômica.

Conforme pontuam Daniel Orfale Giancomini e Flavia Orsi Leme Borges, o incorporador não pode se furtar ao registro da incorporação imobiliária, diante da necessidade de observância dos princípios da dignidade, segurança, proteção dos interesses econômicos do consumidor e transparência das relações de consumo. O registro demonstra a regularidade e a boa-fé do negócio jurídico. Além disto, certo é na legislação vigente (artigo 32 da Lei de Condomínios e Incorporações) que o incorporador apenas poderá negociar as unidades após o devido registro.[88]

Ainda, os autores supra elucidam sobre o artigo 66 da Lei de Incorporações Imobiliárias que a ausência de registro:

[...] é contravenção relativa a economia popular, punível na forma do art. 10 da Lei n. 1521/51, o incorporador ao negociar frações ideais de terreno, sem previamente satisfazer as exigências constantes da Lei 4591/64. Como se trata de contravenção penal relativa à economia popular, o interesse envolvido é difuso, conforme determina o art. 81, parágrafo único, I, do CDC, de forma que qualquer pessoa elencada no art. 82 do mesmo diploma legal pode defender os interesses dos consumidores que, potencialmente, estão sujeitos a aderir à incorporação imobiliária que não está respeitando as normas específicas, cabendo ainda salientar a importância da participação do ministério público. [89]  

Sobre a necessidade de registro imobiliário, necessário ressaltar que a aquisição do direito de propriedade imobiliária no direito brasileiro não se aperfeiçoa com o simples acordo de vontade manifesto contratualmente, posto que os direitos pessoais apenas geram direitos inter partes, entretanto, não gera direito de domínio. Desta forma, para que se constitua um direito real e oponível erga omnes, ou seja, contra todos, é indispensável no nosso ordenamento jurídico que se efetive o registro imobiliário perante cartório competente.

Sobre o tema, pontua Marcelo Terra: “O direito real nasce com o registro do contrato na Serventia Imobiliária, razão por que se admite, em lei, o registro do contrato, objetivando imóvel ainda não existente fisicamente, mas já reconhecido e especializado no âmbito jurídico”.[90]

Melhim Namem Chalhub entende que na apreciação do sistema de proteção ao adquirente de imóvel em incorporações imobiliárias:

[...] não se pode desprezar o Registro de Imóveis. É verdade que o sistema do Registro não opera no âmbito das relações obrigacionais, mas é o Registro de Imóveis que encerra os mecanismos relativos à validade e eficácia dos atos constitutivos e translativos de direitos reais sobre imóveis, em geral. Portanto, a proteção do adquirente, no que tange a esses aspectos, está também ligada às funções do Registro de Imóveis.[91]

Quanto ao memorial descritivo da incorporação, este detalha todas as características técnicas do imóvel, bem como material a ser utilizado, modelos e marcas devendo ser registrado junto com o incluso projeto no cartório competente antes da negociação das unidades autônomas com terceiros. Com essa precaução todo aquele que estiver interessado no imóvel poderá verificar o constante no memorial antes de efetivar o negócio sobre o bem que porventura venha a ser adquirido, tornando-se, pois, ciente da existência ou não de máculas na execução do imóvel avençado.

No entendimento de Alexandre Guerra, os principais efeitos do registro do memorial de incorporação, de responsabilidade do incorporador são:

(i) servir como proposta irrevogável de contrato, detalhando os compromissos e obrigações do incorporador perante os adquirentes das unidades; (ii) atender ao requisito da publicidade da incorporação imobiliária, passando a valer erga omnes caso não haja o exercício de desistência do empreendimento e (iii) tornar-se documento público, de modo a ser possível a qualquer interessado a obtenção de cópias e verificação do cumprimento das obrigações legais e contratuais assumidas pelo incorporador.[92]

Sobre a necessidade de registro do memorial de incorporação, Melhim Namem Chalhub elucida que:

Ao arquivar o memorial de incorporação no Registro de Imóveis, o incorporador estabelece os referenciais que nortearão a criação de novas unidades imobiliárias, sendo certo que, ressalvada a hipótese de denúncia prevista no art. 34 da Lei 4.591/1964, a manifestação de vontade do incorporador estabelecerá, definitivamente, uma vinculação entre o terreno para o qual está projetado o edifício e as futuras unidades imobiliárias que nele serão erigidas.[93]

No memorial descritivo será enunciada a identificação do objeto de cada compromisso de compra e venda, ou seja, conterá a fração ideal do terreno e a descrição de cada unidade autônoma que a ela se vincular, bem como indicar as obrigações essenciais do incorporador nesse contrato, notadamente o projeto, parte integrante do memorial deverá ser executado, a especificação dos materiais que deverão ser aplicados na obra e o valor da obra expresso em orçamento também não poderão ser omitidos.

Por este ângulo, a publicidade é complemento indispensável do contrato e do memorial descritivo, é requisito que se cumpre mediante o assentamento no Registro de Imóveis da situação do imóvel.

Por outro lado, não é apenas o memorial de incorporação ou o contrato que devem ser levados ao assentamento do cartório de registro de imóveis, mas também a construção é outro importante aspecto formal que deve ser registrado ma mátricula do imóvel para que possam ser individualizadas e discriminadas as unidades autônomas constantes no empreendimento. Ainda que esteja materialmente concluída a construção, Melhim Namem Chalhub nos esclarece que sem tal formalidade “a unidade imobiliária não terá existência legal se sua construção não for averbada e se sua individualização não for assentada no Registro de Imóveis”.[94]

Deste modo, o legislador vedou ao incorporador imobiliário negociar sobre unidades autônomas antes de registrada a incorporação no Registro de Imóveis, e exigiu para o registro , além do título de domínio do terreno, também a apresentação do projeto de construção aprovado, memorial descritivo das especificações da obra e minuta da convenção condominial, devendo também serem arquivadas em cartório juntamente com as certidões de regularidade judicial e fiscal do incorporador.[95]

Ademais, é certo que o número desse registro constasse obrigatoriamente dos anúncios, impressos, publicações, propostas, contratos, referentes ao empreendimento.

Por fim, o registro de todos os requisitos da incorporação imobiliária faz nascer a unidade imobiliária com identidade própria, integrante de um conjunto de unidades autônomas, sendo requisito essencial para que o incorporador possa negociar as unidades autônomas que futuramente serão construídas. Estão inseridos no registro todos os documentos de natureza jurídica, técnica econômica e empresarial, como forma de oferecer ao possível adquirente avaliar com precisão o que estão cogitando comprar e assim avaliar de forma consciente os riscos do negócio.

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Sobre a autora
Luciana Carrasco

Advogada. Especialista em Direito e Operações Imobiliárias pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARRASCO, Luciana. A incorporação imobiliária à luz do Código de Defesa do Consumidor.: A vinculação da oferta quanto à diferença de metragem entregue em relação ao previsto no memorial descritivo e no material publicitário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5258, 23 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59296. Acesso em: 23 abr. 2024.

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