Capa da publicação Incorporação imobiliária e a diferença de metragem com o anúncio e o memorial descritivo
Artigo Destaque dos editores

A incorporação imobiliária à luz do Código de Defesa do Consumidor.

A vinculação da oferta quanto à diferença de metragem entregue em relação ao previsto no memorial descritivo e no material publicitário

Exibindo página 3 de 5
23/11/2017 às 15:20
Leia nesta página:

3.A APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR NOS CONTRATOS DE INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA

Conforme restará demonstrado, não há como negar a condição de fornecedor ao incorporador imobiliário, a Lei dispensa ao adquirente de imóvel “na planta”, fenômeno conhecido como incorporação imobiliária, o mesmo sistema protetivo do Código de Defesa do Consumidor, haja vista que numa interpretação sistemática, preenche todos os requisitos específicos para caracterizar-se como o consumidor tutelado pelo artigo 2º do CDC.

Segundo elucida Leandro Leal Ghezzi, a incorporação imobiliária deve seguir o regramento previsto na Lei de Incorporação Imobiliária nº 4.591/64 naquilo que tem de específico, no entanto

[...] a ela também se aplica o Código de Defesa do Consumidor, que imprimiu à Lei da Incorporação imobiliária uma nova concepção de contrato, da qual ele próprio é fruto. Essa concepção é marcada pela socialização da teoria contratual, pela imposição da boa-fé objetiva e pelo intervencionismo do Estado e suas conseqüências são, fundamentalmente, a limitação da liberdade contratual e a relativização da força obrigatória dos contratos, a proteção da confiança e dos interesses legítimos e uma nova noção de equilíbrio das relações contratuais. Desta forma, coloca-se sob o alcance do Código de Defesa do Consumidor os incorporadores adquirentes, potenciais e efetivos, de unidades autônomas de incorporação imobiliárias, de forma que os primeiros podem assumir agora também a condição de fornecedores de produtos (a unidade autônima) e de serviços (a construção), ao passo que os últimos podem ser considerados consumidores. [96]

A proteção jurídica dispensada ao adquirente de imóvel objeto da incorporação imobiliária deve ser de forma irrestrita, principalmente se levado em conta que o consumidor adquirente da unidade autônoma não tem a possibilidade de discutir ou modificar substancialmente o conteúdo do negócio no momento da celebração do contrato.

É evidente que esses tipos de contratos trazem vantagens as incorporadoras, mas ninguém duvida de seus malefícios para os contratantes hipossuficientes. Estes aderem sem conhecer de fato o teor das cláusulas, confiando nas empresas que as pré-elaboraram e na proteção jurídica.

Nesse passo, as cláusulas contratuais que transfiram o risco do empreendimento do incorporador ao adquirente são abusivas e eivadas de nulidade absoluta, o que busca afastar a legislação consumerista.

Diante dos elementos caracterizadores da nova teoria dos contratos já tratada neste estudo, é impossível não se observar a importância das mudanças nas formas de contratação trazidas pelo Código de Defesa do Consumidor neste contexto.

Antes de adentrar ao tema, necessário salientar que não são todas as relações imobiliárias que o Código de Defesa do Consumidor tem sua aplicabilidade, entretanto, não se pode olvidar que o construtor ou incorporador pode em diversas circunstâncias negociais ser considerado fornecedor de que se trata o artigo 3º do CDC, assim como os adquirentes, desde que sejam destinatários finais, enquadrar-se-ão perfeitamente no conceito de consumidor da referida Lei, disposto do artigo 2º.

Neste mesmo sentido esposa Rodrigo de Azevedo Toscano de Brito:

Diante do passo dado neste item, quisemos frisar que os contratos imobiliários não ficaram afastados do âmbito de incidência do CDC. Muito pelo contrário. Antes, as partes envolvidas nas contratações aqui analisadas tinham obrigações apenas relativas a cada contrato em si. Hoje, dentro do espectro do CDC, como ficou assente passos atrás, ampliou-se o panorama obrigacional, que vai desde a fase pré-contratual até a fase pós-contratual, principalmente dos fornecedores, os quais devem ter em mente os fundamentos principiológicos do CDC, tais como lealdade e a boa-fé, guias inafastáveis das relações jurídicas modernas. Além disso, tendo-se em vista a importância social dessas contratações e muitas vezes a falta de atualização legislativa sobre cada uma delas, não se pode negar a importância que tem o CDC na compreensão de suas bases atuais. [97]

Dentre as situações jurídicas no ramo imobiliário onde se admite a aplicação das normas consumeristas, uma das mais significativas, tendo em vista a densidade social e larga utilização nos negócios imobiliários no Brasil, está a chamada incorporação imobiliária, por ser inegavelmente um contrato de massa, que merece uma maior atenção das normas protecionistas de que se trata o diploma do consumidor, assim como observância dos princípios da nova teoria contratual que tanto engrandeceu a ideia de justiça contratual.

Certo é que antes da vigência do Código de Defesa do Consumidor, poucas eram as normas que traziam em seu bojo as tendências da nova teoria contratual, daí a relevância do estudo do microssistema do consumidor para uma melhor compreensão dos elementos inovadores trazidos pela teoria.

Normalmente, os contratos que tem por objetivo as relações de consumo são contratos em massa, seja através da contratação por adesão, seja através de demais contratações gerais onde o fornecedor do bem a ser adquirido se encontre numa posição negocial superior ao adquirente. Desta forma, não se pode confundir a relação de consumo que detém proteção própria dado aos seus próprios caracteres, com os contratos paritários que não possuam natureza consumerista, e, portanto não devem ser enquadrados neste contexto de protecionismo a fim de igualar as partes discrepantes entre si.

O contexto em que a aplicabilidade do CDC é plena criou-se a partir da constatação que na atual sociedade de consumo por diversas vezes o consumidor é vítima de abusos por parte dos fabricantes ou fornecedores de produtos e serviços. Com o escopo de evitar tal arbitrariedade, é de rigor a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, diploma este que tem como precípuo objetivo resguardar os direitos do consumidor, o qual invariavelmente é tido como a parte hipossuficiente da relação consumerista, por razões de ordem técnica e econômica. É inegável a importância de tal legislação específica, que tem o intuito central de lidar com os conflitos de consumo, afastando as beligerantes atitudes de alguns fornecedores.

Outrossim, a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, no entanto, tem sido objeto de discussões doutrinárias acaloradas, dadas as diversas divergências nos posicionamentos dos autores que se manifestaram sobre a temática. Rodrigo de Azevedo Toscano de Brito traz o posicionamento que o objetivo do CDC não foi o de proteger todo contratante que se encontre em posição de inferioridade, mas sim, a criação de normas que regulem contratos firmados, invariavelmente entre consumidores e fornecedores.[98]

Por outro lado, Nelson Nery Junior, afirma que pelo fato da teoria geral dos contratos ser considerada uma norma de sobredireito, tendo sua manifestação dos novos conceitos esposados pioneiramente pelo CDC, no capítulo VI do título I, deve ser aplicado a toda e qualquer relação jurídica de direito privado, seja ela civil, comercial ou de consumo. [99]

Neste mesmo contexto, embora Rodrigo de Azevedo Toscano de Brito afaste de sua ideologia a aplicação do CDC nas relações que não sejam estritamente de consumo, admite que em contrapartida “não se pode olvidar que há uma tendência geral doutrinária, jurisprudencial e legislativa no sentido de buscar, ao máximo, o equilíbrio das relações contratuais, escopo principal do CDC”.[100]

 Desta forma, conclui-se que havendo uma situação de patente desequilíbrio na relação contratual, ainda que não seja de consumo, na ausência de outra norma que regulamente a matéria no caso concreto, mister se faz a aplicação dos princípios que regem o Código de Defesa do Consumidor.

Ademais, a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor não anula regramento específico acerca das incorporações imobiliárias tampouco qualquer outro ramo do direito, isto porque, assim como afirma Cláudia Lima Marques “diante do atual pluralismo pós moderno de um direito com fontes legislativas plúrimas, ressurge a necessidade de coordenação entre as Leis no mesmo ordenamento jurídico, como exigência para um sistema jurídico eficiente e justo”.[101]

Rodrigo Toscano Azevedo de Brito soma que “o que se nota, de uma forma geral é um completo afastamento dos ideais individualistas que ainda se constatam no Código Civil e uma aproximação a uma teoria mais social, buscando fundamentalmente, o equilíbrio da relação contratual”.[102]

Quanto à incidência do Código de Defesa do Consumidor especificamente nas incorporações imobiliárias, Melhim Namem Chalhub entende que:

O sistema de proteção dos adquirentes de unidades imobiliárias no regime das incorporações sustenta-se nos mesmos princípios do sistema de proteção do consumidor, e ambos encontram fundamento, basicamente, nos princípios constitucionais da isonomia, do devido processo legal e da garantia da propriedade privada, observada sua função social, os quais, por sua vez, inspiram-se nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.[103]

Ainda:

Ressalta, por fim, o Código de Defesa do Consumidor, que veio sistematizar as ideias caracterizadoras do atual estágio da evolução da teoria contratual, realçando a função social do contrato e privilegiando a boa-fé objetiva e o equilíbrio do contrato. O Código de Defesa do Consumidor equipara o contrato de incorporação ao contrato de consumo, suprindo eventuais lacunas do sistema de proteção estruturado pela Lei das Incorporações, notadamente no que tange às cláusulas gerais[...][104]

Mesmo que a incorporação imobiliária não se enquadre expressamente dentre os atos de consumo tutelados pelo Codex, de acordo com uma leitura abrangente pode-se concluir que a legislação consumerista tem plena efetividade nas incorporações imobiliárias. É o que se pode extrair da lição de Sergio Cavalieri Filho ao tratar sobre o fornecedor/ incorporador:

Quando ele vende e constrói unidades imobiliárias, assume uma obrigação de dar coisa certa, e isso é da essência do conceito de produto; quando contrata a construção dessa unidade, quer por empreitada quer por administração, assume uma obrigação de fazer, o que se ajusta ao conceito de serviço. E sendo essa obrigação assumida com alguém que se posiciona no último elo do ciclo produtivo, alguém que adquire essa unidade imobiliária como destinatário final, para fazer dela a sua moradia e da sua família, está formada a relação de consumo que torna impositiva a aplicação do Código do Consumidor porque as suas normas são de ordem pública. Havendo circulação de produtos ou serviços entre fornecedor e consumidor, teremos relação de consumo necessariamente regulada pelo Código do Consumidor. [105]

O Egrégio Superior Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão proferido pelo eminente Ministro Ruy Rosado, já se pronunciou sobre o tema, firmando o entendimento de que se aplica o CDC nas incorporações imobiliárias, por ter contribuído com cláusulas gerais que realçam a justiça contratual, principalmente através do principio da boa-fé objetiva.[106]

Alexandre Guerra entende que a proteção jurídica dispensada ao aderente, prevista do Código de Defesa do Consumidor deve incidir de forma ilimitada. Isto por que, sendo um contrato, em regra, de natureza adesiva, não haverá possibilidade de imposição de representante pelo incorporador para o adquirente em tais negócios jurídicos. Será vedada qualquer cláusula que autorize o incorporador a alterar unilateralmente o conteúdo ou qualidade do contrato após sua celebração, sob pena de nulidade absoluta, conforme artigo 51, XIII, do CDC[107], e também nula, por se tratar de cláusula abusiva a hipótese de transferência do risco do empreendimento do incorporador ao adquirente.[108]

É notório com a análise do contexto histórico e jurídico em que o Código de Defesa do Consumidor se insere que o diploma tem como pressuposto primordial uma maior atenção à vulnerabilidade do consumidor nas relações contratuais de consumo, visando uma forma compensatória e estabelecendo diretrizes materiais coma aplicação do princípio contratual da boa-fé objetiva amoldando os efeitos da relação obrigacional à concepção social do contrato. O propósito, conforme amplamente salientado, é de assegurar o equilíbrio da relação contratual, não para a vontade individual dos contratantes, mas sim para os reflexos e expectativas sociais que estes contratos de consumo geram em âmbito social e econômico.

Nesse sentido, Melhim Namem Chalhub disserta que:

[...] o Código de Defesa do Consumidor enuncia as bases fundamentais da defesa do consumidor, entre as quais vale destacar, além do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, a harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e a compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, tudo isso sustentado nos princípios da boa-fé e do equilíbrio das relações entre consumidores e fornecedores.[109]

Da mesma forma que ocorre em qualquer contrato de consumo, na incorporação imobiliária a proteção do Código de Defesa do Consumidor também se manifesta contra as práticas abusivas, tanto na fase pré-contratual como também se estende a fase onde já há um contrato em vigência entre as partes, e, por fim, à fase pós-contratual.

Daniel Orfale Giancomini e Flávia Orsi Leme Borges corroboram com este entendimento:

Na elaboração dos contratos, não são permitidas as clausulas abusivas, nos termos dos artigos 51 e seguintes do Código de Defesa do Consumidor. Ainda, após a entrega da obra, o fornecedor continua sendo responsável pela sua segurança e qualidade, podendo ser responsabilizado por vícios e defeitos. [110]

Ultrapassada esta breve síntese acerca da plena aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor à incorporação imobiliária, sem, contudo, prejudicar a vigência do disposto na lei específica de incorporações ou no Código Civil, sendo possível o diálogo das fontes, serão pormenorizadas as temáticas relevantes ao tema, à luz do Código de Defesa do Consumidor.

3.1.Cotejo entre Direito Civil e Direito do Consumidor

Historicamente, conforme já narrado no capítulo introdutório, o surgimento do Código de Defesa do Consumidor se deu em um período de grande defasagem do Direito Civil face à realidade social.

Por tal razão, com a edição do código de defesa do consumidor lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, era inevitável que seu caráter principiológico contagiasse o direito privado, levando Adalberto Pasqualotto a fazer a importante indagação no seu estudo sobre o tema, partindo do desencontro de ideias sobre os limites de aplicações do CDC. Tais inovações “deveriam ser contidas na relação de consumo ou se expandir a partir da própria ferramentaria conceitual do CDC, regendo também relações jurídicas extraconsumo?”.[111]

Tal indagação se mostra de extrema relevância, pois, não raras vezes o operador do Direito se vê diante de uma série de comandos normativos conflitantes entre si e até mesmo contraditórios, cuja solução nem sempre encontra uma resposta adequada pela simples aplicação dos critérios tradicionais de superação de antinomias. Ainda, mesmo que os métodos clássicos possam fornecer uma resposta jurídica tecnicamente correta ao caso concreto ou ao estudo do direito, esta aplicação pode conduzir a resultados incoerentes e em confronto com as diretrizes do sistema, em especial com os fundamentos constitucionais e as cláusulas gerais de direito, o que sem dúvidas representa um retrocesso.

Sobre o conflito de normas José Ricardo Alvarez Vianna disserta que:

Para melhor compreensão do assunto, nada mais conveniente do que recorrer a um enfoque prático. Nesse palmar, observa-se que a Teoria do Diálogo das Fontes tem sido bastante aplicada em situações que se sujeitam, concomitantemente, a disposições contidas tanto no Código Civil, quanto no Código de Defesa do Consumidor. No entanto, a solução não advém dos métodos clássicos, como especialidade, temporalidade ou hierárquico, mas a partir de uma perscrutação, uma investigação, uma análise da situação fática correspondente em cotejo com as normas incidentes. É desse conflito que o operador do Direito irá buscar identificar a finalidade e a essência do bem jurídico, objeto da lide, para formular, num processo simbiótico, a solução que o caso reclama, de acordo com os parâmetros jurídicos que regem a matéria, em sintonia com as diretrizes Constitucionais.[112]

Concernente a aplicação da Lei Civilista e do Código de Defesa do Consumidor, diplomas que são objeto deste estudo, Cláudia Lima Marques reflete sobre quais seriam os diálogos possíveis entre o CDC como lei anterior e especial e o Código Civil que teve sua vigência iniciada posteriormente:

Há o diálogo de influências recíprocas sistemáticas como no caso de uma possível redefinição do campo de aplicação de uma lei (assim, por exemplo, as definições de consumidor stricto sensu e de consumidor equiparado pode sofrer influências finalísticas do novo Código Civil, uma vez que esta lei nova vem justamente para regular relações entre iguais, dois iguais-consumidores ou dois iguais-fornecedores entre si. No caso de dois fornecedores, trata-se de relações empresariais típicas, em que o destinatário final fático da coisa ou do fazer comercial é um outro empresário ou comerciante, ou com no caso da possível transposição das conquistas do Richterrecht (Direito dos Juízes) alcançadas em uma lei para outra. É a influência do  sistema especial no geral e do geral no especial, um dialogo double sens (diálogo de coordenação e adaptação sistemática).[113]

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Conforme citado ainda por Cláudia Lima Marques, o grande mestre de Heidelberg propõe então com sua teoria a convivência de uma solução ao lado da solução tradicional: a coordenação das fontes.

Propõe uma coordenação flexível e útil (effet utile) das normas em conflito no sistema, a fim de ver restabelecida sua coerência, ou seja, uma mudança de paradigma: da retirada simples (revogação) de uma das normas em conflito do sistema jurídico (ou do monólogo de uma só norma possível a comunicar a solução justa) à convivência destas normas, ao diálogo das normas para alcançar a sua ratio, à finalidade narrada ou comunicada em ambas, trata-se do atual e necessário diálogo das fontes (dialogue des sources) a permitir a aplicação simultânea e coerente das plúrimas fontes legislativas convergentes.[114]

A expressão diálogo é utilizada porque há influências recíprocas, isto é, uma aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja uma aplicação complementar, seja uma aplicação subsidiária, seja ainda permitindo a opção voluntária das partes sobre a fonte prevalente, como ocorre nas convenções internacionais. É uma forma de se buscar uma solução flexível e aberta de interpretação, ou mesmo a solução mais favorável ao elo mais fraco da relação.[115]

Desta forma, a vigência da Lei Civilista não anula nem revoga o disposto no Código de Defesa do Consumidor, assim como o referido diploma consumerista não pode ser aplicado sem a observância do sistema como um todo. Deve-se analisar sempre o caso concreto e o melhor diálogo para a resolução do problema social trazido ao judiciário.

Da análise da questão, é forçoso concluir que ambas as legislações podem perfeitamente coexistir de forma harmoniosa. Adalberto Pasqualotto por sua vez, entende que, de outra parte,

[...] certas disposições do CC/2002 que estipulem patamar de proteção inferior aos estabelecidos no CDC em nada afetam ao consumidor, em virtude do princípio de que lei especial prevalece sobre a lei geral, enquanto que normas convergentes e complementares ao CDC, eventualmente mais amplas ou benéficas, podem ser aplicadas supletivamente em favor dos consumidores.  [116]

Conforme exemplos pertinentes trazidos por Rodrigo de Azevedo Toscano de Brito algumas considerações devem ser levantadas sobre a aplicação das normas. Primeiramente, deve-se limitar o âmbito de compreensão do raciocínio a compra e venda de imóvel, ou seja, nos contratos firmados entre particulares em condições de igualdade, como ocorre quando um particular vende uma casa, apartamento ou lote de terreno a outro particular, com ou sem a intermediação de um profissional de corretagem; nestes casos, por óbvio não há que se falar em incidência do Código de Defesa do Consumidor, diante da falta de um dos elementos essenciais da relação de consumo, estando tal contratação regida pelo Código Civil.[117]

Entretanto, deve-se atentar para aqueles casos quando de um lado está um vendedor habitual de imóveis e de outro se encontra um comprador eventual. Nessa situação específica, o vendedor se enquadra na posição de fornecedor, seja ele pessoa física ou jurídica, por desenvolver atividade de comercialização, sendo detentor de maior conhecimento técnico e negocial. Por outro lado, o comprador que adquire o imóvel também pode ser visto como o consumidor destinatário final do bem, ensejando a tutela consumerista.[118]

Partindo da visão trazida pelos supracitados juristas, nota-se sem sombra de dúvidas que o incorporador imobiliário assume a figura do fornecedor do Código de Defesa do Consumidor, devendo a relação jurídica denominada incorporação imobiliária, com compra de imóvel na planta seguir os ditames da proteção ao consumidor, que configurará a parte frágil do polo contratual, necessitando de um maior resguardo do que numa relação jurídica estritamente civil. É deste pressuposto inicial que continuaremos este estudo. 

3.2.As figuras do consumidor/ adquirente e fornecedor/ incorporador

Preliminarmente, cumpre dizer, que é incontroverso e pacífico que a relação aqui discutida, é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor.

O conceito de consumidor está positivado no CDC, no artigo 2º, que traz em sua redação que “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final".

De acordo com Cláudia Lima Marques, o legislador brasileiro do Código de Defesa do Consumidor, parece ter em princípio preferido uma definição objetiva de consumidor. Desta forma, torna-se estritamente necessário a análise do termo “destinatário final” constante no texto legal.

Segunda a explicação inicial da supracitada jurista, destinatário final seria “o consumidor final, o que retira o bem do mercado ao adquirir ou simplesmente utilizá-lo (Endverbraucher), aquele que coloca um fim na cadeia de produção e não aquele que utiliza o bem para continuar a produzir na cadeia de serviço”.[119]

De acordo com esta conceituação trazida, o destinatário final através de um ato objetivo, retira o bem do mercado de consumo. É necessário não apenas adquirir o bem, utilizá-lo, ou ser seu destinatário fático, mas, sobretudo, não adquiri-lo para revenda ou para fins comerciais onde o bem seria novamente um instrumento de produção cujo preço será incluído no preço final do profissional que o adquiriu.[120] 

Quanto a possibilidade de pessoa jurídica ser consumidora, Arthur Luis Mendonça Rollo entende que o fator determinante da condição de consumidora da pessoa jurídica é a denominada ““vulnerabilidade técnica”, que implica o desconhecimento por parte do adquirente das características do produto ou serviço. Se ela adquire insumos para sua atividade, esse elemento desaparece, descaracterizando sua condição de consumidora”.[121]

Conforme melhor tratado no capítulo anterior, deve-se observar que nem sempre o adquirente será consumidor de que trata o CDC. No contrato de incorporação imobiliária, será consumidor o adquirente da unidade condominial autônoma para uso pessoal ou para terceiros, como por exemplo, compra de unidade em nome dos filhos, sendo essencial que este seja o destinatário final para a plena vigência do CDC. Aquele que compra a unidade condominial para investimento e oportuna revenda, não pode ser enquadrado como consumidor, vez que não se encontra situado no término da cadeia de consumo.[122]

Ademais, o adquirente da unidade autônoma para ser considerado consumidor deve sempre ser a parte vulnerável na relação de consumo, podendo, neste contexto ser tanto um consumidor pessoa física, quanto um consumidor pessoa jurídica, contanto que seja o destinatário final do bem imóvel, levando-se em conta o elemento teleológico.

Quanto à figura do consumidor, o adquirente de imóvel pelo regime das incorporações imobiliárias estará caracterizado na medida em que esteja na posição de destinatário final do imóvel conforme determina o artigo 2º, e se mostre vulnerável em face do incorporador. Por este ângulo, não será equiparado à consumidor aquele que adquire imóvel em razão de sua atividade econômica, assim como aquele que adquire para revender, e não para utilizar como destinatário final. Para caracterização da figura do consumidor, é indispensável que esteja configurada a vulnerabilidade do adquirente, conforme observa Rodrigo Azevedo Toscano de Brito, ao apontar que

A doutrina é uníssona quando refere que o CDC pretendia, realmente atingir a parte mais fraca, aquela que não tem estrutura suficiente para enfrentar as imposições da parte mais forte na relação de consumo, qual seja o fornecedor. Portanto, não há o que discutir neste sentido, desde que a pessoa natural esteja adquirindo ou utilizando o produto ou serviço como destinatário final.[123]

Para o CDC, é considerado como consumidor, ainda, na análise do artigo 4º,I além da parte que adquire ou utiliza o produto como destinatário final,  ainda, o consumidor que seja hipossuficiente ou vulnerável na relação de consumo, causando, desta forma, desequilíbrio que traga vantagens a parte mais forte, ou seja, o fornecedor  ou incorporador.

Neste mesmo sentido, o consumidor deve ser notoriamente o elo mais fraco da relação, ou seja, aquele que impossibilita a presença de um equilíbrio contratual, em face da superioridade técnica ou econômica do fornecedor. Convém ressaltar, deste modo, que a hipossuficiência que o Código, a doutrina e a jurisprudência se referem pode também ser alusiva a ausência de conhecimento técnico sobre o produto ou serviço, possibilitando a colocação do consumidor em situação de extrema desvantagem contratual, ou então relativo à disparidade econômica do consumidor face ao fornecedor, que na maior parte das vezes conta com aparato maior para a defesa de seus interesses, haja vista seu maior poderio econômico. 

Por outro lado, o artigo 3º dispõe:

fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

Neste segmento, conforme disserta Cláudia Lima Marques, a definição do artigo 3º é bastante ampla:

Quando ao fornecimento de produtos, o critério caracterizador é desenvolver atividades tipicamente profissionais, como a comercialização, a produção a importação, indicando também a necessidade de uma certa habitualidade, com a transformação, a distribuição de produtos. Estas características vão excluir da aplicação das normas do CDC todos os contratos firmados entre dois consumidores, não profissionais, que são relações puramente civis, às quais se aplica o CC/2002.[124]

Neste passo Luis Antonio Rizzatto Nunes entende que o termo fornecedor previsto na legislação protetiva é gênero, do qual o fabricante, o produtor, o construtor, o importador e o comerciante são espécies. Ver-se-á que com esta abrangência dada pelo legislador, pretende-se que todos sejam obrigados ou responsabilizados na eventualidade de evento danoso ao consumidor.[125]

Além disso, o artigo 3º, § 1º, do Código de Defesa do Consumidor define produto como sendo "qualquer bem móvel ou imóvel, material ou imaterial".

Para que haja a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de incorporação imobiliária, primeiramente, precisa-se analisar se o adquirente enquadre-se nos termos do artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor.

Na simples leitura do artigo 3°, conclui-se que as incorporadoras e construtoras são pessoas jurídicas, podendo ser nacional ou mesmo estrangeira que desenvolvem atividade no mercado de consumo. Como se pode notar, fornecedor é um conceito propositalmente abrangente na Lei, sendo toda pessoa física ou jurídica que pratique habitualmente a oferta pública de produtos ou serviços no mercado de consumo

Corroborando com essa assertiva, Alexandre Guerra assevera que:

[...] não é possível negar a condição de fornecedor ao incorporador imobiliário. É ele quem planeja a montagem da incorporação, quem cria o produto imobiliário, quem promove a construção da edificação visando ao produto final (a unidade condominial) objeto da comercialização, em edificações a serem construídas ou em construção (art. 29, LCI). Por outro lado, ocupa o contra pólo da relação jurídica em foco o adquirente da unidade condominial autônoma, que pode ser considerado consumidor, no mais das vezes, mercê do disposto no artigo 2º do CDC.[126]

Assim, é possível concluir-se que a relação jurídica firmada entre incorporadora e adquirente de unidade é uma relação jurídica de consumo, não olvidando, entretanto, o fato de que esta afirmação não tem por conseqüência, a exclusão da incidência de outras normas. Este fato, portanto, cria a possibilidade de incidência cumulativa do Código de Defesa do Consumidor com outras normas atinentes ao caso concreto.

Como anota Melhim Namem Chalhub:

De fato, no rol de atividades que configuram o fornecedor estão a atividade de construção e de comercialização de produtos. É verdade que o incorporador não exerce, necessariamente, a atividade de construção, mas, não obstante, é ele quem faz construir e coordena o negócio da incorporação, sendo, por isso, responsável pela construção, solidariamente com o construtor; está, assim, de maneira indireta, equiparado ao fornecedor, mas, ainda que não o fosse não em razão da atividade de construção e de coordenação do negócio, o incorporador haveria de ser equiparado ao fornecedor em razão da atividade de comercialização dos imóveis integrantes da incorporação, na medida em que o Código de Defesa do Consumidor qualifica o imóvel como produto e inclui a comercialização de produtos entre as atividades que caracterizam a figura do fornecedor. [127]

Do exposto, como corolário, fornecedor trata-se de um conceito deveras abrangente, de modo que embora o texto legal não traga expressamente previsto a figura do incorporador, este, sem sombra de dúvidas está compreendido no conceito geral. Para melhor vislumbrar a sedimentação dessa afirmação, não se pode analisar o incorporador isoladamente como um corretor, mandatário ou gestor de negócios, posto que o incorporador é mais do que isso, pois nele se consagra todas essas atividades, ele é o grande idealizador do empreendimento imobiliário, do projeto e o propulsor do investimento.

Por fim, não é demais ressaltar que o incorporador, conforme depreende o artigo 29 da Lei de Condomínios e Incorporações, pode tanto ser pessoa física quanto pessoa jurídica, comerciante ou não, que, embora não efetue a construção diretamente, compromissa e efetiva a venda de frações ideais do terreno objeto da incorporação, após devidamente registrada no Cartório de Registro de imóveis, e cumpridas todas as exigências legais e administrativas, conforme visto.  O incorporador exerce suas atividades de maneira profissional, sendo primordial que assim o faça, para a incidência do CDC. 

3.3.A publicidade suficientemente precisa e a vinculação da oferta.

Não seria exagero afirmar que o mercado imobiliário movimenta as esperanças e expectativas das pessoas, tanto para aquelas que almejam realizar o sonho da casa própria, como também aqueles que visam apenas aquisição de imóvel como forma de investimentos nessa área.

O que se vê costumeiramente na prática imobiliária de mercado no que tange a incorporação imobiliária, ou a chamada “compra de imóvel na planta”, são anúncios onde normalmente há uma fotografia digital montada do que será o futuro prédio ou condomínio horizontal, inclusive, na maioria dos grandes empreendimentos o incorporador disponibiliza uma amostra do apartamento decorado no plantão de vendas, bem como maquete da estrutura física da construção, juntamente com todas as áreas comuns e de lazer de forma esquematizada a atrair o interesse do adquirente.

Como corolário, todo este material apresentado ao consumidor no momento da realização da publicidade do empreendimento configura a chamada “oferta”, que consiste uma série promessas que posteriormente, vincularão o incorporador imobiliário, como veremos a seguir.

O § 2º do artigo 31 da Lei 4.591/64, como visto nos capítulos iniciais, é claro ao dispor que nenhuma incorporação poderá ser proposta à venda sem a indicação expressa do incorporador, devendo também seu nome permanecer indicado ostensivamente no local onde será realizada a construção do empreendimento.

Destarte, será indispensável para a regularidade da incorporação imobiliária que conste o número do registro da incorporação no material publicitário, assim como a indicação do cartório competente para que todo e qualquer interessado possa ter acesso a esta documentação que traz informações essenciais sobre o empreendimento. Salienta-se que toda publicidade ou propaganda escrita destinada a promover a venda das unidades autônomas também é indispensável à regularidade do negócio jurídico, e devem constar expressamente dentre os documentos essenciais. 

Neste diapasão, com o devido registro efetuado perante o cartório competente, o consumidor pode ter acesso inclusive ao memorial descritivo da incorporação, tendo conhecimento das dimensões e materiais a serem utilizados na obra.

O memorial descritivo, conforme pormenorizado no segundo capítulo detalha todas as características do imóvel, assim como o material a ser utilizado, modelos e marcas deve ser registrado no cartório antes da venda do imóvel. Com essa precaução todo aquele que estiver interessado no imóvel poderá verificar o constante no memorial de incorporação antes de efetivar o negócio sobre o bem que porventura venha a ser adquirido, tornando-se, pois, ciente da existência ou não de máculas na execução do imóvel avençado. Neste sentido, a construtora deve se utilizar dos materiais informados ao consumidor, caso contrário poderá valer-se o comprador dos remédios legais.

A publicidade é ato que torna público o empreendimento, que traz visibilidade ao negócio imobiliário viabilizando que potencias consumidores possa vir a se interessar pela aquisição do imóvel na planta. Como a oferta e a publicidade são atos de comércio integrantes da pré-venda e da pós-venda, obrigatoriamente devem seguir os seguintes princípios do Código de Defesa do Consumidor.

Primeiramente, é mister fazer um breve diferenciação do instituto jurídico da oferta no direito privado, com a oferta prevista no Código de Defesa do Consumidor.

O artigo 427 do Código Civil, dispõe que “A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso”.

Da análise do dispositivo acima transcrito, Luiz Antonio Rizzatto Nunes entende que:

Todavia, como se infere do próprio dispositivo, tanto pode o proponente esquivar-se da oferta, impondo limites e condições na proposta, quanto, dependendo da natureza do negócio, a vinculação inexistir. Além disso,no regime privado, para obrigar o solicitante, a oferta tem de ser firme, precisar a coisa que esta sendo oferecida à venda e compra ter preço certo e ser dirigida a pessoa determinada. No regime do Código Civil os anúncios publicitários por meio de jornais, revistas, catálogos etc. não são oferta de proposta propriamente dita, mas sim um “convite à oferta”, de modo que o proponente não fica vinculado. E, ainda, quando caracterizada a proposta, sua recusa resolve-se em perdas e danos.[128]

Rizzatto Nunes apresenta, ainda, a diferenciação do instituto da oferta prevista no Código de Defesa do Consumidor:

Não é o que ocorre no regime do CDC. A partir de 11 de março de 1991,toda oferta relativa a produtos e serviços vincula o fornecedor ofertante obrigando-o ao cumprimento do que oferecer. Isso é uma decorrência lógica e natural da sociedade de massas que se instalou – e é regra expressa da Lei n. 8078.como se verá. Alias, em caso de descumprimento da oferta, pode o consumidor, inclusive, exigi-la do fornecedor por meio de execução específica,forçada, da obrigação de fazer. E a característica marcante da oferta é dirigir-se a uma gama indeterminada de consumidores. [129]

A oferta do Código de Defesa do Consumidor tem sentido e abrangência de muito maior amplitude do que a proposta do art. 427, do CC/2002, de acordo com o entendimento esposado por Nelson Nery Junior. Não se consideram proposta, no sentido do Código Civil aqueles comportamentos denominados invitatio ad offerendum, por dirigir-se a uma gama indeterminada de pessoas (ad incertam personam) e por faltar-lhe a vontade de contratar.[130]

Conforme se pode notar, é cristalino que a oferta no Codecon tem uma força vinculante infinitamente maior do que na Lei Civilista, isto porque, o fornecedor não pode oferecer uma ilusão ao comprador e depois simplesmente se desincumbir daquilo que foi essencial para o convencimento do consumidor no momento da adesão ao negócio.

Na Lei consumerista ocorre o fenômeno da vinculação, ou seja:

Oferecida a mensagem, fica o fornecedor a ela vinculado, podendo o consumidor exigir seu cumprimento forçado nos termos do art. 35. Se o fornecedor quiser voltar atrás na oferta, não poderá fazê-lo, até porque, como de resto decorre da estrutura do CDC, a oferta tem caráter objetivo. Feita, a própria mensagem que a veicula é o elemento comprobatório de sua exigência e vinculação.[131]

É certo que, de acordo com os ditames do Código de Defesa do Consumidor, na formação dos contratos entre consumidores e fornecedores, é de rigor a observância do princípio da transparência esculpido pelo artigo 4º, norteador das relações de consumo, nesta acepção, Claudia Lima Marques elucida que “a ideia central é possibilitar uma aproximação e uma relação contratual mais sincera e menos danosa entre consumidor e fornecedor”.[132]

O princípio da transparência se traduz na necessidade de prestar ao consumidor informações claras, precisas e corretas, de acordo com o artigo 30 do CDC[133], tal dispositivo zela pela lealdade e respeito nas relações consumeristas, mesmo na fase pré-contratual, isto é, na fase de negociação. 

Deste modo, transparência significa prestar ao consumidor informações corretas e honestas sobre o produto a ser destinado à venda e sobre o contrato firmado, significa a prevalência da lealdade e do respeito nas relações entre consumidores e fornecedores, ainda que na fase pré-contratual.

 Claudia Lima Marques entende que o CDC regula:

[...]aquelas manifestações do fornecedor que tentam atrair o consumidor para a relação contratual, que tentam motivá-lo a adquirir seus produtos e usar os serviços que oferece. Regula, portanto, o Código e a oferta feita pelo fornecedor, incluindo também a publicidade veiculada por ele. O fim destas normas protetoras é assegurar a seriedade e a veracidade destas manifestações, criando uma nova noção de “oferta contratual”.[134] 

Reflexamente ao princípio da transparência, há o dever de informação é oriundo da boa-fé negocial, e altamente valorado frente às complexas negociações contemporâneas e, sobretudo, aos riscos que tais negociações trazem ao pólo frágil da relação negocial. O fornecedor responderá não apenas pela publicidade não cumprida, como também pela falha na informação, estando o consumidor, em ambas as situações, protegido pelo disposto no artigo 35 do CDC.

A publicidade se insere num contexto pré-contratual, visando atrair potenciais consumidores, e por tal razão merece uma maior precaução da lei, a fim de legitimar meios de proteção do consumidor em caso de publicidade enganosa, ou não cumprimento da oferta veiculada no material publicitário.

Claudia Lima Marques considera que a ratio legis do Código de Defesa do Consumidor

[...] é justamente valorizar este momento de formação do contrato de consumo, que passamos a analisar. A tendência atual é de examinar a qualidade da vontade manifestada pelo contratante mais fraco, mais do que a sua simples manifestação: somente a vontade racional, a vontade realmente livre, autônoma e informada, legitima, isto é, tem o poder de ditar a formação, e por conseqüência, os efeitos dos contratos entre consumidor e fornecedor.[135]

Vale dizer que, aquilo que foi a razão de existir do contrato, tornar-se-á obrigatório o cumprimento pelo fornecedor, e, caso assim não seja, o adquirente tem o direito de se proteger das abusivas manobras dos fornecedores/ incorporadores.

Arthur Luis Mendonça Rollo, no mesmo sentido, afirma que a publicidade consiste na divulgação de características de produtos e serviços para aproximá-los dos consumidores. Trata-se da oferta difusa de produtos e serviços, por meio de comunicação de massa. [136]

O artigo 30 do Código de Proteção Consumerista reza que toda publicidade “suficientemente precisa” obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar, integrando o contrato que vier a ser celebrado. Entretanto, a publicidade e a oferta vincularão o incorporador imobiliário, ainda que nada a respeito conste no instrumento de compra e venda ou promessa de compra e venda.

Nelson Nery Junior considera que

É importante anotar que o regime da vinculação da oferta ao futuro contrato que vier a ser concluído, faz com que todas as características do produto ou serviço constantes da oferta devam, necessariamente, fazer parte integrante do contrato. Ao fornecedor impõe-se o dever de prestar de conformidade com a oferta feita por ele.[137]

Qualquer que seja a forma de veiculação dessa oferta há o dever de prestar, vale dizer, de realizar o contrato de consumo nos termos e nas condições constantes da oferta colocada à disposição do consumidor. Assim, por exemplo, as informações ou publicidade sobre preços e condições em anúncios, panfletos devem ser respeitados estritamente, pois se não fosse aquilo, não haveria a aproximação com o consumidor.

Nelson Nery Junior, no entanto, complementa que não é qualquer publicidade que vinculará o fornecedor, mas, tão-somente a considerada suficientemente precisa:

Conforme a dicção da lei, somente se considera oferta vinculante a informação suficientemente precisa, quer dizer, aquela que contenha elementos claros para que possam ser identificados os seus termos, tais como marca do produto, condições de pagamento etc.[138]

Necessário trazer a baila que a publicidade, apenas quando suficientemente precisa, passa a ter efeitos de uma oferta, integrando o futuro contrato. Isto significa que meras propagandas como “o melhor empreendimento imobiliário do ABC” não vincularão o fornecedor, por não serem informações passíveis de maior precisão.

Neste seguimento, se o incorporador promete, por exemplo, na publicidade do empreendimento, piso de porcelanato, piscina, salão de festas, churrasqueira, dentre outras, deve cumprir rigorosamente o que foi anunciado. Isso nos leva a certeza de que ainda que o contrato depois, não venha a fazer menção a alguns desses detalhes, o adquirente pode reclamar que se faça em virtude de publicidade anterior, a qual está vinculada à contratação.

É de se concluir que a intenção do legislador foi, por óbvio, trazer uma vedação ao anúncio de mera atração de clientela. Assim sendo, se a publicidade anuncia que serão utilizados pisos da marca “x”, ainda que o contrato depois não venha a mencionar esse detalhe, o adquirente pode reclamar o cumprimento forçado em virtude de publicidade anterior.

A norma expressa claramente que a oferta integra o contrato que vier a ser celebrado, neste sentido, exemplifica Luiz Antonio Rizzatto Nunes:

Suponhamos que uma construtora faça anúncio de venda de apartamentos, que já são entregues com armários embutidos no quarto. Atraído o consumidor, ele adquire o imóvel mediante escritura pública da qual não consta que o bem está sendo entregue com os armários embutidos. E, de fato, recebendo as chaves e tomando posse, o consumidor percebe a falta de armários. Como fica a relação? O outro sentido disposto no art. 30, ao expressar “integra o contrato que vier a ser celebrado” é o de que, uma vez feita a oferta, todos os elementos que a compõe, desde já, integram o contrato a ser celebrado, mesmo que, quando de sua assinatura, o fornecedor omita algum ou alguns elementos que dela constavam. Não resta dúvida de que, no caso do exemplo, a construtora está obrigada a cumprir a oferta, instalando os armários embutidos, exatamente como fora anunciado. De outra forma, caso prefira o consumidor, o contrato de compra e venda poderá ser rescindido, restituindo-se ao comprador a quantia paga, além de eventuais perdas e danos; ou, então, o consumidor pode aceitar outro produto ou prestação de serviços equivalente aos armários faltantes. Ou, ainda, pode pleitear abatimento proporcional do preço.[139]

Ademais, tendo em vista essa forma de veiculação de propaganda, principalmente por meio de anúncios ilustrativos, a construtora não poderá se valer de subterfúgios como “imagem meramente ilustrativa”, comum nas peças de publicidade. Tal menção não ilide a responsabilidade da construtora, uma vez que se trata de oferta, devendo ser cumprido tudo aquilo que estiver no material publicitário. 

A publicidade deve ser honesta, com apresentação verdadeira do produto oferecido, para resguardar ao consumidor uma escolha livre e consciente, não podendo prevalecer a fraqueza ou ignorância da parte hipossuficiente.

A proteção do CDC representa uma considerável inovação no ordenamento jurídico brasileiro, conforme amplamente mencionado no decorrer deste estudo, uma verdadeira mudança na ação protetora do direito. De uma visão liberal e individualista do Direito Civil, passamos a uma visão social, que valoriza a função social do direito, protetor da confiança e das legítimas expectativas nas relações de consumo no mercado.

Cláudia Lima Marques aduz sobre o regramento do artigo 31, que este:

cria para o fornecedor o dever de informar corretamente o consumidor sobre as características, qualidade, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem do produto, bem como informar sobre os riscos que o produto apresenta à saúde e à segurança do consumidor. Assim, pelo art. 31 o fornecedor deve cuidar para que sua oferta e mesmo a apresentação de seu produto assegure informações claras, precisas e em língua portuguesa.

Sobre a questão da publicidade nas incorporações imobiliárias, Sergio Cavalieri Filho comenta que

Sendo assim, o Código do Consumidor incide na fase pré-contratual da incorporação, disciplinando a oferta e a publicidade feita pelo incorporador ou o seu promotor de vendas. Exige que a oferta ou apresentação de seus produtos e serviços assegurem informações claras, corretas e precisas sobre suas características, qualidade e preço (arts. 30 e 31, CDC); veda expressamente a publicidade enganosa ou abusiva por força dos princípios da transparência e da boa-fé, pontos cardiais do Código do Consumidor.[140]

O descumprimento da oferta, na incorporação imobiliária pode ser notado em diversas circunstâncias, por exemplo, anúncios de apartamentos à venda de frente para a praia, quando não se consegue enxergá-la de fato, ou então quando há uma amostra decorada do apartamento, no entanto, os móveis estão todos fora do padrão para darem a falsa ideia de espaço e amplitude, quando na verdade não há. Todos estes atos, e todo o material publicitário não cumprido configuram publicidade enganosa, pois frustram a legítima expectativa criada no consumidor pela oferta do incorporador, mas que não corresponde à realidade.

O Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, acertadamente, tem reputado a publicidade enganosa como causa de rescisão do pré-contrato imobiliário, condenando o vendedor em perdas e danos, principalmente por danos morais pela frustração, engano e humilhação impostos ao consumidor.[141]

Em relação a publicidade promovida pelo incorporador imobiliário, Alexandre Guerra disserta que:

Sobressaio princípio da vinculação segundo o qual o consumidor poderá exigir do fornecedor o cumprimento do conteúdo de comunicação publicitária. Também em relação à publicidade e oferta, sustentamos que as relações jurídicas não podem se afastar, em momento algum, do princípio da boa-fé objetiva, que emana efeitos nas chamadas fases pré-contratual, contratual e pós- contratual. Em relação a publicidade, adere à boa-fé objetiva o princípio da confiança despertada no consumidor diante da massificada das relações, das várias ofertas feitas ao consumidor da publicidade especializada, o consumidor cria expectativas e estas devem ser efetivamente respeitadas até o fim da relação de consumo.[142]

Conforme textualizado, o crescimento acelerado do mercado de consumo fez nascer a premência das contratações em massa dada a dinâmica do próprio mercado que acabou por acelerar as demandas decorrentes da própria evolução social. Entretanto, esse fenômeno trouxe consigo o surgimento de práticas comerciais que passaram a causar prejuízo aos consumidores, dentre aqueles interessados na aquisição de imóveis a serem construídos, sendo essencial uma proteção da parte vulnerável e frágil da relação.

Nesta linha de ideias, Daniel Orfale Giancomini e Flavia Orsi Leme Borges ao explicarem sobre os abusos na fase pré-contratual entendem que:

O artigo 31 do CDC trata do conteúdo da publicidade, determinando que a oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidade, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores. [143]

É deveras comum observar na publicidade e na oferta de unidades imobiliárias a colocação de uma pequena planta do apartamento no panfleto destinado ao público. Muitos dos anúncios, no entanto, sequer fazem menção às medidas encontradas em cada ambiente da unidade autônoma, passando erroneamente a impressão de que se trata de um local espaçoso e amplo, quando na verdade, após a construção será bem diferente. Ao agir deste modo, o incorporador não respeita o preceito contido no artigo 31 do CDC, que dispõe que a oferta do produto ou serviço deve assegurar informações corretas, claras e precisas. [144]

Além disso, no tocante ao preço constante na publicidade veiculada, os incorporadores se valem de meios ardis para anunciar o valor em letras grandes, no entanto, anunciam apenas a prestação mais barata que existe para o empreendimento e, em letras pequenas, esclarecem que se trata apenas das parcelas de determinadas unidades, normalmente as do primeiro pavimento que tem seu valor de mercado inferior aos pavimentos mais elevados.

Não há nenhuma proibição legal nesta prática de divulgação dos preços, no entanto, deve ser feita de maneira clara, ainda que seja apenas de uma espécie de unidade, e trazer as informações de modo que seja compreensível a leitura de qualquer pessoa interessada.

Como conseqüência lógica desta situação, o artigo 36 do CDC[145] traz que a publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor possa identificá-la como tal fácil e imediatamente. A publicidade deve ser claramente identificada pelo consumidor, não podendo o fornecedor se valer de técnicas indiretas, como a publicidade subliminar.

O princípio da “identificação obrigatória da mensagem” como publicitária existe no direito comparado, e tem como foco tornar consciente ao consumidor, ou comprador potencial, que ele é o destinatário de uma mensagem publicitária, patrocinada por um fornecedor com o escopo de promover a venda de seu produto.[146] 

Publicidade, segundo Claudia Lima Marques “é toda informação ou comunicação difundida com o fim direto ou indireto de promover junto aos consumidores, a aquisição de um produto ou a utilização de um serviço, qualquer que seja o local ou meio de comunicação utilizado”.[147]

Deste modo, a publicidade que desobedecer o regramento do artigo 36, é tida como enganosa ou abusiva, sendo expressamente proibida no texto legal do artigo 37 do mesmo diploma em comento.

A publicidade que não siga com os ditames legais, é considerada enganosa ou abusiva.

Enganosa é a propaganda capaz de induzir a erro o consumidor, mesmo que através de omissões, segundo explica Claudia Lima Marques “A interpretação dessa norma deve ser necessariamente ampla, uma vez que o erro é a falsa noção da realidade, falsa noção esta potencial formada na mente do consumidor por ação da publicidade”.[148]

Pode-se notar que quando a incorporadora coloca a mostra do consumidor uma maquete ou panfleto do condomínio edilício, ou até mesmo disponibiliza um stand de vendas com uma amostra do apartamento decorado (com movéis fora do padrão para dar impressão de espaço), e, posteriormente na entrega do imóvel tais caracteres não são respeitados, está, na verdade, veiculando uma propaganda enganosa a fim de induzir a erro o consumidor. Tal falta de lealdade contratual é severamente punida pelos ditames do Código do Consumidor, restando ao consumidor uma série de faculdades a fim de restabelecer seu direito lesado.

Por sua vez, a publicidade abusiva é aquela tida como antiética, que fere a vulnerabilidade do consumidor e os valores sociais básicos[149], podendo ser conforme parágrafo 2º do artigo 37 do CDC[150] aquela que incite a discriminação, incite a violência, explore o medo ou superstição, se aproveite de deficiência de julgamento e possa induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial à sua saúde ou segurança.

Pelo exposto até aqui, certo é que o incorporador que se valer de meios pouco probos para ofertar as unidades autônomas de seu empreendimento, fazendo uso, principalmente de publicidade enganosa a fim de ludibriar o consumidor a adquirir uma unidade de apartamento, estará vinculado a esta oferta, desde que suficientemente precisa, incorrendo, em caso de descumprimento, nos efeitos do artigo 35 do CDC.

 O diploma do consumidor, consagrando sempre os fundamentais e profundos pilares da boa-fé como forma de reparação ao adquirente lesado, traz opções alternativas, de modo que o consumidor poderá escolher entre exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade, aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente, ou ainda rescindir o contrato, não afastando o direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos, conforme será esmiuçado no capítulo final.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Luciana Carrasco

Advogada. Especialista em Direito e Operações Imobiliárias pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARRASCO, Luciana. A incorporação imobiliária à luz do Código de Defesa do Consumidor.: A vinculação da oferta quanto à diferença de metragem entregue em relação ao previsto no memorial descritivo e no material publicitário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5258, 23 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59296. Acesso em: 10 mai. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos